No dia 15 de novembro é comemorado o dia da Democracia, e por isso o En(Cena) convidou duas psicólogas atuantes na cidade de Palmas, para um debate sobre questões pertinentes sobre psicologia política e democracia, para compreendermos mais sobre a temática.
Ana Carolina Peixoto do Nascimento possui graduação pelo Centro Universitário Luterano de Palmas – CEULP/ULBRA, Mestrado em Ensino em Ciência e Saúde, pela Universidade Federal do Tocantins, sócia fundadora do Devir Espaço Terapêutico, onde atua como psicóloga clínica no atendimento de crianças e adolescentes.
Ester Maria Cabral, possui graduação em serviço social pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás – PUC-GO (1982), graduação em Psicologia pelo Centro Luterano de Palmas – CEULP/ULBRA, especialização em Saúde Mental pela Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ.
As convidadas abordaram características e contribuições que a psicologia traz para a colaboração da garantia e empenho dos direitos à democracia e suas práticas.
En(Cena) – Como vocês avaliam a relação de políticas públicas e psicologia?
Ana Carolina – Durante muitos anos, a Psicologia esteve recolhida às quatro paredes dos consultórios particulares, restringindo-se a uma pequena parcela da população, aquela que
tinha condições de pagar. Com a inserção da Psicologia nas políticas de saúde, assistência social, justiça e educação, a Psicologia caminha para um processo de democratização do acesso aos serviços psicológicos, em consonância ao nosso Código de Ética Profissional, buscando reduzir as desigualdades, promovendo a inserção social, saúde e qualidade de vida, e buscando eliminar quaisquer formas de violência e negligência.
Ester Cabral – As políticas públicas no Brasil começam a ser pensadas a partir de movimentos de sistematização e mobilização de caráter científico nas décadas de 1930 a 1960, com ênfase na implantação do Estado Nacional Desenvolvimentista com o grande desafio de modernização de uma sociedade fortemente dependente de países mais avançados tecnologicamente.
A Psicologia desde os seus primórdios sempre esteve ligada a setores importantes da sociedade e o início de sua profissionalização se deu com a contribuição de duas grandes áreas do conhecimento: a educação e a saúde. No entanto, era vista como elitista e de difícil alcance da população de modo geral.
A partir da constituição de 1988, nossa constituição cidadã, percebe-se um avanço na implementação das políticas públicas no país especialmente as voltadas à Seguridade Social e neste campo a psicologia tem alcançado um espaço maior de atuação, em especial nas áreas de Assistência Social e Saúde.
É evidente que o alcance da psicologia enquanto profissão é muito maior e cabe em todos os espaços políticos, no entanto este lugar de atuação tem se restringido, apesar de vários movimentos para sua expansão, em especial na área da educação onde o profissional psicólogo ainda não tem seu espaço garantido.
As políticas de saúde pública e de assistência social já contemplam a presença do profissional psicólogo em seus dispositivos de atuação tais como: CRAS, CREAS na Assistência Social e Hospitais, Ambulatórios de Especialidades, CAPS, NASF na Saúde, porém esta atuação ainda é bastante insipiente e percebe-se que a atuação deste profissional é requerida, em sua grande maioria, para os atendimentos clínicos.
Sabe-se que há espaço para a atuação do profissional psicólogo na gestão das políticas públicas, porém nem sempre a psicologia é contemplada para estes fins a não ser nas áreas de Recursos Humanos.
Muito se tem a fazer no sentido de estabelecer uma maior interlocução da profissão com as áreas públicas e a Psicologia Social é a que mais se destaca nesta vertente, buscando discutir com a sociedade seu papel primordial na mudança de visão que a população tem da nossa profissão, antes vista como elitista, para uma visão mais próxima dos anseios da população, especialmente a população carente.
En(Cena) – Ana Carolina, o que te levou a escolher trabalhar com a psicologia e especificamente a área de álcool e outras drogas?
Ana Carolina: Acredito que o meu encanto com a Psicologia sempre foi a nossa capacidade de transformação de realidades, mundos, jeitos de ser e de viver (nossos, profissionais Psi, e das pessoas que entram em contato com o nosso trabalho).
Durante a faculdade de Psicologia, tive a oportunidade de experimentar diversas vivências (em projetos de pesquisa, extensão, monitorias, estágios extracurriculares e curriculares) e, dentre elas, a inserção na Política de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas. Foi durante a participação no projeto de pesquisa PET-Saúde (Programa de Educação pelo Trabalho em Saúde) que me inseri, pela primeira vez, no Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas (CAPS AD III). A princípio, foi uma experiência desafiadora, pois a primeira emoção que senti ali foi de medo (enormemente influenciada pelas reportagens e notícias veiculadas nos meios de comunicação, que desumanizam o usuário de drogas, e o representam como um “monstro”). Imaginem o meu choque, de entrar no CAPS AD esperando encontrar “zumbis” (vide referência das novelas que ousam retratá-los assim), e encontrar pessoas normais?! Essa experiência do PET-Saúde despertou o meu interesse para conhecer mais a Política, e foi quando decidi escrever o meu Trabalho de Conclusão de Curso com essa temática. Após concluir a graduação, trabalhei durante dois anos neste mesmo CAPS AD III, como psicóloga da equipe multidisciplinar, e dei continuidade aos meus estudos e pesquisas nessa área com a minha dissertação de Mestrado. E pretendo continuar no Doutorado…
En(Cena) – Ester, o que te levou a escolher trabalhar com a assistência social e posteriormente a psicologia?
Ester Cabral: Sempre gostei de políticas públicas e o Serviço Social me oportunizou o trabalho na área da Saúde Pública, atendendo a uma população em vulnerabilidades sociais graves. Como Assistente Social, trabalhei na gestão da saúde em Policlínica, depois em Serviços de Saúde Mental (NAPS e CAPS) e em hospital, na assistência à saúde. .
Ao tempo em que atuava na gestão destes serviços, também tive a oportunidade e o privilégio de acompanhar o nascimento do SUS e do SUAS, participando de suas instâncias de controle social nos Conselhos Municipais de Saúde e de Assistência Social, o que enriqueceu minha atuação como Assistente Social à época.
Este contato com a Saúde Mental me trouxe para a psicologia e na gestão de serviços de CAPS pude perceber a riqueza da conexão entre Serviço Social e Psicologia especialmente tendo uma visão sistêmica da realidade das pessoas em sofrimento psíquico e suas famílias. A partir desta vivência, pude concluir minha segunda graduação, mesmo que agora não mais esteja atuando na área pública.
En(Cena) – Em suas atuações profissionais, quais são os maiores embates no desenvolvimento da psicologia política e garantia da democracia?
Ana Carolina – Acredito que não existe Psicologia sem Política, porque a Psicologia é, em essência, um convite a pensar na problemática social, e o social não está “fora”, mas acontece no meio, entre as relações que estabelecemos. A Psicologia é política a partir do momento que fornece os meios para romper com o massacre das subjetividades, e integra o sofrimento do sujeito ao contexto político-histórico-social.
E me parece que a Psicologia que permanece fechada em suas quatro paredes (e isso não acontece somente nos consultórios particulares, mas também podemos constatar na atuação nas Políticas Públicas) ainda carece desse debate, dessa crítica social. A constituição da Psicologia como ética-estética-política busca romper com a padronização das formas de cuidado, para criar intervenções singulares para sujeitos singulares.
Ester Cabral – Entendo que os maiores embates no desenvolvimento da psicologia política na garantia da democracia estão especialmente na luta de seus profissionais pela manutenção da garantia de direitos dos cidadãos, alcançados por meio de nossa Constituição Federal. Estes direitos já garantidos estão sendo negociados de forma nefasta por parte dos “altos poderes nacionais”, colocando em risco nossa tão frágil democracia.
Em tempos de divisões ideológicas e de um país altamente polarizado, há que se pensar nos valores que a Constituição de 1988 prega e cada profissional engajado politicamente deve se posicionar no sentido de que os espaços de diálogo da população no seio das políticas públicas já concretizados sejam preservados e que através da conversação e da construção possamos efetivar nossa democracia tão atacada ultimamente.
En(Cena) – Ana, partir dos seus estudos e experiências, por quais motivos a população está tendo, cada vez mais cedo, o consumo de álcool e drogas?
Ana Carolina – compreensão que temos das drogas se modifica a depender do contexto histórico-político-social-cultural que vivemos. Desse modo, podemos dizer que as pessoas sempre usaram drogas para diversos fins, sejam eles religiosos, políticos, recreativos, medicinais.
Quando falamos em uso de drogas, estamos falando de substâncias lícitas e ilícitas (do ponto de vista legal), ou, utilizando a definição da Organização Mundial de Saúde “qualquer substância capaz de produzir alterações no funcionamento do nosso organismo”, a isso incluem-se os medicamentos, o álcool, o tabaco, a maconha, o crack, cocaína, açúcar, café etc.. No entanto, o contexto que conhecemos hoje, de “Guerra às Drogas” tem seu princípio na proibição do álcool nos Estados Unidos, em 1970, e tem raízes racistas e morais, proibindo certas substâncias e liberando outras, como falado anteriormente, a depender do sistema de valores sociais.
Desse modo, as pesquisas recentes apontam para um crescimento significativo do uso de medicamentos (em especial os opióides e anfetaminas, como a morfina, tramadol, metilfenidato – Ritalina), com 57 e 27 milhões de pessoas em todo o mundo, respectivamente, segundo dados do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC, 2020). A mesma pesquisa apontou que cerca de 19 milhões de pessoas fizeram uso de cocaína ou crack. Além disso, a Organização Mundial de Saúde publicou, em 2018, uma pesquisa apontando mais de 2 bilhões de pessoas que faziam uso de álcool, sendo mais de 280 milhões de pessoas com transtornos relacionados ao uso de álcool no mundo (OMS, 2018). Mas, por que é importante entendermos esses dados (e aqui estou trazendo somente um recorte)? Porque quando fala-se em “epidemia de drogas” e “Guerra às Drogas”, não está se falando do álcool e dos medicamentos, mas das substâncias ilícitas, em especial aquelas consumidas pelos estratos da população mais vulneráveis, o que evidencia a retórica falaciosa dessa Guerra, que nunca foi às drogas, mas as pessoas que usam “determinadas” drogas, em “determinados” espaços e contextos sociais. E isso é fundamental para entendermos o recorte sócio histórico em que vivemos, em que os jovens têm fácil acesso ao álcool e tabaco, em que a vida (e suas vicissitudes) é medicalizada, e o cenário proibicionista e racista encarcera e mata jovens pretos e periféricos.
En(Cena) – Ester, diante de suas experiências na assistência social e psicologia, os direitos democráticos e políticas públicas estão sendo aplicados na área da saúde mental?
Infelizmente, tudo o que se construiu e se estruturou em termos de saúde mental no país a partir da Reforma Psiquiátrica Brasileira da década de 1970 até 2015, está sendo desconstruído de forma descabida baseada em lobes políticos de instituições, que por anos usurparam o direito do cidadão com transtornos mentais de se tratar em liberdade.
É com muita tristeza que vemos o desmonte da Rede de Atenção Psicossocial, começando pela falta de financiamento, pelo estrangulamento dos serviços de CAPS, pela desconfiguração da RAPS e pela introdução de serviços privados de caráter contrário aos princípios da Reforma Psiquiátrica e do tratamento em liberdade em especial ao cuidado das pessoas com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas, como as Comunidades Terapêuticas.
O desmonte da estrutura da RAPS a partir da Atenção Básica como ordenadora do cuidado, a implantação de serviços ambulatoriais para a saúde mental, deslegitimando o trabalho do NASF e dos CAPS no território são intervenções danosas aos direitos democráticos adquiridos pela população no cuidado à Saúde Mental no país.
En(Cena) – A população de Palmas tem conhecimento sobre os recursos e assistência oferecidos no combate e tratamento de álcool e outras drogas no município?
Ana Carolina – Sim, acredito que a população tenha acesso a informação e divulgação dos serviços que compõem a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) no cuidado em Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas. No entanto, falta investimento do setor público, tanto nos serviços já existentes buscando qualificar e aprimorar as equipes, estrutura física e condições de trabalho, quanto na implantação de novos serviços necessários para o bom funcionamento da Rede.
Nesse sentido, a falta de investimento público vem acontecendo nos diversos níveis (nacional, estadual e municipal), ocasionando um desmonte de programas e serviços. Vale citar a Nota Técnica N° 11/2019 da Coordenação-Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, vinculada ao Ministério da Saúde; a Lei N°13.840/2019; o Decreto N° 9761/2019; a Lei Estadual N° 3.528/2019 (revogada pelo Superior Tribunal Federal por ser inconstitucional) e outras publicações que traduzem esse atraso.
Ester Cabral – Creio que a população sabe que existem recursos de saúde e assistência social no município, no entanto, não têm conhecimento do que é oferecido nos dispositivos existentes. Infelizmente não há uma divulgação efetiva dos serviços e recursos oferecidos à população e grande parte da população sabe que esses recursos existentes não são suficientemente ofertados para o atendimento da demanda.
En(Cena) – Quais meios de acesso você considera eficaz para que a população possa ter maiores informações a respeito de democracia e garantia da mesma?
Ester Cabral – A mídia e as redes sociais são, hoje, potentes meios de acesso e comunicação para que a população seja informada de seus direitos. No entanto, entendo que estas informações só conseguem chegar de forma mais contundente à população, em época de campanhas políticas quando os aspirantes aos cargos fazem questão de mostrar o que a sociedade tem e o que não tem.
Vejo que a sociedade organizada também é um excelente veículo de informação e de meio de acesso à estas informações exercendo seu papel de controle social participando dos conselhos municipais e estaduais das mais diversas políticas. Foi assim que construímos o SUS e o SUAS, com a efetiva participação da sociedade e é através destes mecanismos que manteremos nossa democracia em pé.
Ana Carolina – Garantir que as pessoas tenham acesso aos seus direitos. Uma casa para morar, alimentação de qualidade, acesso aos seus documentos e aos serviços de saúde, assistência social, justiça, educação, acesso a atividades de lazer, esporte, cultura e arte. Acredito que isso é o básico, e mesmo assim existem várias pessoas que não têm nem isso. Além disso, o acesso da população aos mecanismos de controle social, como os Conselhos, é fundamental para a construção de Políticas e Programas. Penso que garantir o acesso das pessoas aos direitos previstos na Constituição Federal é o principal para se pensar democracia.
En(Cena) – Ester, quais contribuições acadêmicas você considera relevantes para a contribuição e formação de profissionais capacitados para colaborarem com a luta pela democracia?
Ester Cabral – A vida acadêmica é extremamente rica, dinâmica e potente na luta pela democracia. Se olharmos para a nossa história, vemos os estudantes nas ruas lutando por liberdade, pelas “diretas já”, por ações efetivas do poder público, por pautas importantes para nossa sociedade na defesa dos direitos das minorias, dentre outras.
Percebe-se que por um tempo, houve um hiato de participação social da comunidade acadêmica na vida política de nosso país, no entanto, vemos que os estudantes estão se interessando mais pelas políticas públicas e pela participação social, conseguindo alcançar espaços de luta e de poder.
As pautas de luta política estão cada vez mais sendo ampliadas a medida que os direitos estão sendo cerceados e é a comunidade acadêmica quem mais se vincula à essas pautas, pois tem conhecimento científico à sua disposição e garra pela participação efetiva nesses espaços, seja na rua ou nas tribunas livres.
En(Cena) – Estamos em um período eleitoral que nos faz avaliar quais serão nossos representantes políticos. Como você avalia, de um modo geral, xs candidatxs para representação e luta na garantia dos direitos democráticos e políticas públicas?
Ana Carolina – Estamos vivenciando um momento de intensa disputa política que, por vezes, foge do debate democrático. Vemos isso na veiculação massiva de fake news, na supervalorização de pautas morais do âmbito da individualidade dos sujeitos, no negacionismo da ciência e no retrocesso das políticas públicas. É como se estivéssemos vivendo uma distopia como Admirável Mundo Novo ou 1984, um momento de pós-verdade.
Ester Cabral – Este é um período em que devemos avaliar cada candidato, não pelo que ele diz fazer no futuro, mas pelo que ele traz de visão de mundo, de valores sociais, sua história de vida e seu engajamento nas questões sociais e de políticas públicas.
Não se pode olhar para o candidato apenas ao que ele promete fazer pelo bairro, mas pelo que ele pode fazer pela comunidade como um todo, especialmente para a manutenção da garantia de direitos já adquiridos.
En(Cena): Quais dicas e orientações você considera importantes ressaltar para os acadêmicos de psicologia a fim de contribuírem nesta luta?
Ester Cabral – Os acadêmicos de psicologia, como cidadãos de direito precisam entender a sociedade em que vivemos e suas necessidades, percebendo o que já está construído e lutar pela melhoria de vida de nossa comunidade.
Devem conhecer as políticas públicas existentes, seus mecanismos de funcionamento, sua história e como atuar na consolidação das mesmas de forma justa e ética.
A participação popular através das Conferências e outros espaços de participação é imprescindível para promover mudanças significativas nas políticas públicas existentes e para criar novas políticas que fortaleçam nossa democracia e sustentem o direito dos cidadãos e da comunidade em geral.
Ana Carolina – Embasamento teórico consistente, Código de Ética Profissional dx Psicólogx, conhecimento aprofundado das políticas públicas existentes e sua evolução sócio-histórica, conhecimento das referências técnicas do Conselho Federal de Psicologia acerca da atuação dx psicólogx nas Políticas Públicas (o CFP tem várias publicações em seu site), supervisão contínua (principalmente para xs psicólogxs recém-formadxs).