Em meio às ameaças e ataques, o Quilombo Rio Preto resiste e renasce, como um lírio brotando das cinzas. Nesta entrevista poderosa, Rita, liderança quilombola, compartilha não só as violências enfrentadas por sua comunidade, mas principalmente a força coletiva que os mantém firmes em seu território.
NOTA: O QUILOMBO RIO PRETO ESTÁ LOCALIZADO NO JALAPÃO (TO), REGIÃO QUE ABRIGA DEZENAS DE COMUNIDADES QUILOMBOLAS HÁ SÉCULOS. HOJE, SOFRE COM A PRESSÃO DE GRILEIROS E O AVANÇO DO AGRONEGÓCIO SOBRE TERRITÓRIOS TRADICIONAIS.
IDENTIDADE: RAÍZES E RESISTÊNCIA
Lilian: Queria dizer primeiro que é um prazer contar a tua história no portal (EN)CENA e a do Quilombo Rio Preto. Estive lá nessa terra maravilhosa, me contagiou, saí transformada. Me conta um pouquinho de você e como você se tornou líder do Quilombo Rio Preto?
Rita: Meu nome é Rita, tenho 35 anos. Nasci no Quilombo Rio Preto, assim como meu pai e minha mãe… e os dois são primos, inclusive. Minhas avós também nasceram aqui. Duas avós e meu avô… tudo primo de primeiro grau. É normal no Quilombo, sabe? Casamento em família mesmo. Minhas bisavós? Primos carnais também. Nós estamos organizados na associação pelos troncos, que são os filhos do casal Maria Clara do Bonfim e Antônio Maurício, que são as raízes, que vieram da Bahia e chegaram nessa região do Jalapão, que é um grande Quilombo, e tem várias comunidades quilombolas dentro desse espaço, inclusive a gente tem grau de parentesco com eles, com Mumbuca, e com Barra da Aroeira, assim como Lagoa Azul, e com outros quilombos da região, porque a gente transitava ali livremente. Essa ideia de propriedade privada, de cercar, “esse é meu”, não é uma ideia nossa. A gente tá há mais de 100 anos nesta terra e, de repente, começamos a ser atacados por grileiros. E fomos nos recolhendo e ficando apenas num espaço pequeno. A gente vivia livremente dentro dos espaços, e, com a chegada da propriedade privada, a gente foi ficando em alguns pedaços.
Rita: Todos nós somos líderes dentro do território, mas,nesse momento de ataque que o Quilombo estava e ainda está sofrendo, eu fui escolhida como representante da comunidade porque eu conseguia dialogar com esse espaço não quilombola e para organizar a associação da qual virei a primeira presidente fundadora, essa que não é invenção nossa, e sim uma estratégia para sobreviver nesse sistema que nega a gente, a gente se organizou para não ser varrido do mapa.
A FÉ: MEMÓRIA E CONTINUIDADE
Dona Norata tocando tambor
Fonte: Jessica Rosanne / Ajunta Preta
Lilian: E vocês retornam à Bahia todo ano, como é manter essa tradição?
Rita: É Continuidade da tradição do modo de vida dos nossos mais velhos, que vieram da Bahia e nos ensinaram que tínhamos que voltar, e uma vez por ano voltamos, lá nasceu a CONAQ (coordenação Nacional de articulação das comunidades negras Rurais Quilombolas), sabia? Mas o que carrego mesmo são os benditos, são muito fortes e fazem parte do nosso e modo de vida, e foram ensinadas pela iaiá da minha iaiá a Maria Clara do Bonfim, que veio da Bahia e ela rezava para bom Jesus da lapa que era o santo de tradição dela, por isso a gente volta em Romaria pra Bahia, e agora quem reza é tia Norata neta dela, e, quando ela partir, alguém vai pegar o canto. É assim: a morte não apaga nada, só passa adiante.
O SIGNIFICADO DO RIO PRETO: ORIGEM DO NOME E RESISTÊNCIA
Rio Preto
Fonte: Sara Regina / Ajunta Preta
Lilian: E qual o significado do Rio Preto para o corpo e para a alma da comunidade?
Rita: É Rio Preto porque nosso Quilombo, ali onde a gente está nesse momento, é exatamente o encontro do Rio Soninho com o Rio Preto e ele passa na região do Jalapão inteira, inclusive nós somos a segunda comunidade quilombola que tem esse nome, tem outra, também dentro do Jalapão, lá perto de Mateiros. E a comunidade, enquanto território, assim como todos os outros quilombos, são espaços de resistência e existências contra-coloniais. O território mostra que até hoje nós somos rebeldes, né? Rebeldes no sentido de não aceitar esse modo de vida, não aceitar que nossos corpos ou as nossas mentes sejam dominados ou escravizados, porque primeiro eles precisam escravizar a nossa mente para depois dominar nossos corpos. Eu, como liderança, vejo que a gente tem o nosso próprio modo de se organizar, nossas estratégias de sobrevivência, e estamos sendo atacados sistematicamente há mais de 2 anos. Eu corro risco de vida. Mas, assim, eu falo: “Que eles não me encontrem”. Mas se me encontrarem, vão me encontrar viva, porque não adianta eu estar viva e não estar livre no meu modo de existir. Porque se não, eles já conseguiram me matar antes mesmo de me alcançar.
A VIDA COLONIZADA E A MORTE EM VIDA
Lilian: Que maravilhoso seu relato. Eu penso muito sobre isso, porque infelizmente a gente vive uma vida totalmente colonizada que nos adoece, é um sistema que lucra com o sofrimento e a miséria. E o que a gente chama de “desenvolvimento” é uma prisão e um desmantelamento da vida natural. E,aí, a gente precisa tomar uma medicação para sorrir, uma medicação para dormir, uma medicação para continuar. É uma morte mesmo em vida. E o que vocês fazem é genial, é revolucionário.
Rita: É uma estratégia ancestral, eu estou seguindo o que os meus mais velhos passaram. “Eu sou porque eles são” E se você for observar o recorte do qual nós fomos escravizados, chegava o final do dia e tínhamos sido açoitados, vimos nossos filhos vendidos, a mulher vendida e violentada sexualmente, enfim, todos os tipos de atrocidades, e a gente não sentava e ficava chorando. A gente chorava também, mas assim, a gente ia batucar e alimentar a alma. É a estratégia que nos manteve vivos até hoje.
Rita: E quando contam a nossa história, querem nos colocar como perdedores. Aquelas vítimas que estavam lá sofrendo, “nossa, coitada”. Mas eles não pensam nessa resistência, né? Enquanto estratégia, enquanto sobreviventes. Eles não contam…
O JALAPÃO É UM GRANDE QUILOMBO
Rita: E o Jalapão inteiro é um grande Quilombo que não perdeu, e por quê? ao observar a nossa história, ela é sempre contada de nós perdendo, a estratégia do colonizador em todos os sentidos de guerra, quando capturavam um inimigo que era muito importante, que deu muito trabalho, eles faziam questão de expor e, depois que o matavam, o colocavam exposto e divulgavam e faziam canções para que as pessoas soubessem o que aconteceu com ele, e hoje eles continuam utilizando essa estratégia, quando eles pegam um Zumbi, uma Dandara, qual o fim deles? Morreram e então viraram heróis, porque morreram. Não foi porque lutaram e resistiram (eles são exemplos, é claro), mas a gente pode observar que é estratégico dar visibilidade midiática só para as pessoas depois que elas morrem. É um exemplo para nós falar assim: “Rita, é assim que você quer parar? Você vai lutar, lutar, lutar, e seu fim vai ser esse aqui. E aí, você quer virar herói? Você vai morrer.” Então a gente precisa contar a história dos que não perderam. Porque nós somos descendentes dos que não perderam.
Rita: E porque a gente não perdeu, ainda estamos na batalha. Quilombo Rio Preto, assim como outros quilombos, e por isso precisamos entender o valor dos que resistiram, dos que não perderam, os que estão vivos, que estão com a sua cabeça ainda grudadinhas no restante do corpo.
Lilian: Muito valiosa essa sua visão, porque realmente é isso. A gente vem de apagamentos históricos e epistêmicos dos que sobreviveram, fizeram história, criaram e revolucionaram.
Rita: Porque é um adestramento até para as pessoas olharem e falarem: “Olha, esse aqui é o caminho, o fim trágico de quem lutou, lutou, foram guerreiros, foram maravilhosos e terminaram mortos.”
O TERRITÓRIO QUE CURA
Gente território
Fonte: Jessica Rosanne / Ajunta Preta
Lilian: Como o território cura e como é relação de vocês com ele?
Rita: Eu acho que é uma cura mútua, para nós e para ele. Quando eu falo “ele”, eu tô falando da natureza. O território é… Você teve no Quilombo Rio Preto, você viu que ali é a parte que tem mais vegetação. Do outro lado você fica assombrado, só se vê soja e mais soja, é um mar de soja. E,aí, quando você vê árvores, você entende que entrou no território quilombola. E nós estamos unidos: a gente o protege, e ele nos protege, nos dando o que necessitamos para o nosso modo de vida, os alimentos, os remédios, a energia, o poder respirar. E nós somos a barreira, barreira essa feita com nossos corpos e almas, porque quando eles passam, eles matam tudo. Não é só o ser humano, é a onça que não tem mais moradia porque desmatou tudo. Não tem mais espaço para a raposa, não tem porco-espinho, não têm os pássaros, não têm árvores, não têm as abelhas, não tem nada. Eles chegam, eles arrancam tudo, eles exterminam tudo. E por isso eles precisam nos expulsar do espaço para matar o restante. Então nós somos os guardiões da natureza, do território. E sentir a natureza, ter essa conexão, vem pelo nosso modo de existência nesse planeta.
Rita: No território, nós não estamos presos nesse sistema, nessa cadeia de produção diária. Dentro do território, a gente consegue ficar 1, 2, 3 dias sem trabalhar. É o que o Negro Bispo fala: “Eu gosto de vadiar”. Vadiar é nesse sentido de você ter o direito de viver. Você trabalha, mas não vive para trabalhar. E eles criminalizam a vadiagem, né? E reduzem só à capoeira. O trabalho faz parte da sua vivência, do seu modo de vida. E aqui nesse espaço urbano, se você não trabalha todos os dias, você não consegue pagar o aluguel, não consegue pagar a água, não consegue pagar a comida. É uma cadeia que te mantém presa. Porque você precisa trabalhar todo aquele período, você não tem tempo, você não consegue se mandar. E no nosso território, a gente se manda, entendeu? Se ele falar assim: “Ah, hoje eu vou fazer isso”, “hoje eu não vou fazer”, todo mundo consegue, e não vai morrer de fome por causa disso.
Lilian: E isso é justamente o marco do capitalismo, porque ele te compra o corpo, o tempo e até a alma. É uma escravidão moderna a qual as pessoas não se atentam.
Rita: Aí você faz tudo isso para comprar uma casa que você vai passar a maior parte do tempo fora.
Lilian: É, e nem todos conseguem comprar essa casa.
Rita: Sim. É por isso que eles nos atacam e tentam nos tirar de lá, pois ainda estamos libertos no nosso modo de vida, contra-colonial. Por mais que a gente conviva, né? E tem várias coisas que a gente já pegou também, porque é uma troca. Mas somos rebeldes, eles não nos controlam dentro do território. Porque se eles nos tiram de lá, a gente cai no sistema deles, e aí a gente não tem a opção de dizer se quero ou se não quero, de fazer escolhas. A gente precisa só seguir, e abaixar a cabeça. Então por isso ainda hoje somos rebeldes e teimosos. Nós vivemos de teimosia.
O QUILOMBO SOB ATAQUE
Lilian: Quais riscos o Quilombo enfrenta?
Rita: A gente vem sofrendo, sendo caçado há décadas dentro desse território, que hoje é muito pequeno diante da realidade anterior, pois nosso modo de vida depende da extração da natureza, do mel, por exemplo. As pessoas olham e falam: “Nossa, é muita terra”. Mas não é, a gente não vive num lote de metros certos, onde você vai ao mercado ou à farmácia. A gente tem a natureza. Se precisarmos de algo, a gente vai lá e faz, não ficamos estocando, então o que está em risco hoje é a nossa existência. Nosso modo de vida está atrelado ao território. E se estamos correndo risco de vida, é por causa da expulsão do território.
Lilian: Tem 2 anos vocês estão sob ataque direto, quais ameaças concretas o Quilombo enfrenta hoje?
Rita: O primeiro ataque marcante foi em março de 2023, uma arrancada de cerca dentro do território, roubaram e levaram as madeiras. Foi impactante porque os quilombolas ficaram indignados, mas não podiam reagir. E de lá pra cá: Queimaram casas, passaram trator em cima das roças (melancia, maxixe, mandioca, arroz), passaram o trator em cima de uma casa, ameaçam, rondam as casas todos os dias, intimidando, andavam mostrando as armas, chegaram a efetuar tiros, a tocar fogo numa casa com crianças e pessoas dentro (ainda bem que apagamos rápido), os agressores sabem o que fazem e como fazer. Seaproveitam da impunidade. Esses grupos são grileiros profissionais. Escolhem comunidades vulneráveis (quilombolas, ribeirinhas, assentamentos) onde há terra em litígio. Compram e começam a tocar o terror até tomarem a terra.
Lilian: Vocês estão lutando contra gigantes.
Rita: Sim, eles sabem como usar o sistema a favor deles. Pegam uma comunidade como o Quilombo Rio Preto, onde a maioria é analfabeta, não tem ensino médio. Fecharam até a escola. Para um espaço sofrer violência assim, precisa de uma validação social, um aval. Eu sou a primeira do quilombo com graduação. Estou fazendo direito, a pedido da minha avó Alice (já falecida). Ela queria uma neta juíza. Eu nem respondi na hora, mas como acabei assumindo a frente do quilombo, decidi atender ao pedido dela.
Lilian: Lembro que, em uma reunião, você trouxe um bordado de uma flor, como símbolo de uma casa queimada, você pode compartilhar?
Rita: Eu saí do território e fui para Porto Nacional com parte da família que foi expulsa antes. A casa da minha bisavó (mãe do meu avô) foi roubada, e ela morreu indignada, fora da terra dela. Numa visita ao quilombo, mostrando as casas queimadas, avistei um lírio nascendo justamente onde era a casa dela, em cima das cinzas. Aquela flor virou um símbolo de resistência. A Ana Mumbuca (do Quilombo Mumbuca) fez um poema sobre isso, eu bordei e dei pra ela.
Lilian: História de resistência e força.
Fonte: Instagram – @quilombo_rio_preto
O IMPACTO NAS CRIANÇAS E IDOSOS
Lilian: Como essas ameaças impactam o dia a dia do Quilombo, das crianças, dos idosos?
Rita: Ah, negativamente. Porque as pessoas ficam apreensivas, com medo. Quando escutam barulhos diferentes… Quando você está dentro do território, você se comunica com a natureza. A gente sabe qualquer som. Se um carro ou uma moto passa, pra quem não é do território, pode nem perceber. Mas quem é do território olha e fala: “Passou uma moto aqui, tem uns 10, 15 minutos”. Se passar um animal, eu falo: “Tinha 2 vacas, tinha racha de 2 vacas”. A gente entende a natureza. Com os ataques, todo mundo fica em alerta. É uma estratégia de sobrevivência. Se escutam um barulho que não é de ninguém do quilombo, as pessoas correm, fogem com medo.
Lilian: Sinto muito que vocês precisem passar por isso.
Rita: O fechamento da escola traz prejuízos para toda a comunidade. Crianças de 4 anos precisam andar quase 1 km para pegar um ônibus, debaixo de chuva ou sol. Não tem cobertura, não tem um mínimo de estrutura pra esperar. Elas já chegam lá com fome, cansadas, com sono. Vão pra cidade estudar e depois voltam. É um prejuízo muito grande. Isso faz parte de uma estratégia para nos cansar, desistir de ir ou pra sugar o mínimo possível desse aprendizado. Já chegam lesionadas na disputa, ou melhor, na concorrência de conquistar espaços.
Lilian: Como vocês explicam isso para uma criança?
Rita: É, Lilian. O mais complicado não é falar, é viver. Eles já crescem naquilo ali. O mais difícil não é explicar, é ter que viver isso.
O DIREITO À EXISTÊNCIA
Rita: O direito dos quilombolas ao território está resguardado na Constituição em nível de igualdade racial. E lá está escrito que os quilombolas que estiverem ocupando o seu território são titulares da terra deles e pronto, e são direitos básicos do Estado brasileiro para nós. E estamos no século 21, em pleno 2025, ainda lutando por direitos básicos, que é direito à existência, a tá vivo, né? A morar na sua casa? A ter acesso à escola, a água, a energia e correndo risco de vida por pedir o básico. Mais de 100 anos e é exatamente essa a nossa realidade, infelizmente.
O QUE SUSTENTA A FORÇA DE RITA
(Noite de fogueira, benditos e tambor)
Fonte: Sara Regina / Ajunta Preta
Lilian: O que sustenta a sua força pessoal para liderar essa luta?
Rita: É a base, não teria como ser de outra maneira. E mesmo que eu quisesse esmorecer, eu não pararia, porque é uma energia tão forte, é uma estratégia de existência que vem de vários séculos de resistência, desde que a gente chegou nesse continente. A gente trouxe de África e foi aprimorando aqui. E é por isso que a estratégia deles de nos exterminar falhou, inclusive existiu leis para garantir que pessoas como eu e você nem estivessem aqui, que não tivesse mais nenhum negro no Brasil.
Lilian: Mas continuamos resistindo.
Rita: E continuaremos. E somos assim, maioria ainda. Eles falharam por causa dessa estratégia ancestral. A minha força vem da minha ancestralidade e que não me deixa só, não é a primeira vez, infelizmente, que eu estou nessa batalha, sabe? A gente batalha aqui, ancestraliza e traça novas estratégias e volta de novo. Aí eu brinco, falando assim, que quero chegar do outro lado e ficar só na minha, de boa, descansar. Eu digo assim: “Só vim na hora que eu quiser vir mesmo”.
COMO APOIAR SEM ROMANTIZAR
Lilian: E como podemos apoiar essa luta?
Rita: Eu acho que o primeiro ponto é escutar, é entender que nós não somos perfeitos e que a perfeição, inclusive, é uma estratégia colonial para nos assassinar. Então, se for para dentro dos nossos territórios, respeitar nossa individualidade. Porque a perfeição é um peso muito grande. E quem segue por esse caminho, ou assume esse fardo, morre doente.
A partir daí, é somar força na rede de apoio, de proteção, não só ao Quilombo Rio Preto, mas a todos os quilombos. A gente precisa de pessoas que tenham afeto. E quando lidar com causas como as nossas, e assumirem certos cargos e conseguirem certos direitos no sentido de fazer se cumprir a lei, ou que vá trabalhar com saúde básica ou psicológica, enfim, qualquer área que quilombolas, necessitamos também, que essas pessoas estejam na luta e que tenham esse olhar afetuoso, de entender que vivemos num país racista estruturalmente e machista, e que enxerguem o racismo ambiental, para que não achem que é muita terra para pouca gente. Até porque ninguém questiona o fazendeiro que tem um mar de soja, né? Ninguém questiona que o fazendeiro chegou depois de nós e ele tem energia, e a rede de energia vem até a casa dele bonitinho, e ele nem mora lá. E quando as comunidades rurais e quilombolas solicitam, é nos dito: “É pouco contribuinte, é muito caro, um investimento muito alto para levar energia lá”. Ou seja, puro racismo ambiental.
Lamparina
Fonte: Jessica Rosanne / Ajunta Preta
Então é ter um olhar afetuoso, entender, e ter coragem de pontuar isso em certos espaços, e fazer justiça. E ao ocupar esses espaços que muitos de nós não conseguem alcançar, não nos esqueçamos.
Rita: Eu estou no curso de direito, cheguei lá e o símbolo do direito é uma mulher branca, e ela não me representa, pois um país que foi estruturado em cima de sangue indígena, e que pessoas negras foram roubadas do seu continente e trazida para cá e escravizada por mais quase 400 anos e tratadas como objetos, e 137 anos após a escravidão o símbolo do curso de direito ser uma mulher branca e grega é muito contraditório, significa que o brasil não consegui analisar fazer uma reflexão sobre sua história e suas raízes, que é o povo preto e indígena, então como o símbolo de uma mulher branca, uma deusa de outro continente pode representar a justiça desse país? num país que a escravidão reinou por séculos, como as pessoas não conseguem fazer essa avaliação? ou ter esse olhar crítico, essa leitura social, para mim é uma coisa bem colocada, eu vejo e sinto, mas talvez eu sinta por que sou preta né?
Lilian: Bem pontuado!
Fonte: Jessica Rosanne / Ajunta Preta
SE O TERRITÓRIO FALASSE…
Lilian: Se o território Rio Preto pudesse falar, o que você acha que ele diria para o mundo hoje?
Rita: Socorro. Socorro. Socorro. É isso.
Lilian: Quero em forma de agradecimento compartilhar com você o poema que escrevi sobre o Quilombo Rio Preto:
Uma tarde que de tão linda fez-se impressa em minha memória
Água doce em pele nua
Solo fértil em planta do pé
Gente ri feliz
Fogueira que arde pele, corpos que dançam almas livres
Riquezas sem fim
É o corpo e a mente valsando ao som do tambor
Almas sussurrando segredos ao luar
O alimento da terra colhido
A casa de Adobe por mãos resistentes levantadas de novo, e de novo … sem fim
O sagrado revelado cantado em prece, mas também na criança que corre solta,
na velhice que é solo fértil pra sementes
Gente e terra que resiste ao tecido do tempo
ao som da melancolia do pássaro lá longe
Nessa Terra que tem tempo até pro passeio preguiçoso do gato eterno …
assim é o quilombo Rio preto!
(À esquerda Lilian Rosa – EnCena e à direita Rita Lopes)
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