“A mulher tem que se conhecer primeiramente.
Gostar de si, se cuidar, para ir ao mundo.
Para lidar com este mundo, ainda muito machista”
Marina às mulheres que sofrem com traumas pós assédio.
(Performance “Pele Inumana”, de Marina Boaventura. / Foto: acervo pessoal)
O terceiro mês do ano começa com a letra M, de Mulher. Em março, comemoramos a visão feminina do mundo, a presença do ser que dá-nos a vida, a delicadeza em pessoa. Estes seriam motivos suficientes para celebrarmos, com alegria, os 31 dias dedicados à todas elas. Porém, como diz o famoso ditado, “nem tudo são flores” na vida de uma mulher.
As dificuldades encontradas são muitas. A pior delas é, talvez, o desrespeito à dignidade: o assédio moral. Em entrevista ao portal (En)Cena, a artista e professora em artes plásticas, Marina Boaventura relata, além de sua vida e contato com a arte, sobre o trauma vivido depois de sofrer preconceito e um terrível assédio moral, enquanto dava aula no Espaço Cultural, em Palmas.
(En)Cena – Quando começou a se interessar pela arte? Onde surgiu o interesse?
Marina Boaventura – Desde criança, lembro do meu primeiro desenho, da primeiro potinho de barro. Olhava um quadro de natureza morta em casa por horas e horas. Sempre gostei de costurar. Mais tarde estudei Artes Plásticas na Universidade Federal de Uberlândia e fiz Pós Graduação em Filosofia e Ensino de Artes Plásticas.
(En)Cena – Gostaria que comentasse sobre a sua obra que está exposta no SESC, “Vestido para Eva”. É bem interessante.
(“Vestido para Eva”, de Marina Boaventura, exposta no SESC, em Palmas. / Foto: Walter Riedlinger)
Marina Boaventura – A obra é ligada a primeira mulher da humanidade, a eva, sobre o surgimento do pecado. A eva tem 2 fatores importantes, é a primeira mulher, mas pode ter sido a primeira filósofa e procurou conhecer a si mesma. Sócrates diz “conheça a ti mesmo”. Comer o fruto proibido é buscar o proprio conhecimento, o próprio sexo. Também quando ela busca o conhecimento, ela descobre algo que será deixado para a humanidade. Pode ter sido a corajosa, a pecadora e responsável pelo mal que há na humanidade. O espelho significa a reflexão do tabu na sociedade, a Eva delatada por Adão. Nós, mulheres, carregamos essa herança. Uso o galho como cabide porque o galho representa a natureza, algo da história. E o vestido, eu já fiz vários vestidos.
(En)Cena – Sobre o assédio que sofreu…
Marina Boaventura – Há alguns anos, tive uma intoxicação muito séria. Fui vítima de assédio moral. Eu era professora de pintura. O então presidente do Espaço Cultural me obrigou a trabalhar numa sala insalubre, com produto altamente tóxico. Fiquei 2 anos de licença e o médico disse que eunão podia mais pintar. Comecei a ter distúrbios por causa disso. Fiquei muito triste. Até escrevi relatos juntamente com os meus alunos sobre a insalubridade do local. Mas não consegui enviar porque tive que ir para o hospital.
Fui diagnosticada com Transtorno de Estress Pós Traumático. Segundo o médico, fiquei neste estado porque me vi doente por dentro. Fiz 2 anos de tratamento com psicólogo, um pouco com psiquiatra, a ioga me ajudou muito também.
Comecei a fazer vestido. Aí um crítico me incentivou a continuar, quando viu minha arte. Fui tirando de mim e colocando no vestido. É uma linha muito tênue entre a lucidez e a loucura. Quando descobri que a aquarela não me fazia mal, comecei a fazer vestidos. Me vigio sempre para ver se o problema não volta.
(Perfomance “Pele inumana” (Inhuman Skin), de Marina Boaventura, no SESC, em Palmas. / Foto: acervo pessoal)
(En)Cena – Qual a maior dificuldade encontrada em sua vida artística?
Marina Boaventura – Recursos, preciso de apoio em performances. Para ir à Belém, para fazer perfomance lá. Em Itajaí – SC, o curador exigiu uma performance minha, chamada “Alvejando a alma”, onde eu lavo o vestido. Peguei o vestido e escrevi o nome de outros colegas que sofreram assédio também. Nem minha memória é a mesma de antes por causa desse assédio. Tenho pequenos lapsos de memória. Inclusive nas aulas tenho que anotar tudo para não esquecer. Então, tento exercitar a mente, lendo bastante.
(Perfomance de “Alvejando a alma”, de Marina Boaventura, em Belém-PA. / Foto: Acervo pessoal)
(EN)Cena – Acha que o assédio que sofreu foi motivado pelo preconceito, por ser mulher?
Marina Boaventura – Este assédio foi por eu ser mulher, eu não podia falar do caso, fiquei com medo de perder o emprego então fiquei calada na hora. Muitas vezes.
(En)Cena – Você se cobra muito quando está criando? Busca detalhar bem sua(s) obra(s)?
Marina Boaventura – Sim, sou muito detalhista. Fico horas e horas a fio em cima de um trabalho. E mesmo mentalmente fico criando. Para o artista, o trabalho nunca está pronto. Mesmo se for para exposição, sempre acho que meu trabalho podia estar melhor.
(Perfomance “Pele inumana” (Inhuman Skin), de Marina Boaventura, no SESC, em Palmas. / Foto: acervo pessoal)
(En)Cena – Acredita que trabalhar com arte ajuda a desestressar mentalmente? Acredita também que a arte pode ser utilizada no tratamentode algum transtorno psicológico?
Marina Boaventura – Por isso sou professora de artes, acho que toda escola tem que ter aula de arte. Acho que mesmo sem escola a pessoa tem que fazer. Ajuda a gente a manter (a lucidez), a se conhecer e o mundo. Entender as relações de tudo.
(En)Cena – Há quem expresse seu sentimento de perda/luto através da arte. Já expressou um sentimento árduo como este ou outro, atráves de sua arte?
Marina Boaventura – Inúmeras vezes. Já expressei a tristeza, a raiva, momento de depressão. Uma colega minha foi assassinada na praia na época do assédio. Era vítima de assédio também. Ela foi encontrada morta, era minha melhor amiga. Foi terrível, tive muitos pesadelos por causa disso.
Fiz uma série de desenhos do rosto dela com caneta, lápis, usei faca, com muita força, dezena de desenhos. Rasgava o papel fazendo o rosto dela. Entreguei os desenhos pro irmão dela, não expus os desenho. Foi uma angústia muito grande perder ela de uma forma tão brutal. O marido é o grande suspeito e ele ainda vai ser julgado.
Nossa, essa raiva de ter sido submetida ao assédio moral. Fiquei com raiva das pessoas que me submeteram e de mim mesma por não ter saído daquilo antes. A minha dor, eu já transformei em atuação, em produção artística.
(Perfomance “Assédio moral) em Belém do Pará. / Foto: acervo pessoal)
(En)Cena – Um aspecto marcante em toda mulher é a vaidade. Quanto dela você ultilizapara criar?
Marina Boaventura – Meu trabalho é ultra feminino. É delicado, sensual, tem a transparência do vestido, as curvas e a delicadeza da mulher. Ele é forte, mas é a força da mulher, tudo é muito delicado. É forte porque o tema é forte: a Eva, o assédio à mulher. Tudo é pensado na mulher. Eu já tentei fazer algo diferente, mas me disseram que eu era muito feminina para fazer outra coisa.
(Performance “Pele Inumana” (Inhuman Skin), onde Marina critica o assédio moral à mulher. / Foto: acervo pessoal)