Por uma saúde humanizada para além das capitais

A Coordenadora do Coletivo Norte, Alexsandra Cardoso Souza, afirma que PNH avançou muito em 10 anos, mas ainda existem desafios para saúde de qualidade nos extremos do país.

A realização do I Seminário Norte de Humanização, em Manaus – AM, foi um marco para o coletivo de gestores da Política Nacional de Humanização – PNH. O evento, que faz parte de uma série a ser executada pelo Sistema Único de Saúde – SUS, foi uma preliminar, em comemoração aos 10 anos da PNH, cuja etapa nacional será no segundo semestre em Brasília. Alexsandra Cardoso, coordenadora do Coletivo Norte, explicou que a maior dificuldade encontrada nos preparativos e execução da programação foi na vastidão da região e no fato de ter que dar visibilidade à realização. Você já imaginou viajar durante trinta dias para chegar a um determinado lugar? Pois é, em Manaus isso ocorre e é um desafio para as autoridades e profissionais promover saúde humanizada. Alexsandra revelou mais detalhes do evento, dos 10 anos da PNH, e outros.

(En)Cena – Como foram os preparativos para o Seminário Norte?

Alexsandra – É uma proposta de um coletivo de gestores da Política Nacional de Humanização.  Sentimos a necessidade de criarmos espaços regionais para discussão e amadurecimento de pautas e propostas, de modo que a construção do marco nacional dos 10 anos da política tenha realmente um debate vivo sobre os principais desafios dos territórios e suas especificidades.

Não foi fácil pensar no seminário para a Região Norte, principalmente se notarmos a extensão territorial, pois temos em um único Estado dessa região – por exemplo – a mesma extensão que uma outra região do Brasil. E como é que a gente ia poder fazer isso, de modo potente? Além de que a gente ainda tem uma malha aérea que é de difícil acesso, que é complicado porque as passagens são muito mais caras. Então pensamos: “bom, vai ser um desafio grande, mas é necessário até para a capilarizar a política, porque é um momento em que você consegue reunir gente de toda a região, como trabalhadores da saúde, para poder discutir uma política pública do SUS.”

Nós iniciamos esse movimento em setembro, quando o coletivo se juntou com seus cinco componentes, que são os consultores referentes para cada estado. O primeiro desafio seria chegar aos estados [do Norte], para oferecer um Seminário e dizer precisávamos que esses estados investissem na participação de seus trabalhadores, gestores e usuários. Foi uma conversa muito interessante com as Secretarias Estaduais e Municipais. Tivemos que garantir qual seria o estado que iria dar suporte há Seminário desse porte, dessa proposta, com uma logística adequada. E aí o Governo do Estado do Amazonas resolveu bancar essa parceria, muito legal.

(En)Cena – Como os outros parceiros surgiram?

Alexsandra – Decidimos chamar a Universidade Federal do Amazonas, pois queremos que essas pessoas estejam conosco – alunos do Curso de Medicina – chamamos também o Portal (En)Cena, que é nosso parceiro no Tocantins e garantimos a vinda da equipe para poder fazer toda essa parte de cobertura. Conseguimos incluir outros sujeitos e olhares em nossas discussões e fica a pergunta: como a gente entra numa produção do comum se tem um monte de gente pensando diferente, com objetivos diferentes? Era o que eu estava falando na mesa da abertura, que esse foi um exercício muito de cogestão para nós. Entendo que cogestão possui uma estreita relação com confiança, com tolerância que você tem no outro, tem também a questão de confiabilidade e aí no fim deu nisso daqui: nesse Seminário super potente com muita gente! Tivemos uma demanda muito grande de procura, mas só tínhamos 150 vagas e não foi possível abrir mais. Uma coisa que pontuamos é a necessidade de um Seminário dinâmico e de muito movimento e trocas.

En(Cena) – E você acha que isso está acontecendo? Você acha que está sendo assim?

Alexsandra – Está sim. Eu tenho sentido que está! E as pessoas também tem dito isso. Algumas metodologias que pegamos e colocamos na roda, essa coisa das pessoas circularem nas rodas e da gente fazer uma plenária aberta em que as pessoas pudessem se colocar, valorizando a circulação da fala. Isso já configura outro cenário para o evento. Além de que, tem também as pessoas que convidamos, que são pessoas muito estratégicas, tanto para a mesa de abertura, quanto para conduzir as rodas porque são pessoas que já tinham esse perfil de dar uma dimensão e um movimento às falas.

En(Cena) – Como no Seminário tem gente de muitos lugares diferentes, gostaríamos de saber o que vem a ser um problema comum para todas elas, ou quais são as experiências positivas?

Alexsandra – A experiência mais interessante pra mim é o fato das pessoas conseguirem pegar o que trabalhamos através da teoria da Política Nacional de Humanização, que é pautada nas diretrizes. Então trabalhamos, por exemplo, o acolhimento. Depois trabalhamos a cogestão, refletindo sobre o que é e como ela se configura. A gente trabalha redes discutindo sobre elas também. Primeiramente, você fica nesse campo teórico e conceitual porque as pessoas tem uma dificuldade muito grande de levar isso para o concreto. E aí quando você vem para um Seminário em que você traz sete estados da Região Norte, com secretarias municipais e estaduais de Saúde, Universidades, professores, doutores, trabalhadores, usuários da saúde, formando um público totalmente diversificado, você consegue experimentar alguns dispositivos como, por exemplo, o trabalho em redes. Trabalhamos redes e fazemos redes falando sobre elas, escutando a percepção do outro sobre nosso local de fala, então aqui, agora, a gente está trabalhando redes, estamos mostrando como é esse exercício de trabalhar as diferenças aqui mesmo no seminário. Então, vê-se muita gente discutindo um tema que é comum a todos. Eu acho que os pontos positivos são os temas que estão dentro do Seminário e essa possibilidade de você experimentar as diretrizes da política [PNH] e podermos também se encontrar. Só o fato da gente ter um local para poder se encontrar, comunicar, conversar e dizer das nossas angústias no trabalho, dizer do que está dando certo.

(En)Cena – Há um relato prático dessas rodas?

Alexsandra – Sim. Eu estava em uma roda ontem [dia 21, segundo dia do Seminário], como tema que falava sobre a transversalização das redes, quando as pessoas começaram a falar sobre a questão da saúde mental indígena, que é algo muito forte aqui na Região Norte e dessa roda elucidou-se um monte de perguntas e dúvidas sobre a saúde indígena como, por exemplo: Como é que a gente atua com a população indígena? Como é que a gente entra nas aldeias? Como a gente pode tentar manejar e reduzir o impacto do uso e abuso de substâncias que estão se alastrando nas aldeias? Como diminuir a mortalidade infantil entre os índios? A partir dessas perguntas, pessoas que já tiveram experiências com a população indígena foram partilhando seus saberes e dizendo: “olha, eu fiz isso e deu certo” ou “eu acho que não é por aí”. O relato de experiências é riquíssimo e válido.

(En)Cena – É um dos exemplos positivos desse tipo de evento…

Alexsandra – A gente sempre pensa quando está provocando uma roda ou um Seminário sobre quais são os encaminhamentos que saem disso tudo. Não me refiro aos encontros e estratégias compartilhadas como apenas um produto, porque embora a gente tenha que produzir algum tipo de produto dos encontros que fez, temos, antes de mais nada que sair com um norte, com algum direcionamento para quando voltarmos para o nosso Estado e saber sobre o que poderá entrar no plano de ação do coordenador estadual ou municipal de humanização frente às demandas, ou mesmo o plano de ação de uma unidade ou dos representantes dos serviços que já são apoiadores da PNH. Tão importante quanto o produto e a direção do plano de ação é o apoio que tais representantes têm – ou têm que ter – frente às dificuldades que enfrentam, porque ter um plano de ação otimista e estar sozinho não significa muita coisa, por isso que essa ideia de apoio na política é forte. Nossa ideia não é produzir um trabalho solitário, mas sim um trabalho coletivo! Porque quando você volta de um encontro como esse, sua percepção sobre seus parceiros fica mais clara, quais são as pessoas com as quais você pode contar (além do consultor) para não se sentir sozinho e é assim que você vai estabelecendo uma rede. Você começa a observar experiências de outros lugares, que comungam com uma realidade próxima da sua, começa articular encontros em seu estado, convida algum consultor para levar uma ação específica para onde você acha conveniente que se trabalhe sobre determinado assunto, chama um trabalhador que tenha uma experiência interessante e assim as pessoas vão fazendo intercâmbios, dividindo para multiplicar. Eu acho que o importante é isso, sem contar também que um dos objetivos nossos é canalizar as políticas e fazer com que as pessoas conheçam a Política Nacional de Humanização.

Alexsandra faz uma fala de agradecimento no fechamento do I Seminário Norte de Humanização

En(Cena) – Quem são essas pessoas a quem você se refere?

Alexsandra – São trabalhadores em saúde, gestores, usuários dos SUS, mas ultimamente tem entrado na nossa proposta começar a sair desse campo da saúde propriamente dito e engendrar na Justiça, na Educação, e nos Direitos Humanos porque a PNH é transversal.

En(Cena) – Já dá para visualizar algum resultado da incursão da PNH nesses outros campos?

Alexsandra – Sim, porque começamos a incluir os operadores da Justiça dentro de um trabalho de Redes que estamos fazendo. Então, tanto o Projeto Cegonha, como as redes de urgência e emergência – e as outras redes de atenção, que são prioridades do governo – tem uma diretriz em comum que é o acolhimento com classificação de risco, que significa você dar resolutividade dentro das unidades de saúde para as pessoas saberem onde é que elas têm que ser atendidas, para que um caso que possa ser atendido num Ambulatório não seja atendido, por exemplo, em um Hospital. Dessa forma temos chamado o Ministério Público para conversar porque os profissionais da saúde sofrem com a judicialização da saúde. Porque quando as pessoas não conseguem remédio no SUS elas vão ao Ministério Público e em 24h o SUS tem que dar conta de fornecer esse remédio, mas esse é um problema que é resolvido individualmente, enquanto nós queríamos resolver isso para todo mundo. Por exemplo, trocamos experiências também com os órgãos de segurança convidando o Corpo de Bombeiros para estar junto conosco nas discussões porque é preciso essa orientação quanto às situações de risco, para eles saberem para onde levar uma pessoa após um acidente, dentre outras situações. Além disso, outra frente que vem crescendo na política volta-se para a Saúde Prisional, que é quando nos perguntamos sobre como as pessoas que estão presas estão sendo atendidas, e como é prestada essa atenção à saúde do preso. Então, frente a isso, eu posso dizer que estamos em direção a outros caminhos, ampliados, fazendo um trabalho bem legal. E esse trabalho – lógico – é um trabalho que a gente sempre faz em rodas.

En(Cena) – Como você avalia esses 10 anos de PNH? Quais os pontos que você acha que precisam mudar?

Alexsandra – Coisa para mudar a gente sempre tem. Então eu digo que são 10 anos de um trabalho de constantes mudanças. A PNH, há 10 anos, aqui no Norte, não é a PHN de hoje. Há sete anos, havia apenas uma consultora para essa região, que foi a Terezinha Moreira, uma desbravadora, que pegou esse desafio de vir para o Norte e trazer a PNH. Imagina uma pessoa fazendo todo esse trabalho sozinha e tentando a comunicação com as secretarias que, a princípio, não conseguiam entender direito às propostas da iminente PNH, porque antes se entendia humanização de outra forma, como se humanizar significasse abraçar as pessoas, colocar recepcionistas alegres e sorridentes nos hospitais, como se isso fosse resolutividade de serviço, embora também seja importante e interessante. Humanização não é necessariamente isso, ou não é só isso, absolutamente. A companheira Terezinha teve um trabalho hercúleo na Região Norte e foi fazendo isso junto com as secretarias, onde os coordenadores municipais e estaduais de saúde foram sendo os “consultores” da política na época e isso deu muito certo. Hoje em dia temos todos os hospitais e todas as unidades de saúde querendo implantar a Política Nacional de Humanização, porque ela está dentro de outras políticas, de outros decretos e antes não era assim. Hoje já estamos mais voltados à saúde do trabalhador, à valorização do trabalhador, além de que, hoje temos um acesso mais fácil às secretarias, que nos aceitam melhor por causa desse trabalho que a Terezinha fez. Em âmbito nacional, a gente tem repensado muito sobre a questão das diretrizes e de outros dispositivos, porque esses da política não são o bastante e nós podemos criar outros dispositivos e sempre estarmos analisando-os. Nós começamos a enxergar essa necessidade agora, mas há 10 anos não pensávamos nisso, de iniciar a comunicação com outros Ministérios – como o de Ciências e Tecnologia, Previdência Social – então está tendo uma rede, coisa que há dois anos nem pensávamos.

En(Cena) – Isso é por conta até do conhecimento que os gestores passam a ter e começam a investir mais em programas, em capacitações para os que trabalham nisso?

Alexsandra – Isso é por conta também das diretrizes do governo, como a de promover a redução de mortalidade, por exemplo. Acho que tem a ver também com o momento novo que o próprio Ministério da Saúde tem passado. E tudo isso está muito ligado à questão das políticas, das necessidades e acho que em partes há também uma cobrança da sociedade, onde as pessoas precisam estar mais ativas, procurando mais saúde, se colocando mais também. Tanto é que investimos muito nessa parte da mobilização social, do controle social, porque sabemos que isso é importante. Um Sistema Único de Saúde não vai depender só de gestores e trabalhadores, vai depender de todo mundo e o quê temos feito para isso melhorar?

En(Cena) – E o Norte como está em termos de Humanização, de Humaniza SUS (se você puder, é claro, fazer uma comparação considerando todas as questões)?

Alexsandra – Eu diria que nós estamos muito bem. Estamos muito felizes com o trabalho, porque isso reflete muito o que se tem feito coletivamente. Por exemplo, temos as parcerias com as Secretarias Estaduais de Saúde, que constituem quem coordena e ordena essa parte da política no estado. Estamos recebendo uma demanda grande das Secretarias Municipais, que nos procuram para poder trabalhar a Humanização dentro dos seus serviços. Hoje temos muito mais trabalhadores que se dizem apoiadores da PNH do que antes. E, por fim, eu acho que isso também reflete no modo que esses cinco consultores estão se organizando, no modo como eles, ou melhor, nós, trabalhamos a proposta para a região Norte em relação à PNH. Então, somos um coletivo cogestor. Temos também tem um apoio enorme da Coordenação Nacional da Política e isso dá uma liberdade para trabalhar. Eu avalio tudo isso como um trabalho muito legal e interessante, além de que, a gente tem pensando em muitas coisas para a região Norte, tudo de forma coletiva, contando com aquilo que eu falei no início de que cada estado é como um país, porque é de uma dimensão, é de uma diversidade cultural imensa. No estado do Amazonas, por exemplo, tem município que você demora trinta dias para chegar. É muito difícil imaginar uma situação desta, quando não se vive nela. É uma distância psicológica muito grande para nós. Daí você pensa em quais estratégias você pode usar para tentar levar saúde para um lugar como esse que, só para chegar, leva-se 30 dias. Então, necessita-se de um planejamento muito mais organizado, consistente e com muito mais pessoas. Acho que é por isso que a gente investe mais nessa questão das redes e da discussão conjunta.