O que dizer do amor no mundo pós-moderno? A pós-modernidade trouxe consigo a onda do imediatismo, das trocas constantes. Sendo assim, o costume de “concertar” foi substituído pelo de “adquirir um novo”. Vemos isso explicitamente em várias situações do cotidiano, não sendo diferente nas relações “amorosas” atuais. As quais se tornaram tão líquidas que quem troca frequentemente de “amor” são consideradas pessoas habilidosas.
Seguindo essa onda, e com o intuito de aperfeiçoar suas habilidades, as pessoas trocam tão facilmente de relacionamento com o objetivo de adquirir experiência para que possa fazer com que seu próximo relacionamento seja mais emocionante e excitante. De acordo com Bauman (2004, p. 11)
“Essa é, contudo, outra ilusão… O conhecimento que se amplia juntamente com a série de eventos amorosos é o conhecimento do “amor” como episódios intensos, curtos e impactantes, desencadeados pela consciência a priori de sua própria fragilidade e curta duração”.
É possível ver que tal atitude não é a busca pelo amor em si, pois se assim fosse essa compulsão por experimentar novos amores tornar-se-ia em experiências frustrantes e não em uma forma de prazer.
Segundo Bauman, (2004, p. 12) “o amor é uma hipoteca baseada num futuro incerto e inescrutável” sendo possível então dizer que, por se tratar de algo tão misterioso e incerto tornou-se líquido, pois o medo exacerbado desse futuro inconstante faz com que as pessoas sejam rasas em seus relacionamentos, com o desejo de não se frustrarem posteriormente.
Outro fator que traz certa aversão a um relacionamento sério e duradouro é o compromisso, que é exigido nesse caso, e a insegurança. Sendo que para manter esse compromisso é necessário abrir mão de várias coisas e ter que adaptar-se a outras, assemelhando-se a um investimento que pode ser cheio de riscos, trazendo incertezas e inseguranças. Estar em um relacionamento traz inúmeras incertezas, o que a solidão por sua vez também traz.
Bauman em sua obra compartilha da mesma ideia de Lévi-Strauss em relação ao sexo, sendo ele o encontro da natureza e da cultura. Contudo o desejo sexual para o autor é incontestavelmente social pois se estende em direção ao outro e necessita dele para não se sentir incompleto. Infelizmente nossa cultura produziu o que o sexólogo Sigusch, chama de ciência sexual, com um olhar frio e distante prometendo tirar o homem sexual de sua miséria, mas apenas o tornando objeto natural de investigação científica.
Atualmente a medicina compete com o homem no papel de reprodução oferecendo catálogos de doadores de esperma atraentes, para que você reproduza sem necessitar do ato sexual, fazendo assim uma separação do sexo e a reprodução. O autor reflete sobre a influência da sociedade consumista e imediatistas, em que filhos deixaram de representar bons investimentos, e pontes entre a mortalidade e imortalidade (hereditariedade, legado de uma família) e passaram a ser objetos de consumo emocional. Todo objeto a ser consumido tem seu custo, e o custo de ter filhos tem se tornado cada vez mais alto na líquida modernidade em que vivemos, tanto o custo monetário quanto o custo emocional. Se dar conta de tal compromisso tem causado diversos conflitos até mesmo patologias.
Este autor assim como afirma a separação do sexo e a reprodução, concorda com a ideia de Erich Fromm, sobre a separação entre o sexo e o amor. Devido esta separação tem se tornado algo frustrante, pois a união dos dois era a única maneira de ter uma fusão genuína. O sexo nos dias atuais tem ganhado cada vez mais sua independência de outros domínios da vida, o que Bauman chama de sexo puro que seria algo sem restrições, consequências, sendo apenas para prazer e alegria. O que ele critica mostrando através do relato do terapeuta Volkmar que esta pureza nada mais é do que uma falsa felicidade.
Através da liquida racionalidade moderna, os compromissos duradouros tem sido visto como limitadores e opressores, e a única forma deste posicionamento mudar, seria libertar o sexo da soberania da racionalidade do consumidor. A característica principal do consumismo, é usar e logo em seguida descartar, assim abri espaço para algo mais novo e melhor, isto favorece a rotatividade e a leveza. O sexo puro tem se adaptado a esses padrões de compra, garantindo segurança e libertação das restrições, um sexo seguro. A relação sexual de curta duração, apenas um episódio, seria livre de contágio mais repleto de incertezas.
As consequências da líquida modernidade não param por aí, a cultura nos nossos dias tem se tornado algo maleável da qual não se pode escapar, mas o que é herdado biologicamente é apenas uma questão de escolha. Coloca o homem em um dilema de qual identidade sexual irá assumir, e na facilidade de se não se sentir satisfeito pode mudar a qualquer momento, digamos o foco principal está na “alterabilidade”. Esta facilidade trás consigo o sentimento de incompletude e irrealização contínua, pois esta ansiedade não tem fim é como um veneno.
Bauman faz uma crítica ao uso de celulares e redes sociais que se tornaram constantes, mas tem afastado as pessoas do contato real, do compromisso, tornando as conexões breves e banais. As conexões virtuais estabeleceram um padrão para as outras proximidades, agora a proximidade pessoal, face-a-face não parece ser tão vantajosa quanto a virtual. Pois dispensa as habilidades necessárias que uma proximidade pessoal precisa, e o desuso destas fazem que sejam esquecidas. Até namorar é feito de modo virtual, assim a pessoa está livre de remorsos, perdas e sofrimento, pelo fato de poder terminar escolhendo a opção deletar, é o que o autor coloca como a principal vantagem do namoro virtual.
A economia tem imposto padrões sobre os homens que agora para serem aceitos, e reconhecidos tem a obrigação de entrar no jogo do consumismo. Os vínculos passam a ser simples mercadorias deixando de satisfazer a necessidade de convívio, sendo, é claro, controlados pelo mercado. A solidariedade a amizade são vistas hoje como algo a se combater pela economia, pois os seres humanos são vistos como objeto de consumo.
Freud em ‘O mal-estar na civilização’ traz a ideia de que vivemos em uma civilização onde todos estão preocupados com seus próprios interesses e buscam a todo o momento a sua felicidade pessoal. Esse seria o tipo de razão promovida por nossa civilização, que muito contrasta com o conceito de “amar o próximo como a si mesmo”. Pois para algo ser aceito como preceito fundador de uma civilização, tem que fazer sentido, e segundo ele essa concepção que vem da teologia é algo absurdo. Nós só amamos quem por nós é considerado merecedor, e devido considerarmos que no outro a quem amamos, há tantas semelhanças conosco, que acabamos amando neles o ideal de nós mesmos. Dessa forma o que torna ainda mais difícil amar o outro (que pode ser qualquer pessoa, inclusive um estranho) é não identificar nele um sentimento recíproco, ou a mínima consideração por nós. Essa forma de amar é então contrária a natureza humana, portanto é considerado um ato de fé que segundo Bauman “o ser humano rompe a couraça dos impulsos, ímpetos e predileções ‘naturais’”.
Esse salto de fé é o ato fundador da humanidade. Deparamos-nos agora com uma passagem decisiva do instinto de sobrevivência para a moralidade. O amor-próprio é considerado uma questão de sobrevivência, pois nos permite lutarmos para nos mantermos vivos, a “agarrar a vida”, nos torna resistentes. O conceito de amar o próximo com a si mesmo, “torna a sobrevivência humana diferente daquela de qualquer outra criatura viva” segundo Bauman. Mas para desenvolvermos o amor-próprio precisamos ser amados por outros. E quando há uma recusa desse amor gera em nós uma auto-aversão.
Vivemos em uma sociedade que ao longo de toda a sua história houveram muitos episódios de desumanidade, como quando no texto é citado a morte de meio milhão de crianças em função do bloqueio militar imposto pelos Estados Unidos ao Iraque, regado de discursos desumanos onde se tentou justificar um ato horrendo nas palavras da embaixadora norte-americana Madeleine Albright que disse ao ser interrogada acerca do trágico acontecimento: “achamos que era um preço que valia ser pago”. Não existe se quer humanidade’ nesse discurso.
A forma de relacionamento na contemporaneidade é descrita por Anthony Giddens como “relacionamento puro” baseado pelo interesse do que cada um pode ganhar, na condição de poder ser rompido a qualquer momento e só tem uma continuidade se ambas as partes estiverem proporcionando satisfações suficientes. As relações estão se tornando cada vez mais frágeis, sem confiança, sem um compromisso visando um futuro duradouro.
Relações barradas
A liquidez moderna e seus aspectos xenofóbicos moldam a sociedade a um longo período, porém tal modelagem na atualidade atua como um vulcão em erupção. Totalmente em vigência a discriminação dos povos imigrantes ganha cada vez mais páginas de jornais e noticiários, tais povos tornam-se notícia a todo instante.
Diante toda divulgação da calamidade ocorrente estão os olhos atentos dos espectadores, leitores, internautas que recebem a notícia e em algumas ocasiões demonstram espanto, choque (tais sentimentos que denotam susto estão cada vez mais escassos, atribuição está à continuidade sucessiva dos acontecimentos), porém voltam a sua rotina comum. Quem está tomando o café da manhã no primeiro momento ao abrir a página do jornal experimenta a sensação de engasgo, nó na garganta, mas alguns instantes depois continuam a se deliciar com seu desjejum e aquelas pessoas de histórias impactantes, deprimentes se tornam insignificantes durante o decorrer do dia, são esquecidas, é como se nunca tivessem existido, oferecer ajuda se torna fora de cogitação.
São pessoas frágeis, desgastadas, violentadas que experimentam o ódio mortal de toda uma nação. Perambulam buscando alento, a esperança de um dia obter um país, uma cidade, um lar se torna cada vez mais uma utopia. Não possuem uma terra, na busca da fuga do sofrimento se submetem a todo tipo de situação, são renegadas pelos seus, o local de partida já não às querem mais, o local de destino repugnam sua presença. E assim tais povos vagam em uma imensidão de desalento demarcada por lonas e barracas que podem ser desmontadas a todo o momento, os campos de refugiados.
Afirmar que há um sentimento repugnante perante os imigrantes talvez seja um termo forte demais, porém não é. Cada vez mais a culpa de toda desgraça ocorrida em um continente, território, país recai sobre os refugiados. Ninguém ousa recebê-los, pois seria como receber uma doença contagiosa mortal. O poder público por sua vez desempenha o papel de exclusão com excelência, tirando o máximo de proveito possível, consegue eleição, reeleição com o discurso xenofóbico de ataque. “ O poder de excluir não seria um marco da soberania se o poder não tivesse primeiro se unido ao território.” (BAUMAN, 2004). Os governantes desviam o foco de toda calamidade existente em seu próprio governo, atribuindo a culpa de todos os males aos recém-chegados.
E se todo esse investimento contra a entrada e permanência fosse revestido em políticas de ajuda, se todo recurso financeiro direcionado para construção do muro entre fronteiras, por exemplo, fosse remanejado para construção dessa população sem perspectiva. Talvez assim não só o país seria grande novamente, o ser humano teria a chance de entrar em estado de evolução.
Vivencia-se atualmente um estado de urgência, onde a chama que busca por mudanças queima ardentemente. A falta de humanidade é uma problemática real vivenciada cotidianamente. A onda do individualismo, a globalização, acabou corroendo a empatia pelo próximo, evidenciando assim que a fase atual é uma das mais críticas e lamentáveis das fases já vividas no decorrer do trajeto da vida humana.
REFERÊNCIA:
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.