Crise: é muito, mas não é clichê

Antes de se tentar construir quaisquer notas sobre o que seja uma crise, é necessário, primeiramente, escolher sob quais perspectivas se quer falar sobre o assunto, pois se não houver essa escolha, o conceito de crise ficará sempre submetido a um relativismo infundado ao invés de ser considerado como algo que envolve aspectos complexos, sem os quais não seria possível haver discussão a respeito.

A palavra ‘crise’ pode designar inúmeros significados, assim como podem existir vários tipos de crise, a exemplo: crises econômicas, existenciais, etárias, psicóticas, referentes a catástrofes da natureza etc.

A respeito dessa vastidão de crises e de seus diversos significados, Leonardo Boff  diz que “não se pode falar de crise referindo-se apenas a uma experiência individual e nem a um privilégio apenas de pessoas portadoras de sofrimento psíquico”, pois a crise pode se referir a um contexto global ou a uma circunstância pela qual todas as pessoas estão sujeitas a passar.

E mesmo que a perspectiva abordada nesse texto seja a de crise em Saúde Mental, ainda assim ela não se refere a uma experiência individual de alguém que está sofrendo ‘psiquicamente’, pois existem diversos atravessamentos provindos de outras partes, seja como desencadeantes ou apaziguadores da crise.

Alguns atravessamentos exemplificados referem-se à forma como a sociedade ampara o sujeito com crise, à forma como a família lida com essa crise, à forma como a crise é enxergada e trabalhada pelos profissionais da saúde, dentre outros aspectos que envolvem o sujeito em crise e seu meio ou território.

No entanto, ao pesquisar sobre a origem da palavra crise e sua evolução no decorrer da história, sabe-se que a ela foi apropriada uma conotação negativa que fez com que a mesma fosse genericamente entendida como uma situação que precisa ser remediada.

Esse aspecto por muito tempo regeu (e ainda rege algumas) intervenções em Saúde Mental, e as formas de lidar com esse evento chamado crise, ao longo do tempo, além de terem trazido repercussões como: categorizações, ideais de adaptação, noções de equilíbrio, de sanidade, de homeostase, interferiram no que é considerado “ideal” e aceitável para uma sociedade. Essas repercussões – ao serem consolidadas socialmente – fizeram no âmbito da Saúde Mental com que uma crise fosse percebida basicamente como um estado de anormalidade, de sofrimento, de periculosidade e de ruptura com as relações sociais, referentes apenas ao indivíduo, de maneira isolada.

Assim, ao tomar a Saúde Mental como parâmetro para se falar de crise, entende-se que todo o constructo conceitual consolidado a respeito dela (principalmente quando se trata de crise psicótica) dificultou aquilo que hoje a Atenção Psicossocial propõe e preconiza, que é enxergá-la como um possível momento para o aparecimento de novos sentidos para o sujeito, o que pode resultar, por fim, em um maior entendimento sobre si mesmo e sobre o seu momento, fazendo com que esse sujeito não só ressignifique o momento pelo qual está passando como também saiba lidar com os afetos que este momento, porventura, traz.

Referente a essa ressignificação e à característica que as crises têm de fazer emergir aspectos singulares do sujeito, os quais antes eram desconhecidos para si e para os outros, considera-se que os sentimentos que as pessoas em crise apresentam são particulares e relativos, o quê uma vez mais afasta a crise da noção de intervenções pré-estabelecidas (além de considerar que as manifestações de uma crise são de diversidades ímpares). Essa visão sobre crise, a qual tenta abandonar a conotação negativa a ela imposta, é fruto de premissas e ideais que fundamentam a Reforma Psiquiátrica e é nesse sentido que Foucault (1978) diz que o conceito de crise é construído histórica e culturalmente, de acordo com a contingência social do contexto em que uma sociedade está vivendo.

Dessa forma, a crise em Saúde Mental pode, muitas vezes, se deparar com um paradoxo conceitual, uma vez que há vários profissionais inseridos no contexto de produção de cuidado àquele que está em crise, cada qual com vertentes que muitas vezes não se comunicam de forma tão consoante. Como exemplo, o conceito de intervenção em crise de um enfermeiro pode, a princípio, divergir significantemente do conceito que um psicólogo tem, assim como um psicanalista pode entender a crise de uma maneira diferente da de um psiquiatra, mas, embora isso, as premissas ditas anteriormente (sobre a Reforma Psiquiátrica e sobre a proposta de Atenção Psicossocial) fazem com que não se dê tanta importância a uma possível conceituação de crise quando, em contrapartida, é preciso que se dê importância ao significado que ela pode ter de abrir ao sujeito um espaço de contorno e manobra contra os círculos viciosos de reprodução de seu próprio sofrimento. É nesse sentido que as intervenções em crise, na Saúde Mental, se encontram (ou poderiam e deveriam se encontrar), como mediadoras ou pontes entre o paciente, sua realidade e seu bem-estar.

Dessa forma, a crise em Saúde Mental pode ser amplamente entendida como um momento em que os afetos, sentimentos, gestos e comportamentos surgem de forma expressiva e em graus variados quanto a sua intensidade e manifestação, sabendo que esse momento também afeta a vida das pessoas que convivem com o sujeito. Ao ser entendida dessa forma, a crise afasta-se das tradicionais intervenções que tentam impor hábitos morais sobre os sujeitos, substituindo a ênfase nas incapacidades e nas impossibilidades pela ênfase nas potencialidades no sentido de proporcionar ao sujeito aquilo que tanto se fala em Saúde Mental: promoção de saúde, de autonomia, de cidadania, de reinserção ao convívio social.

Em suma, uma crise pode ser entendida em um contexto ao se analisar a atenção, o cuidado e a intervenção que as pessoas envolvidas prestam e recebem, pois esses mecanismos são desenvolvidos a partir de uma noção social e culturalmente consistente do que é uma crise.

Nota: Este texto foi produzido como requisito da disciplina Intervenção em situações de crise do curso de Psicologia do CEULP/ULBRA, ministrada pelo professor Mardônio Parente de Menezes, no período de 2010/2.

Psicóloga formada pelo CEULP/ULBRA. Colaboradora do (En)Cena.