(En)Cena entrevistou Silvio Yasui, que possui graduação (Universidade de Mogi das Cruzes – 1979) e mestrado (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – 1999) em Psicologia, além de doutorado em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz (2006). É professor assistente doutor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Tem experiência na área de Saúde Coletiva, com ênfase em Saúde Mental, atuando principalmente nos seguintes temas: saúde mental reforma psiquiátrica, atenção psicossocial, atividades expressivas e oficinas terapêuticas. É autor do livro Rupturas e Desencontros, publicado em 2010, pela Fundação Oswaldo Cruz .
A conversa foi logo depois da participação do professor no programa Diálogos Culturais na Rádio Ullbra Palmas, no dia 17 de maio. Silvio Yasui brincou com o calor palmense mas se disse muito contente por voltar à Palmas e ver as mudanças no espaço urbano da cidade. Ele veio à capital do Estado do Tocantins para participar justamente do evento de lançamento do (En)Cena. Com fala leve e pausada fez diversos comentários sobre o contexto da saúde mental, evidenciando que falar sobre o tema é falar sobre o processo civilizatório.
Foto: Samuel Maciel
(En)Cena – Historicamente, o individuo com problemas mentais, recebeu o status de cidadão de segunda-classe, status este atribuído também (com considerações diferenciadas) a diversos outros grupos marginalizados, entretanto, em que difere o tratamento que, ao longo da história, foi dado aos “loucos”?
Silvio Yasui – De semelhante, o mesmo processo de estigma e exclusão social. De diferente, a motivação para tal processo. Os leprosos exibiam em seus corpos as marcas que produziam o estigma. Havia uma exterioridade. No caso dos loucos a exclusão referia-se a uma interioridade. São os afetos, os pensamentos, as convicções, as motivações para a exclusão. Outro aspecto que marca uma importante diferença: a um determinado momento, surge uma autoridade que percebe, determina e promove a exclusão/tratamento. É o médico psiquiatra o encarregado de produzir as provas que classificam o doente mental.
(En)Cena – Quando se aborda a questão do território, do espaço social, por que debate-se (ou debateu-se) tanto a necessidade de integrar o tratamento psiquiátrico a uma dimensão social? O manicômio como “lugar pra louco” foi uma tentativa eugênica de lidar com esse problema?
Silvio Yasui – O surgimento do hospital psiquiátrico é um fenômeno que podemos localizar historicamente no mesmo momento de organização do espaço urbano no final do século XVIII. O louco incomoda nas ruas das cidades quando estas começam a ganhar importância econômica, social e política. No Brasil isso é evidente especialmente quando se pensa que o primeiro hospital psiquiátrico inaugurado em 1852, teve como uma de suas motivações a remoção do lixo humano que se acumulava nas ruas. No inicio do século XX, o psiquiatra Franco da Rocha, também apontava para o hospital psiquiátrico como uma instituição para limpar a cidade.
Um pouco mais adiante, a Liga Brasileira de Higiene Mental nos anos 30 do século passado, propunha várias medidas para a esterilização dos loucos para a purificação da raça brasileira.
Ou seja, não é possível pensar na história da loucura sem articulá-la ao lugar e ao tempo histórico em que ela foi construída.
Neste sentido, não é possível pensar uma mudança da atenção em saúde mental, sem pensar no papel que o território e o tempo histórico cumprem neste processo.
(En)Cena – Professor, quando o tema ‘território’ aparece na discussão sobre saúde mental, qual sentido é referido? Como entender esse território?
Silvio Yasui – Quando falamos de território nos referimos bem mais ao conceito apresentado por Milton Santos, geógrafo, que explica esse conceito a partir de uma observação diferenciada. Neste sentido o território é entendido como um espaço das vivências, das atividades, da experiência de cada individuo, esta é a contribuição que emprestamos para falar sobre o tratamento aliado ao conceito de território, pois percebemos que o indivíduo que passa pela experiência do transtorno mental precisa manter essa relação com o seu território.
(En)Cena – Ainda persiste a idéia de que existe um lugar para o louco?
Silvio Yasui – Olha, se você sair agora por aquela porta (aponta a porta do estúdio de rádio) e perguntar para as pessoas que encontrar no corredor qual é o lugar do louco, posso lhe garantir que a maioria responderá que é um manicômio ou um hospital psiquiátrico, ou seja, a visão do local de internação, de segregação.
(En)Cena – A partir disto podemos dizer que o CAPS deve ser então um ‘não-lugar’?
Silvio Yasui – Olha esta é a idéia que tenho sobre o CAPS: ele cada vez mais deve se tornar uma estratégia e cada vez menos um local, um espaço. Isso justamente para lidarmos com essa conotação do território. É importante frisar que são 20 e poucos anos de história do CAPS, que começa como um serviço idealizado criado no estado de São Paulo e que só depois vira o modelo que se espalhou pelo Brasil, e muitos séculos de uma mentalidade que diz que tratamento em saúde mental é: remédio, internação etc.
(En)Cena – As décadas de 60 e 70 do século XX foram marcadas por diversos fenômenos sociais, políticos, econômicos. A trajetória do cuidado psicossocial também tem seu curso afetado por esses acontecimentos?
Silvio Yasui – A resposta anterior já contempla esta. Não é possível pensar a Reforma Psiquiátrica brasileira sem se referir ao processo de redemocratização do país, aos movimentos sociais, a luta contra a ditadura, enfim ao tempo histórico que produziu uma profunda reforma no Estado brasileiro que possibilitou a formulação e a implantação, nos anos pós-constituição de 1988, de várias políticas públicas, dentre elas a da saúde e da saúde mental.
(En)Cena – Professor, 24 anos depois do encontro em que se criou o Movimento Nacional da Luta Antimanicomial, em 1987, e 10 anos depois da Lei 10216/2001, como se encontra o cenário nacional relativo à saúde mental?
Silvio Yasui – Muita coisa foi feita e falta ainda muito a fazer. Esta frase sintetiza um pouco minha sensação de militante que esteve presente ativamente no Encontro de 1987. O fato de nossos projetos e ideais terem se transformado em política pública nos colocou uma imensa responsabilidade. Por outro lado, vivemos um tempo histórico de um certo retorno conservador, especialmente em algumas prefeituras. Isso leva a um cenário de intensos conflitos no campo da saúde, não apenas da saúde mental. Uma proposta de mudança tão importante como a da saúde não pode ser gerida por amadores ou por interesses políticos/pessoais mesquinhos. Não se muda uma realidade assistencial de décadas, sem que haja uma profunda e verdadeira implicação dos gestores, trabalhadores e usuários neste processo. E gestores e trabalhadores implicados e protagonistas de mudanças têm sido difícil de encontrar neste atual cenário.
(En)Cena – A respeito do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial, quais as considerações que devem ser feitas? Mudou-se a maneira de pensar inclusive o próprio movimento?
Silvio Yasui – Um pouco respondi na questão anterior. Mudaram-se as estratégias. Antes tínhamos experiências pontuais, inspiradas em ideais. Hoje, elas se transformaram em política ministerial. Com regras, financiamento e etc. Embora os ideais estejam contidos nas portarias, resoluções ministeriais, a sua concretização ficou esvaziada daquilo que mais se destacava no movimento: a paixão. Em certo sentido, tudo ficou um pouco mais burocrático. Neste sentido, acho que o movimento deve retornar no reencantamento de trabalhadores, usuários e gestores, a essa paixão pela mudança, pela invenção, pela ousadia que foram as marcas iniciais da Reforma Psiquiátrica.
(En)Cena – Professor, na sua visão com esse esforço em prol da mudança de mentalidade, chegaremos em um estágio aonde o indivíduo considerado louco vai deixar de ser encarado como sujeito que tem de ser separado do meio social?
Silvio Yasui – Eu tenho que acreditar que isso vai acontecer não só com o louco, mas com o negro, com o homossexual, enfim… com as parcelas da população que sofrem algum tipo de preconceito. Toda essa discussão nos leva, na verdade, à uma discussão maior que fatalmente requer que encaremos o processo civilizatório de uma forma mais ampla. Mas é esse horizonte ético que devemos percorrer, e é isso que mantém as constantes transformações em curso.