Com que critério definimos o que é a loucura?

Quem nunca teve medo da loucura que atire a primeira pedra. Mas, afinal, o que é loucura? Eu sempre me questionei, desde pequena, e a cada questionamento mais medo eu tinha. Logo, cresci com um receio exagerado de ficar louca. Hoje como estagiária de psicologia em uma unidade de saúde mental contarei um pouco da minha experiência. Mas você deve estar se questionando ‘como uma pessoa que diz ter tanto medo da loucura escolhe logo tal área de atuação?! Esta pessoa deve ser louca!’. E na verdade talvez eu seja.

No meu primeiro contato com um paciente em crise e totalmente embotado eu senti todos os sintomas de ansiedade. Tive taquicardia, falta de ar, dormência no corpo, ânsia de vômito e tontura. Isto por que eu fiquei em contato por no máximo 5 minutos com a pessoa, mas pareceram 5 horas. Durante este ocorrido eu pensava a todo momento ‘O que eu estou fazendo aqui, eu só posso ser louca, vou surtar e logo eu que estarei internada neste local’. Caro leitor, a minha vontade era de sair correndo, e o ditado ‘se ficar o bicho pega e se correr o bicho come’ nunca me fez tanto sentido. Isto por que se eu ficasse em contato com o paciente eu poderia surtar, mas se eu saísse correndo eu já não estaria surtada?!

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As minhas 3 primeiras semanas foram as mais difíceis, pois eu internalizava alguns sintomas dos pacientes. E a cada dia o medo aumentava e até então eu já estava a me ‘diagnosticar’ com TAB – Transtorno Afetivo Bipolar, esquizofrenia etc. Pesadelos eram constantes, o medo de enlouquecer parecia me controlar, eu já não tinha mais vontade de estar no meu ambiente de estágio, era masoquismo. Até que, depois de muitos questionamentos e estudo, eu parei de negar tanto a loucura, e hoje tenho prazer em ir ao meu ambiente de estágio e a cada paciente que atendo eu percebo o quão estreito é o limiar entre a loucura e a sanidade mental, e deve ser por isto que ela amedronta tantos. Afinal, qualquer um pode surtar a qualquer momento.

A loucura seria alguém adoecido? Mas o que é saúde? Canguilhem (1943) diz que estabelecer uma norma para o que se é doença e o que se é saúde é uma utopia do ideal, isto por que o ideal levaria a perspectiva do perfeccionismo, e a perfeição não existe. Ou seja, é um ideal inalcançável. O autor complementa que se existe a doença, é por que primeiro existiu um doente, e este mesmo se queixou de algo que o incomodava.

Levando para um olhar psicanalítico, Freud (1976) diz que um sujeito saudável é aquele que tem a capacidade de se ajustar ao meio. Diante disto, um sujeito acometido por algum sintoma considerado doença pode se ajustar a mesma e viver tranquilamente. Poderia então um esquizofrênico e paranoico se ajustar aos seus sintomas e viver de acordo com os critérios de pureza da sociedade em que vive? Um exemplo é o matemático John Forbes Nash que ganhou o Nobel de matemática. O gênio afirmou que acreditava em aliens e que estes lhe deram uma missão de salvar o mundo. Forbes declarou: “As minhas ideias sobrenaturais vieram da mesma maneira que as matemáticas. Por isso, decidi levar as duas igualmente a sério”.

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Mas o que é normal e o que é anormal? Canguilhem (1943) afirma que normalizar seria impor uma exigência a uma existência. O anormal, do ponto de vista lógico, deve ser posterior à definição do normal, designando a negação deste. E complementa que a ausência de normalidade não constitui o anormal. Isto por que o patológico também seria normal, já que a doença está inclusa na experiência do ser vivo.

Isto me gerou outro questionamento: ‘A bíblia foi escrita por quem?’. Pelo próprio Jesus e por apóstolos usados por Deus, e estes mesmos declararam que Jesus os havia enviado para cumprir uma missão. Atualmente existem religiões em que se pode falar com mortos e que se tem diversas práticas sobrenaturais. E lhes pergunto: De acordo com o CID 20, não seriam estas pessoas esquizofrênicas? Por que multidões acreditam e respeitam os ditos apóstolos que nem mesmo conheceram e os toma como enviados de Deus, e atualmente a população zomba de pessoas que dizem terem recebido uma missão do próprio Jesus Cristo?

Em 2017 o jovem Bruno Borges, de 24 anos escreveu 14 livros escritos à mão. O jovem tinha em seu quarto um quadro em que era tocado por um extraterrestre e o mesmo falava para a mãe que estava escrevendo 14 livros que iriam mudar a humanidade de forma positiva. Nas redes sociais alguns hipotetizavam que ele seria a reencarnação do filósofo Giordano Bruno, já outros acreditavam que ele seria louco. E você, o que acha? Qual a diferença dos enviados com missões sobrenaturais de época em relação aos atuais?

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Canguilhem (1943) afirma que o estado patológico também é uma forma de viver. E assim como Freud, o sociólogo acredita que saúde é a capacidade de adaptar-se ao meio. O que seria o normal então? Para Canguilhem “o normal é viver num meio onde flutuações e novos acontecimentos são possíveis” (p.188). Logo, conceituar um ´´ideal normal“ acontece por meio da estatística. Sendo assim, o conceito de normal é singular e depende da concepção, ressignificação e tolerância de cada um, pois o todo faz parte da estatística, mas a maioria de cada pesquisa é vista como a ideal.

Bauman (1998) diz que aquele que não se adequa ao critério de pureza, o ideal social, é impuro. Logo a sociedade, na maioria das vezes, julga que a impureza corrompe o ideal social. O que ajuda a explicar o porquê da existência de manicômios. É uma maneira, aceita socialmente, de elimina-los como sinônimos da desordem. O sociólogo afirma:

A pureza é um ideal, uma visão da condição que ainda precisa ser criada, ou da que precisa ser diligentemente protegida contra as disparidades genuínas ou imaginadas. Sem essa visão, tampouco o conceito de pureza faz sentido, nem a distinção entre pureza pode ser sensivelmente delineada. (BAUMAN ,1998, pp.13-14)

Desta forma, o que desvia da linha da ideal causa medo, assim como o desconhecido. Você já se questionou que o porquê dos vestibulares de Medicina, Direito e Psicologia são tão disputados? Eu me atrevo a dizer que é por que o médico detém de certa forma o poder da vida, o advogado o poder da persuasão, o psicólogo o poder sobre a mente. São formas de ter o saber para ter o controle sobre o outro, mas tudo em nome da ciência. Ao meu ver o homem sempre gostou de ter o controle, tenta formular uma teoria para tudo, pois o inexplicável é angustiante, logo não é controlável, medido e explicado. É como se tivesse um estranho no meio. Para Bauman (1999, p.64), “o estranho é um membro… da família dos indefiníveis…”.

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Como já foi supracitado, para afirmar a existência de determinada doença, primeiro precisou existir o doente. Ou seja, cada doença existente foi estranha um dia. Segundo Bauman (1998, p.27):

[…] cada espécie de sociedade produz sua própria espécie de estranhos e os produz de sua própria maneira, inimitável. Se os estranhos são as pessoas que não se encaixam no mapa cognitivo, moral ou estético do mundo – num desses mapas, em dois ou em todos três; se eles, portanto, por sua simples presença, deixam turvo o que deve ser transparente, confuso o que deve ser uma coerente receita para a ação, e impedem a satisfação de ser totalmente satisfatória; se eles poluem a alegria com a angústia (…) se, em outras palavras, eles obscurecem e tornam tênues as linhas de fronteira que devem ser claramente vistas; se, tendo feito tudo isso, geram a incerteza, que por sua vez dá origem ao mal-estar de se sentir perdido – então cada sociedade produz esses estranhos.

Seria então a loucura plástica, em que muda com o tempo e depende das necessidades de cada comunidade, sociedade ou país? Antes a depressão era vista como loucura, era um tabu. Hoje em dia a visão tem mudado, isto por que muitas pessoas são acometidas pela mesma. Desta forma o social uniu forças e  técnicas de se ajustar ao meio são formalizadas. É até comum se ouvir: ´´quem nunca teve depressão?“. Há 13 anos  eu ouvia frequentemente que psicólogos eram para loucos, e hoje já ouço que psicólogos são justamente para quem não quer enlouquecer. 

Diante do que foi exposto, não quero anular a existência das doenças, muito pelo contrário, quero abrir um leque de reflexões sobre ´´nossas certezas“ em julgar que uma pessoa acometida por alguma psicopatologia deva ou não viver em sociedade. E sigo a me questionar o que é loucura, e se algum dia a esquizofrenia e o TAB acometerão tantas pessoas quanto a depressão, e dessa forma será aceita socialmente. Afinal, quem é estranho, a maioria ou a minoria? Sendo assim, seguimos ´´descobrindo novas loucuras“ e normalizando outras? Eis a questão. 

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Referências

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pósmodernidade. – Rio de Janeiro, RJ:Jorge Zahar Editor, 1998.

F20-F29 Esquizofrenia, transtornos esquizotípicos e transtornos delirantes. Encontrado em < http?//www.datasus.gov.br/cid10/V2008/WebHelp/f20_f29.htm > acessado em 01/05/2019

FULGÊNCIO, C., G1 AC — Rio Branco. Jovem deixou 14 livros escritos à mão e criptografados antes de sumir, diz mãe. Encontrado em < https://g1.globo.com/ac/acre/noticia/jovem-deixou-14-livros-escritos-a-mao-e-criptografados-antes-de-sumir-diz-mae.ghtml > acessado em 01/05/2019.

FREUD, S. O ego e o id. Rio de Janeiro: Imago; 1976. 

JULIO, R.A. A linha entre loucura e genialidade é mais tênue do que se imaginava. Encontrado em < https://revistagalileu.globo.com/Ciencia/noticia/2014/10/linha-entre-loucura-e-genialidade-e-mais-tenue-do-que-se-imaginava.html > acessado em 01/05/2019.

SERPA, O. (2003). Indivíduo, organismo e doença: a atualidade de “o normal e o patológico” de Georges Canguilhem. Psicologia Clínica, 15(1),121-135.

Psicóloga egressa do Ceulp/Ulbra. Pós-graduanda em Terapia de casal: abordagem psicanalítica (Unyleya). Colaboradora do Portal (En)cena.