Os desafios de Ser mulher – (En)Cena entrevista a Psicóloga Lauriane Moreira

Em entrevista ao Portal (En)Cena, a Psicóloga  Lauriane Moreira, que é mestre em Desenvolvimento Regional e atualmente é professora de Psicologia no Ceulp/Ulbra, expõe sua opinião sobre os desafios e conquistas das mulheres em relação à Psicologia.

Lauriane tem experiência em Saúde Pública e Saúde da Família, atuando nos temas de Políticas Públicas de Saúde Mental, Psicologia Social e Comunitária e Análise do Comportamento e Cultura.

Profa Me. Lauriane Moreira – Fonte: Aquivo pessoal.

(En)Cena – A psicologia ainda tem poucas mulheres teóricas. Que mudanças poderiam ser feitas para alterar esse quadro? 

Lauriane Moreira – A Psicologia se tornou uma ciência reconhecida academicamente ao final do século XIX, tendo Wundt e o famoso laboratório de Leipzig como marcos simbólicos desse momento de transição. Até a primeira metade do século XX as correntes teóricas que fundaram a Psicologia como ciência já existiam, quais sejam: Estruturalismo, Funcionalismo, Gestalt, Behaviorismo e Psicanálise. Se considerarmos que nesse contexto histórico as mulheres estavam, especialmente, dedicadas à vida doméstica, podemos entender a ausência delas na história da Psicologia, o que também é comum noutras áreas do conhecimento. Cito o chamado Clube dos Experimentalistas, formado nos Estados Unidos da América (EUA), tendo Titchener como organizador, no qual não era permitido a entrada de mulheres com o argumento de as protegerem do palavreado descuidado de homens quando se juntam, do cheiro da fumaça de charutos etc. Obviamente, a questão de fundo se refere ao sexismo do período e à exclusão de mulheres do âmbito acadêmico, uma vez que deveriam estar cuidando dos seus lares. Os experimentalistas se encontravam anualmente para compartilhar suas pesquisas laboratoriais sob a lógica da corrente estruturalista, tudo isso nas primeiras décadas do século XX, mas excluíram deliberadamente a participação das poucas mulheres que conseguiam estudar Psicologia na época.

Outro ponto de vista mostra que várias mulheres participaram ativamente da construção da Psicologia como ciência. Na corrente Behaviorista, fundada por Watson, é atribuída a uma mulher, Mary Jones, a utilização dos princípios do condicionamento respondente na prática da Psicologia Clínica, isso na década de 1920. Na mesma época, Melanie Klein desenvolvia importantes trabalhos na área da Psicanálise Infantil. Nise da Silveira, que era psiquiatra, mas influenciou sobremaneira psicólogos que atuavam (e atuam) na área da saúde mental, ousou no cuidado ofertado em hospitais psiquiátricos, ao incluir a arte como estratégia terapêutica. Silvia Lane, importante pesquisadora da Psicologia Social, a partir da década de 1970 revolucionou esse campo de atuação ao criticar o modelo norte americano de se fazer Psicologia, que não cabia para a realidade social da América Latina. Ou seja, sempre houve mulheres, as quais faziam importantes trabalhos, mas por muito tempo não havia espaço para sua divulgação, pois ficavam na sombra masculina. Esse cenário começa a mudar de 1960 em diante a partir dos movimentos de contracultura. Então, precisamos lançar luz sobre a história da Psicologia e resgatar esses nomes importantes, para que outras mulheres se inspirem nesses exemplos.

(En)Cena –  Qual a sua avaliação da interação da mulher no cotidiano da psicologia?

Lauriane Moreira – No Brasil a Psicologia é predominantemente feminina, possivelmente pela representação social dessa profissão estar atrelada a características que costumam ser atribuídas exclusivamente à mulheres, como falar sobre sentimentos, dar conselhos, acolher o sofrimento, ser boa ouvinte, dentre outras. Essa imagem sobre a Psicologia é, em muitos aspectos, equivocada, pois restringe sobremaneira o rol de possibilidades de atuação profissional e afasta os homens dos cursos de graduação. Como exemplo, o curso de Psicologia do CEULP/ULBRA, local em que atuo como docente, tem em número muito maior estudantes do sexo feminino, o que também é verificado no quadro de professores. Somente 11% dos egressos do curso são do sexo masculino, considerando 27 turmas que já concluíram a graduação. Dito isso, a interação da mulher no cotidiano da Psicologia é, via de regra, confortável, pois socialmente essa profissão traria como principais habilidades àquelas já atribuídas às mulheres, como citado anteriormente. Por outro lado, práticas de psicólogas que problematizem a ordem social, questionando o hegemônico, como a defesa da liberdade de cada mulher e homem de fazerem escolhas autênticas de vida pode levar a rotulação dessa profissional como “rebelde” ou “revoltada”, porque se afasta do papel de mansidão, benevolência e passividade que se espera de uma mulher em nossa sociedade.

Corpo de docentes do Ceulp/Ulbra – Fonte: https://goo.gl/1nKmKP

(En)Cena – Quais são seus principais desafios na sua atuação profissional? E as conquistas? 

Lauriane Moreira – Meu principal desafio profissional se refere a considerar (e ganhar adeptos à causa) a influência de fatores sociais na saúde mental das pessoas, isso em qualquer contexto de atuação, pois ainda vigora a lógica biologicista como causalidade dos ditos problemas psicológicos. Ou seja, trabalhar como psicóloga é nadar constantemente contra a maré social, que é imediatista, pouco reflexiva, sem memória histórica e que busca soluções simplistas para problemas complexos. O resultado desse funcionamento social é o aumento dos números de casos de ansiedade, depressão, abuso de substâncias, suicídio, dentre outros, costumeiramente explicados como culpa do indivíduo (por questões orgânicas ou por ser fraco), excluindo os fatores sociais da análise. Isso empurra as pessoas que sofrem emocionalmente para os consultórios de psiquiatria tradicional, para serem anestesiados por psicofármacos. Ou seja, eu sou a mulher, psicóloga e “rebelde” que comentei anteriormente. Por outro lado, tenho tido bastante sorte na carreira, pois desde que me formei ao final de 2006 nunca me faltou um bom trabalho, tanto dentro de políticas públicas quanto na iniciativa privada, contextos em que tenho podido discutir esses assuntos que tanto me inquietam. As psicólogas da minha geração tem tido muito espaço para atuação, e as principais publicações e congressos nacionais contam com maior número de mulheres, bem como nos departamentos de Psicologia em universidades pelo país.

(En)Cena –  Você teve alguma mudança de perspectiva profissional ao se deparar com movimentos que buscam o empoderamento feminino? 

Lauriane Moreira – Até alguns anos atrás eu olhava com bastante preconceito para os movimentos de mulheres, achando que feminismo era sinônimo de “mulher feia mal amada”. Pessoalmente, eu tive a oportunidade de ser criada em um contexto que me deu bastante liberdade para fazer escolhas, tanto pessoais quanto acadêmicas, isso desde muito pequena. Então, equivocadamente, acreditava que todas as mulheres tinham história semelhante a minha e que a luta feminista era uma bobagem. Quando sinceramente comecei a conhecer tais movimentos com empatia é que pude mudar minha perspectiva, e hoje me envergonho do meu posicionamento anterior, pois percebo que a objetificação da mulher, fruto da cultura machista, é um pilar que construiu minha identidade, me fazendo ter receio de andar sozinha pelas ruas da cidade, me causando sofrimento ao querer me adequar a um determinado padrão de beleza e, influenciada pelo machismo, me fez oprimir outras mulheres ao longo da minha vida. Depois que passei a conhecer melhor o movimento feminista, tenho percebido o quanto essa luta deve ser de todas as pessoas, homens e mulheres, pois a violência contra as mulheres causa não só danos psicológicos, mas físicos, levando muitas à morte rotineiramente. Enfim, tenho aprendido.

(En)Cena –  O que você tem a dizer para as mulheres que precisam ser empoderadas para ampliar suas perspectivas profissionais e de vida? 

Lauriane Moreira – Primeiro compreender o possível machismo que predomina dentro delas para desconstruir as limitações sociais que lhe foram impostas sobre modos de ser. Essa tarefa é extremamente difícil, dolorida, pois se questiona muitas supostas verdades propagadas pelas instituições sociais, desde a família, perpassando pela escola, ambiente de trabalho, igrejas etc, tendo cada pessoa como um soldado que fiscaliza os demais que destoam da ordem social. Ou seja, se uma mulher pretende fazer escolhas pessoais que fujam do que é tido como “natural” para mulheres, ela será julgada por boa parte das pessoas e instituições. Então, conhecer de onde vem essa lógica é o primeiro passo para o empoderamento.

(En)Cena – Como a psicologia pode ajudar no processo de emancipação das mulheres numa perspectiva social/comunitária?

Lauriane Moreira – A discussão que apresentei na pergunta n° 3 é bem a perspectiva da Psicologia Social Comunitária que eu trabalho, que busca a influência da cultura no modo como indivíduos e coletividades atuam no mundo e como fazer para exercer o contracontrole sobre elas, incluindo aí as questões que permeiam as mulheres e sua busca por emancipação, conforme também mencionado acima.

(En)Cena – Para você, o empoderamento feminino é um tema que pode ser trabalhado nas escolas? 

Lauriane Moreira – Certamente. Se uma lógica social se mostra produtora de adoecimento, violência etc., desde o contexto escolar (e também o familiar) cabe a discussão, o que provavelmente diminuiria o número de mulheres, adolescentes e adultas, com problemas relacionados à ansiedade, depressão, transtornos alimentares, ideação suicida, dentre outros. Essas problemáticas são fruto do contexto em que tais mulheres estão inseridas, permeados pela objetificação feminina e machismo. No entanto, é preciso também empoderar as professoras e professores para discutir essa pauta, caso contrário será mais do mesmo.

 

Psicóloga egressa do CEULP/ULBRA, especialista em Saúde da Família e Comunidade pela FESP.