A canção Aos Nossos Filhos, composta por Ivan Lins e Vitor Martins em 1985 (ano do fim da ditadura instaurada pelos militares) traz inúmeras reflexões a respeito do padrão de funcionamento familiar adequado à época – a saber, o mito familiar – bem como a nova postura adotada pelo eu lírico (possivelmente, a partir de novas reflexões e do modelo de família ter sofrido uma série de mudanças) a ponto de o mesmo pedir perdão. Provavelmente a progenitora é a autora desse pedido.
As autoras Narvaz & Koller (2004, p. 149) afirmam que:
Cada família tem suas histórias, tem seus romances e seus segredos, que se repetem e são recontados como numa saga, numa história mítica transmitida de geração em geração. São histórias de amor, de dor, de luta, de conflitos, de união, de contradições e sínteses possíveis. São romances que desvelam e encobrem as identidades, ora para o mundo, ora para a própria família e seus membros. Alguns segredos são anedóticos, outros trazem consigo um profundo medo de serem revelados. São histórias de encontros e desencontros, de cumplicidades e conivências, de dominação e submissão. Para conquistar e reconquistar esta saga é preciso socializar esta história. É preciso recontá-la. Muitas vezes, é necessário que haja alteridade no espaço familiar para que este recontar se constitua em fator de promoção de saúde e proteção. Que sejam rompidas as barreiras das repetições doentias e hesitantes para garantir famílias mais resilientes e capazes de superar novos desencontros e avizinhamentos intradomésticos perversos.
Tal perspectiva será tomada como basilar para o desenvolvimento do presente texto. É somente a partir da sua existência do respeito e seu adequado manejo (no caso, respeito à forma de pensar e se comportar da época vigente) que será possível a posterior superação/mudança da estrutura e assim novas histórias familiares/novos estilos de vida passarão a existir. Desta forma, a canção nos traz uma reflexão que será pautada nas ideias de Narvaz & Koller (2004) e Walsh (2005).
Dessa forma, o primeiro trecho da canção traz a seguinte mensagem:
Perdoem a cara amarrada (pouco envolvimento afetivo)
Perdoem a falta de abraço (pouco contato físico)
Perdoem a falta de espaço (relação autoritária)
Os dias eram assim (conformidade com a época vigente/ditadura militar)
Idealmente, na família tradicional de nossa estrutura social, os processos de submissão e aceitação dos valores e de controle dos pais são naturalmente apresentados como necessários. Ensinando a submissão desde o início da vida, essa forma de relação (leia-se dominação) se transfere para outras esferas da vida. Assim, produz filhos obedientes – futuros cidadãos sem voz, submissos a toda e qualquer autoridade (BORDIEU, 1999; REIS, 1985). Dessa forma, o eu lírico justifica o repasse na maneira de contato, afinal, os dias eram assim.
Perdoem por tantos perigos (ausência ou pouca proteção)
Perdoem a falta de abrigo (pouco acolhimento)
Perdoem a falta de amigos (ínfima permissão de contato externo)
Os dias eram assim
A crença predominante no núcleo familiar em questão possivelmente correspondia a um distanciamento físico e emocional, além da imposição de regras incisivas. Walsh (2005) diz que é a partir das crenças compartilhadas no ambiente doméstico que o indivíduo compreende o mundo de forma peculiar e passa a agir sobre o mesmo. Assim, o eu lírico transmite à (o) filha (o) a forma de ensinar, se portar e tocar aprendida.
Perdoem a falta de folhas (a seca pode se referir ao funcionamento familiar insatisfatório)
Perdoem a falta de ar (pouca permissividade de sair)
Perdoem a falta de escolha (pouca possibilidade de escolher, poucas opções)
Os dias eram assim
Walsh (2005, p. 45) afirma: “as profundas raízes sociais e culturais de nossas crenças em geral dificultam sairmos do nosso próprio contexto para observá-lo e tecer comentários sobre ele”. Diante disso, podemos supor que a autora hoje (quando saiu do ambiente que estava inserida) consegue entender que, no processo de criação, poderia ter se comportado de forma mais terna, ter proporcionado um pouco mais de liberdade e ter viabilizado mais possibilidades de operação no mundo.
E quando passarem a limpo (a história pode ser reescrita)
E quando cortarem os laços (os condicionantes podem ser superados)
E quando soltarem os cintos (liberdade de sair de casa, tomar próprias decisões, se libertar da opressão social)
Façam a festa por mim (vivam o que nunca vivi, vocês podem ir além!)
Os mitos familiares trazem forte influência sobre o atual modo de agir do membro de dada família. À vista disso, entendemos que por mais debilitadora que a crença basilar possa ser, é possível, por meio das vivências ou psicoterapia, trazer ressignificação e, então, ser ativo diante das situações difíceis que a vida nos impõe. O eu lírico talvez não consiga mais viver o que foi reprimido (idade, coragem, possibilidade), mas pede que o filho possa fazê-lo. Tal pedido remete à ideia de o mesmo ser percebido como uma extensão dela.
Walsh (2005) diz:
Os mitos familiares podem ser capacitadores ou debilitadores, dependendo dos temas que os constituem e da sua capacidade de resposta a novas circunstâncias. Os clínicos treinados para buscar influências negativas da família de origem precisam encorajar os clientes a buscar histórias, heróis e legados multigeracionais positivos que possam inspirar esperança ação corajosa diante da adversidade.
E quando largarem a mágoa (não se vinguem da opressão imposta, dê a eles a oportunidade de libertarem a si)
E quando lavarem a alma (quando conseguirem ver a partir de outra perspectiva, festejem/vejam/experienciem por mim)
E quando lavarem a água
Lavem os olhos por mim
O pedido é enfatizado. Apesar de não sabermos o que gerou esse momento de insight – pode ser um evento que a levou a ter a percepção de considerar que não viveu como poderia, arrependimento, remorso etc –, é nítida a observância de mudança na maneira de enxergar. Uma possibilidade que só a reflexão pode ocasionar.
Como bem coloca Walsh (2005, p. 47):
Seja uma catástrofe natural, uma tragédia pessoal ou uma dificuldade persistente, a adversidade gera uma crise de significado e uma destruição potencial da integração potencial. Essa tensão precipita a construção ou reorganização da nossa história de vida e das nossas crenças.
Quando brotarem as flores (crescimento, progresso, conquista)
Quando crescerem as matas
Quando colherem os frutos
Digam o gosto pra mim
Digam o gosto pra mim
O eu lírico termina a canção com a reafirmação da súplica inicial. É extremamente instigante a observância do processo explanado. Nos recorda que somos sujeitos vivos, podemos ser ativos diante das possibilidades de existir! Cabe ressaltar que o padrão de dinâmica familiar aprendido com nossa família não é errado, no entanto, o aprendizado dos mesmos não quer dizer que aplicaremos todas as ideias e princípios a nós outorgada.
REFERÊNCIAS:
NARVAZ; M. G. KOLLER, S. H. Famílias, gêneros e violências: desvelando as tramas da transmissão transgeracional da violência de gênero. Rio Grande do Sul, v. 2, p. 149-176, 2004.
WALSH, F. (2005). Fortalecendo a Resiliência Familiar. São Paulo: Roca.