Aproximações e distanciamentos: além da insubstancialidade

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De acordo com Joaquim Monteiro (2015), até bem pouco tempo a Filosofia da Religião se calcava, basicamente, em problemáticas que tinham como base a dinâmica das construções argumentativas em torno do teísmo, seja na tentativa de corroborá-lo, seja na tentativa de desenvolver um arcabouço de conhecimentos que gira em torno de conceitos como “essências, substâncias e Verdade” (MONTEIRO, 2015, pág. 3), que invariavelmente tenderiam a convergir para a questão da existência (ou inexistência) de Deus. Assim, elas [as tendências] teriam desenvolvido um quadro temático

extremamente limitado na medida em que consideram o teísmo como a questão central e a essência auto evidente da religião. A meu ver, este posicionamento das tendências dominantes da filosofia da religião acaba limitando-se à reconstrução de algumas temáticas tradicionais, obstaculizando desta forma um questionamento mais radical a respeito do que constitui a essência das religiões. (MONTEIRO, 2015, pág. 3)

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Joaquim Monteiro diz que não há dúvidas de que “a filosofia precisa interessar-se pelas asserções de verdade das religiões” (idem, pág. 4), mas que as perspectivas e problematizações levantadas neste âmbito teriam que levar em conta as principais configurações antagônicas – históricas e/ou contemporâneas – para que se evite cair numa postura limitante, numa polarização entre o teísmo e o materialismo mecanicista. Haveria, portanto, outras matizes para delinear tal diálogo. Monteiro lembra que o Budismo, por exemplo, não se enquadraria em nenhuma destas duas vertentes. Para ele,

o discernimento da impermanência, da insatisfatoriedade e do vazio de categorias como os “agregados” […] exclui de forma radical a perspectiva teísta, mas ao mesmo tempo, a distinção clara presente na filosofia budista entre os “dharmas da mente” e os “dharmas da forma”, assim como a resoluta negação de que os “dharmas da mente” possam se extinguir naturalmente constitui-se como uma clara recusa de qualquer perspectiva de um materialismo mecanicista. (MONTEIRO, 2015, pág. 4)

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O monge trapista Thomas Merton estabeleceu profícuo diálogo com os budistas

As implicações primeiras desta constatação, de acordo com Monteiro, é a de que “na medida em que uma das religiões mundiais explicita um ponto de vista crítico em relação tanto ao teísmo quanto ao naturalismo esse ponto de vista não pode ser ignorado por uma filosofia da religião” (idem, pág. 5). Com isso, sendo o Cristianismo – e todas as suas vertentes filosóficas – a maior expressão atual do teísmo, e embora as tendências da Filosofia da Religião tenham atingido elevados patamares de rigor e sofisticação “através dos procedimentos da filosofia analítica” (idem, pág. 3), elas precisam de contraposições filosóficas radicais para que possam levar algumas questões até as suas últimas consequências. Desta forma,

Uma interrogação radical a respeito da essência da religião não pode ignorar de forma alguma que o pensamento budista representa o contraponto filosófico mais forte ao ponto de vista dos monoteísmos. Uma filosofia da religião que ignore esta realidade do Budismo como o mais forte e mais sistemático contraponto ao teísmo entre as religiões mundiais está fracassando de forma essencial em sua interrogação sobre a essência da religião por mais rigorosos que possam ser os seus instrumentos lógico-semânticos.  (MONTEIRO, 2015, págs. 4 e 5)

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Monges cristãos visitam comunidade budista (tibetanos) no Nordeste da Índia

Joaquim Monteiro diz, no entanto, que “não é fácil pensar o vínculo necessário existente entre a filosofia e a religião em meio ao pensamento budista” (idem, pág. 5).  Isso porque, no cerne do Budismo, pressupõe-se “uma passagem da ignorância para a sabedoria mediada pelo ensinamento do Buddha” (idem, pág. 5). Por esta ótica, o exercício da filosofia se dá “como um processo de auto conhecimento e de auto transformação” (idem, pág. 5). E embora essa definição possa parecer vaga, é importante destacar aqui que a filosofia budista “não só pressupõe um conjunto de conceitos articulados de forma clara e rigorosa, como possui também uma história do desenvolvimento de suas temáticas” (idem, pág. 5).

A meu ver, o campo das temáticas da filosofia budista se define por um lado através da consolidação da “teoria dos dharmas”16 na escola Sarvãstivãda, e por outro, em função das sucessivas críticas desenvolvidas em relação a esta teoria por escolas posteriores como a Sautrântica e a Yogacãra. Nesse sentido, é possível falar não só de temáticas teóricas constitutivas da filosofia budista, como também de uma história da filosofia budista. (MONTEIRO, 2015, pág. 5)

 De acordo com Joaquim Monteiro, há uma explicação sobre a “teoria dos dharmas”, empregada num âmbito mais restrito [de estudo do Budismo], que aponta para a categorização dos “5 agregados”, das “12 entradas” e das “18 esferas”, sendo estas últimas uma tentativa de abarcar a chamada “gênese condicionada”. Esta divisão elucida uma das questões centrais para a discussão filosófica oriental, a da diferenciação entre dharma e fenômeno.

Especificamente sobre as “18 esferas”, trata-se das

6 bases sensoriais (os cinco sentidos mais a mente entendida como um processo de captação dos processos mentais imateriais), os 6 objetos (os objetos dos cinco sentidos e os eventos mentais sem referência sensorial) e as 6 consciências que surgem da interação entre as bases e os objetos. Essa categoria analítica possui dois aspectos importantes. No primeiro deles, ela inclui toda a experiência possível, mental e sensorial. Ou seja, essa categoria pressupõe a capacidade de abarcar em si a totalidade da experiência possível. Na segunda, ela pressupõe a análise das características comuns de todas as “18 esferas”, ou seja, da impermanência, da insatisfatoriedade e do vazio de ãtman comuns a todas essas “18 esferas”. Essa segunda característica nos conduz ao problema de sua relação com o mais importante objeto de negação na filosofia budista: o conceito de ãtman”. (MONTEIRO, 2015, pág. 7)

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Vale destacar que, ao não aceitar o conceito de ãtman, a negação se dá pela própria categorização das esferas, tendo em vista que a existência do “ãtman só poderia se dar como algo idêntico às esferas, como idêntico a alguma das esferas em particular ou como distinta de todas as esferas” (Idem, pág. 7). Desta forma, caso uma existência seja pensada pela ótica das “esferas”, como cada “uma das esferas está associada a um domínio específico da experiência, existe aí o referencial concreto de consciências auditivas, mentais ou visuais mas absolutamente nada que possa tornar-se o referencial do ãtman” (idem, pág. 7).

Desta forma, levando-se em conta que todas as esferas são “impermanentes e insatisfatórias nenhuma delas apresenta a característica do ãtman”. Já sobre a diferença entre dhama e fenômeno, Monteiro diz que a categorização pelas “18 esferas” também acaba por elucidar os contrastes.

No que diz respeito ao conceito de “fenômeno” como aquilo que aparece ou aquilo que vem à luz, em contraste com a “ideia do gato” presente no mundo platônico das ideias, o gato concreto sujeito ao nascimento e à morte como um indivíduo seria o “fenômeno”. Ou seja, conceito de gato como “fenômeno” implica em sua unidade. No entanto, o conceito das “18 esferas” decompõe essa unidade em uma multiplicidade. (MONTEIRO, 2015, pág. 7)

Desta forma, em Monteiro (2015), a aplicação do conceito de “dharma” à análise da experiência conduz necessariamente à dissolução da unidade em multiplicidade. No entanto, surge um problema ainda não resolvido e que, portanto, poderia ser alvo de novas investigações em trabalhos futuros: é possível estabelecer mediações entre o autoconhecimento e autotransformação subtendido na filosofia budista com as provocações concretas de historicidade, ética e política?. Monteiro diz que esta indagação está em aberto e que aponta para um sentido de “liberdade absoluta” e “liberdade relativa”, no arcabouço filosófico budista.

 

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Psicólogo. Mestre em Comunicação e Sociedade (UFT). Pós-graduado em Docência Universitária, Comunicação e Novas Tecnologias (UNITINS) e em Psicologia Analítica (UNYLEYA-DF). Filósofo, pela Universidade Católica de Brasília. Bacharel em Comunicação Social (CEULP/ULBRA), com enfoque em Jornalismo Cultural; é editor do jornal e site O GIRASSOL, Coordenador Editorial do Portal (En)Cena.