A relação entre religiosidade e sexualidade, especialmente em contextos cristãos mais conservadores, costuma ser cheia de silêncios, conflitos e julgamentos. Para muitas pessoas LGBTQIAPN+, a experiência de fé pode se tornar um espaço de dor em vez de acolhimento. Isso acontece porque, muitas vezes, a vivência da sexualidade é tratada como algo errado ou pecaminoso, o que acaba provocando sentimentos de culpa, rejeição e medo.
Este texto busca refletir sobre esses conflitos e mostrar como é possível reconstruir a espiritualidade a partir de outros caminhos — mais abertos, amorosos e inclusivos. A ideia é olhar para a fé como uma possibilidade de liberdade, e não de aprisionamento.
Quando o corpo e o desejo viram problema
Em muitas tradições religiosas cristãs, o corpo e o desejo sempre foram vistos com desconfiança. A ideia de que o prazer é perigoso e precisa ser controlado cria um cenário onde a sexualidade, especialmente a que foge do padrão hétero, é vista como ameaça. Com isso, muita gente acaba internalizando discursos de pecado e vergonha desde muito cedo, como mostram estudos de Gross (2008) e Bento (2017).
Mas essa não é a única forma de viver a fé. Existem teologias que propõem uma visão diferente — como a chamada “teologia indecente”, da autora Marcella Althaus-Reid (2003), que defende uma espiritualidade onde o corpo e o desejo são partes legítimas da relação com o divino.
Silêncios que machucam
Quando as igrejas evitam falar sobre sexualidade ou tratam o tema apenas com base em condenações, elas acabam criando um ambiente de medo e exclusão. Frases como “amar o pecador, mas odiar o pecado” podem até parecer acolhedoras, mas na prática continuam empurrando para fora quem não se encaixa nos padrões esperados.
Esses silêncios também afetam profundamente a saúde mental. Pesquisas mostram que o sentimento de não pertencer pode gerar tristeza, ansiedade e até isolamento (Rodrigues, 2014). Quando não há espaço para falar abertamente sobre quem se é, a espiritualidade se torna um lugar solitário.
Quando sair é preciso
Em muitos casos, o jeito de se proteger é se afastar da religião. Romper com a igreja, apesar da dor, pode ser um passo necessário para preservar a própria saúde emocional. Esse afastamento, no entanto, não significa o fim da fé — ele pode abrir espaço para um novo jeito de se conectar com o sagrado.
É aí que muitas pessoas encontram outras formas de espiritualidade: comunidades mais inclusivas, leituras mais abertas da Bíblia, vivências mais honestas com o próprio corpo e identidade. Tudo isso pode ajudar a reconstruir uma relação mais saudável com a fé.
Acolhimento e reconstrução
Nos últimos anos, muitos espaços cristãos inclusivos têm surgido. Neles, a fé é vivida sem precisar esconder quem se é. Esses lugares mostram que é possível viver a religiosidade de um jeito acolhedor, sem precisar abrir mão da própria verdade.
A psicologia, especialmente a abordagem sistêmica, também tem contribuído com esse processo, ajudando pessoas a entenderem como suas histórias familiares, espirituais e afetivas se entrelaçam. Autores como Wagner (2010) falam sobre como a escuta terapêutica pode acolher a fé e a sexualidade ao mesmo tempo, sem criar divisões.
Nem sempre é fácil, mas é possível
Mesmo depois de se reconectar com a espiritualidade, os conflitos podem continuar. A pressão da sociedade, os julgamentos familiares e as memórias dolorosas ainda podem aparecer. Mas entender que fé e identidade não precisam andar em lados opostos já é um passo importante. Com o tempo, é possível construir uma vivência religiosa que seja também espaço de liberdade e afeto.
Fé que liberta
Quando a fé é vivida com liberdade, ela pode ser uma fonte imensa de força. Em vez de culpa, pode oferecer reconciliação. Em vez de medo, coragem. Em vez de exclusão, pertencimento. Essa transformação é real e possível — e começa quando a gente se permite buscar um caminho espiritual que respeite a nossa verdade.
Encerrando…
É urgente abrir mais espaço para conversas sobre sexualidade e religiosidade. Isso precisa acontecer nas igrejas, nas escolas, nos consultórios, e também na universidade. Porque não se trata apenas de fé, mas de dignidade, de saúde emocional e de pertencimento.
Ninguém deveria ter que escolher entre a fé e a própria identidade. E a boa notícia é que já existem muitos caminhos possíveis para quem quer viver as duas coisas de forma plena.
Referências
ALTHAUS-REID, Marcella. Teología indecente: perversiones teológicas en sexo, género y política. Barcelona: Editorial Icaria, 2003.
BENTO, Berenice. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. São Paulo: Editora UFMG, 2017.
GROSS, Martine. “A religião como lugar de exclusão e reconstrução das identidades LGBT”. In: VENTURA, Deivison (Org.). Diversidade sexual e saúde. Rio de Janeiro: ABIA, 2008.
RODRIGUES, Silas Guerriero. “Espiritualidades em tempos líquidos: rupturas e construções”. Revista Debates do NER, v. 1, n. 26, 2014.
WAGNER, Adriane R. “Famílias contemporâneas e o lugar da sexualidade”. In: Psicologia & Sociedade, v. 22, n. 1, 2010, p. 91-99.