A construção social da maternidade

Júlia Ruffo Aires de Sena: ruffo.julia@mail.uft.edu.br

Ana Cristina Serafim da Silva: anacris_serafim@uft.edu.br

No Brasil, o conceito de gênero também surge no século XX, e fora apresentado como uma categoria analítica, sendo o nome dado à imagem que a sociedade construiu do masculino e do feminino. Sendo assim, Safiotti (2006) pontua que a introdução do conceito de gênero ocorreu pela recusa do determinismo biológico, a repulsa sobre “a anatomia é o destino” que era imposto naquela época. Dessa maneira, a sociedade e os pesquisadores passam a dar uma atenção maior à relação estabelecida entre homem-mulher e suas implicações.

A partir disso, o sujeito passa a ser considerado como um ser histórico e social, onde suas relações são ponderadas pelo gênero, mas também reguladas pela classe social, raça/etnia e pela sua multiplicidade. Assim como Scott (1988) pontua, o gênero é não somente como uma categoria analítica, mas também histórica, estabelecendo a cultura, as instituições sociais, a subjetividade e a ordem social como mecanismos envolvidos pela disposição dele. A autora completa sinalizando o gênero como essencial para a dinâmica das relações de poder e para estruturar simbolicamente toda a vida social.

Concomitantemente, Badinter (2011) pontua que os movimentos feministas começaram a se articular para que a maternidade passasse a ser vista de acordo com as condições econômicas, sociais e culturais das mulheres e da família em geral. Ademais, Akotirene (2019) pontua que esse fenômeno permite que se possa questionar preconceitos, desigualdades, submissões de gênero, de classe e raça e as violências estruturais da matriz colonial moderna da qual surgem. Desse modo, a terceira onda do feminismo foi marcada pela luta por espaços de atuação nas políticas públicas, assim como atendimento qualificado às mulheres de todas as classes e raças, inclusive aquelas que viviam em vulnerabilidade social (Sousa, 2015). 

Ariès (1986) disserta que é ao longo do século XVI que surge a ideia de hierarquização da família de acordo com as idades e, a partir de então, começa a ser retratado nas obras cenas que ilustravam não apenas o sentimento de infância, mas também o sentimento de família. Em vista disso, as gravuras começam a demonstrar quais as funções instituídas a cada um do seio familiar, no qual a mulher cuidava dos filhos ou da casa e o marido fazia as contas enquanto as crianças brincavam. Daí começa a ser introduzida a imagem da mãe cuidadora, a que vigia o filho no berço, que amamenta, a que limpa a criança, entre outras funções, além disso, também é inserida a imagem dos criados e das amas junto à família (Ariès, 1986).

Diante disso, a partir do século XVII, Ariès (1986) disserta que as pinturas passam a ser caracterizadas pela vida privada, pelo que ocorria dentro do lar doméstico, além da família ser relacionada somente aos laços de sangue e às vivências dentro de casa. Ademais, “essa evolução reforça os poderes do marido, que acaba por estabelecer uma espécie de monarquia doméstica” (1986, p. 214), onde era amparado pela legislação real a retenção do poder no que refere-se à esposa e aos filhos. Desse modo, há uma mudança nos hábitos cotidianos e na ordem social. Toda essa dinâmica social fora muito influenciada pelo Catolicismo, que tinha Maria como a virgem pura, submissa e obediente ao seu Deus e ao seu marido José, tendo assim como base a Sagrada Família.

Considerando a autoridade do discurso religioso, a maternidade era tida como algo extremamente sagrado, assim, Moraes (2021) traz que a arte em meados do século XIX representava o feminino ligado à essência maternal, transcendendo uma decisão inegável, uma atuação limitada na sociedade. Logo, na dinâmica familiar, a maternidade era naturalizada, tida como um dever social às mulheres, enquanto os homens tinham participação através do domínio. Junto à isso, […] “vários moralistas, filósofos, médicos e legistas falavam em nome de uma natureza feminina; em defesa da nação, começaram a pensar como deveria ser uma mãe e o que se poderia esperar dela” (MORAES, 2021, p.38/39).

Daí em diante, o Estado, a igreja e a medicina passam a ser dispositivos de controle às práticas maternas, onde incentivaram o cuidado pelas mães biológicas e atribuíam sentido à idealização do amor materno, assim como Moreira (2009) aborda que a mulher passa a ser vista como responsável por passar a moralidade para os filhos, cuidar do lar e prover obediência ao homem. Desse modo, a Igreja torna-se um dispositivo de controle e ordem social, onde estabelecia normas de conduta para o casamento pautadas no sistema patriarcal que considerava a supremacia do homem sobre a mulher, doutrinando as práticas femininas e estimulando a reprodução (Venâncio, 2004).

Dessa maneira, infere-se uma construção do feminino a partir da maternidade, assim como discorre Badinter (1985) quando destaca que a mulher é designada para a maternidade, mas não somente o ser-mãe, mas ser uma excelente mãe para ser uma excelente mulher. Como afirma Colares e Martins (2016), os sentidos atribuídos à maternidade passam a ser ligados ao amor e cuidado, considerando um valor ideal a ser seguido, sendo assim introduzido o mito do amor materno. Para Resende (2017), o mito do amor materno operou como um fator determinante para a sistematização da sociedade, visto que, mediante a crença irrefutável do amor natural, foram desenvolvidas normas sociais de comportamento que interessavam ao Estado.

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Resende e Bedran (2013) atribuem o surgimento do mito do amor materno como essencial para um movimento de dimensão econômica que influenciará tanto as regras sociais quanto a relação entre os indivíduos. Temos que o amor materno fora idealizado juntamente com o modelo padrão de família burguesa, que inclusive era regido pelo modo de produção capitalista. Para Badinter (1985), o amor materno se configura como um mito a partir do momento em que surge a valorização da ideia de instinto maternal e do amor natural de toda mãe pelo filho.

Essa alusão ao amor materno espontâneo perpassa gerações e possibilita ao Estado, através do capitalismo e do patriarcado, controlar os comportamentos das mulheres. Assim, a partir da crença irrefutável do amor materno, era possível além de controlar, punir aquelas que não seguiam a ordem social estabelecida, seja através da Igreja (pecado) ou do determinismo médico (patologia). Dessa maneira, o mito do amor materno é um dos maiores dispositivos de poder do sexo masculino sobre o sexo feminino.

Moreira (2009) destaca que no final do século XIX, com a ascensão do sistema capitalista e o advento da Revolução Industrial, a função da mulher que até então era privada à maternidade, começa a ser exercida em espaços públicos. Essa mudança se dá pelas modificações nos modos de produção, onde houve a necessidade da mão de obra feminina nas fábricas com intuito de aumentar a produtividade. Além disso, o autor aponta que no século XX, com as Guerras Mundiais, houve um aumento da mulher no mercado de trabalho, visto que os homens eram recrutados para lutar na guerra e as mulheres tinham que assumir as finanças familiares. 

Esses acontecimentos históricos foram necessários para que a mulher pudesse ter outras possibilidades além da maternidade, passando de um modelo tradicional para um modelo moderno de maternidade (Moreira, 2009). Dessa maneira, com o acesso à educação, ao mercado de trabalho e com a autonomia nos negócios, a mulher passa a ter variáveis funções na sociedade, mesmo que a figura feminina do lar ainda fosse predominante. Em vista disso, Simone de Beauvoir declara que “ninguém nasce mulher: torna-se mulher”. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade” (2009, p. 312).

Para a autora citada, o amor materno é constituído a partir da relação estabelecida entre mãe-filho e não algo natural que decorre de todas as mulheres, bem como o ser-mulher, sendo algo construído socialmente a partir das relações e do trabalho. E é por isso que Akotirene (2019) disserta sobre a interseccionalidade como fator importantíssimo para o questionamento da mulher universal, visto que, de acordo com a cor/raça e classe, essa maternidade pode ser afetada positivamente ou negativamente, mesmo a maternagem obrigatória sendo um aprisionamento imposto pelas mazelas sociais para todas as mulheres.

Para Badinter (2011), foi a partir dessa mobilização feminista que a maternidade passou a ser desassociada ao destino feminino, podendo ver novos sentidos no ser-mulher para além da maternidade. Para isso, foram constituídos os princípios e normas dos direitos reprodutivos pela Constituição Federal do Brasil e pelos Direitos Humanos. Posto isso, Scalone (2001) destaca que no fim do século XX, com o surgimento dos métodos contraceptivos, há uma renúncia significativa da maternidade, proporcionando para as mulheres a possibilidade de escolha no âmbito pessoal e profissional. Desse modo, os avanços tecnológicos surgem como grande aliado das lutas feministas, uma vez que através das pílulas anticoncepcionais e dos métodos contraceptivos, permitiu-se a prevenção e escolha sobre ter filhos ou não (Barbosa; Rocha, 2007).

Ademais, o surgimento dos utensílios de apoio para cuidados dos bebês, como a mamadeira e o carrinho de mão, permitiam que as mães pudessem dividir as tarefas com terceiro e permanecer nas atividades do mercado de trabalho para além das domésticas. Daí em diante, no século XXI, Badinter afirma: “é como se a criança não fosse mais a prioridade das prioridades” (2011, p. 31). Sendo assim, pode-se atribuir outro valor à maternidade, que surge não como destino social, mas como uma escolha que divide espaço com diversas variáveis sociais e pessoais, bem como o adiamento da maternidade ou optar por não ser mãe. Todavia, essa escolha não é tão espontânea assim, visto que sofre influências externas o tempo inteiro. 

Além disso, Badinter (2011) aborda sobre o ressurgimento silencioso da visão naturalista a partir das práticas médicas e religiosas. Essas práticas circundam muito no âmbito da moralidade, que gira em torno do que é certo ou errado para determinada instituição social. Desse modo, vemos que a postura naturalista pode convocar novamente a ideia de amor instintivo, inato de mãe para filho, em que ela fica totalmente responsável pelo desenvolvimento saudável do filho e deve ser uma “boa mãe”. Em contraste, aquelas que não seguirem tal modo são atravessadas pela culpa moral.

Concomitante a isso, percebe-se, no século XXI, duas visões de mundo diferentes sobre a maternidade. Enquanto os discursos naturalistas e religiosos introduzem que a mulher mãe tem que ficar mais tempo com os filhos durante seu crescimento e desenvolvimento, o discurso capitalista aponta a necessidade de aumento de produção através da mão de obra feminina. Por isso, é preciso considerar na contemporaneidade, a pluralidade de discursos sobre as maternidades para que não reincida no determinismo biológico e nas armadilhas do capitalismo. 

Assim, entende-se que a maternidade é uma condição de instabilidade de sentimentos, pois pode ser gerada pelo meio e pelo que é internalizado a partir do meio, sentimentos satisfatórios ou insatisfatórios sobre o ser mãe. Por isso, é preciso compreender a maternidade em sua totalidade, considerando em como a maternidade foi construída, nas relações interpessoais da mãe e do filho, se há ou não rede de apoio, entre outros aspectos. Ademais, considerando a perspectiva interseccional, é importante pensar que a maternidade será vivenciada de modos diferentes, visto que são pessoas diferentes e em contextos diferentes de vida.

REFERÊNCIAS

AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. Pólen Produção Editorial Ltda, 2019.

ARIÈS, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro, Guanabara, 1986

BADINTER, E. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985

BADINTER, E. O conflito: a mulher e a mãe. Rio de Janeiro: Record, 2011.

BARBOSA, P. Z.; ROCHA, M. L. Maternidade: novas possibilidades, anti-gas visões. Psicol. clin. Rio de Janeiro , v. 19, n. 1, p. 163-185, 2007

COLARES S. C. S; MARTINS R. P. M; Maternidade: uma construção social além do desejo. Revista de Iniciação Científica da Universidade Vale do Rio Verde, Três Corações, v. 6, n. 1, p. 42-47, 2016

MORAES, M. Maternidade: Uma Análise Sociocultural. Editora Appris, 2021.

MOREIRA, R. Maternidades: os repertórios interpretativos utilizados para descrevê-las. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Universidade Federal de Uberlândia, Programa de Pós-Graduação em Psicologia Uberlândia, 2009.

RESENDE, D. K. Maternidade: uma construção histórica e social. Pretextos-Revista da Graduação em Psicologia da PUC Minas, 2(4), 175-191, 2017

RESENDE, D. K., BEDRAN, P. M. As construções da maternidade do período colonial à atualidade: uma breve revisão bibliográfica. Revista Três Pontos, 14(1), 2013.

SAFFIOTI, H. I. B. Ontogênese e filogênese do gênero. 2006.

SCAVONE, L. A maternidade e o feminismo: diálogo com as ciências sociais. Cadernos pagu, 137-150, 2001.

SCOTT, J. W. (1986) Gender: A Useful Category of Historical Analysis, American Historical Review, Vol. 91, Nº 5. Também publicado em HEILBRUN, Carolyn G., MILLER, Nancy K. (orgs.) (1988) Gender and the Politics of History. Nova Iorque: Columbia University Press, p. 28-50. Versão brasileira: Gênero: uma categoria útil de análise histórica, Educação e Realidade. Porto Alegre: UFRGS, 1990.

SOUZA, S. MARTINS, T. Patriarcado e capitalismo: uma relação simbiótica. Temporalis, v. 15, n. 30, 2015.

VENÂNCIO, R. P. A maternidade negada. In: PRIORE, M.D. (Org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, cap. 6, p.159-186; 2004.