Entre rótulos e possibilidades: uma crítica sistêmica ao uso social dos diagnósticos

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O modelo médico de intervenção predominante, de acordo com Aun (2025), hipervaloriza a imprescindibilidade do diagnóstico enquanto norteador de um plano de ação específico para a dificuldade distinguida. Nesse sentido, há a necessidade de nomear um contexto, baseando-se no pressuposto da causalidade linear da ciência tradicional, para que seja possível entender o que fazer a partir dessa nova etiqueta estipulada. O contexto faz-se tão predominante na prática que somente a existência da dificuldade não é o suficiente para que lidemos com ela de acordo com as necessidades que ela depreende, mas, antes, faz-se premente classificar o indivíduo para que, somente então, ele seja alvo merecedor de auxílio. 

Das inúmeras problemáticas que podem ser descritas a partir do momento em que cria-se uma caixa, idealmente padronizada, e seleciona-se determinados indivíduos para habitarem essas caixas a partir de certos comportamentos, emocionalidades, formas de ser e estar no mundo não coerentes com a norma discursivamente construída, cabe mencionar o funcionamento do rótulo diagnóstico como uma profecia autocumprida. Nesse panorama, exemplificadamente, funciona assim: suponhamos que eu tenha muita dificuldade de me engajar em ambientes sociais que possuem uma grande quantidade de pessoas, mas que é da minha vontade, apesar disso, conseguir participar destes. 

Decido, então, procurar a ajuda de profissionais que possam me ajudar a lidar com essa situação que eu defino como incômoda. A partir daí, recebo a etiqueta de que possuo, como uma parte imutável de mim, o transtorno de ansiedade social. Mediante a essa nova nomeação, não tento mais me engajar nesses ambientes, pois entendo que há uma delimitação distinguida por pessoas que supostamente estão em uma posição de saber maior que a minha. E, ainda: se tento frequentar esses lugares e sofro, rapidamente estabeleço a relação causal de que “sofro porque tenho um transtorno”, de modo que minhas ações passam a ser limitadas por esse novo rótulo que me foi atribuído. 

Considerando que a dificuldade sempre existiu e havia em mim o desejo de lidar com ela, pergunto-me como poderia ser mais proveitoso não ser enquadrada em uma caixa e como isso me permitiria ser criativa para de fato pensar em possibilidades que pudessem me ajudar com o que era distinguido como dificuldade. Uma vez, ouvi uma outra história de um conhecido que fora diagnosticado com um transtorno, que tinha, em seu rol de sintomas, a tendência de ser reativo às pessoas a volta dele. Conversando com a sua psicóloga, ele demonstrou incômodo acerca de uma situação específica em que ele tinha reagido de uma forma que ele considerava exagerada em relação a um colega, o que fez a psicóloga lembrá-lo que isso era esperado, pois fazia parte do que era compreendido pelo transtorno ao qual ele foi enquadrado. Ou seja, se havia a possibilidade de explorar maneiras e contextos em que ele pudesse vir a não estar reativo em suas relações, esta foi reduzida à construção de que ele não deveria esperar que pudesse agir diferente, já que há uma  causalidade entre o transtorno atribuído e o que decorre a partir de então. 

Assim sendo, Aun (2025/2007) cita Méndez, Coddou e Maturana (1998/1988), trazendo a perspectiva de que afirmações sobre doença e saúde tratam-se de avaliações sociais atribuídas a alguém e socialmente perigosas na medida em que contribuem para manter a patologia da qual o paciente se queixa, estabilizando as dinâmicas de sofrimento nas quais se originam. Ou seja, se o rótulo traz a ideia de imutabilidade e rigidez, de modo que a dificuldade não pode ser modificada, muitas vezes criando construções discursivas de que ela é biologicamente determinada, então a tendência é que não existam esforços para mudar e adaptar os contextos nos quais determinadas dificuldades acontecem. 

Importante mencionar, ainda, que uma dificuldade passa a ser nomeada como um problema quando não está de acordo com o que um grande número de pessoas define, por meio da linguagem, que é considerado “normal”, qualificando essa dificuldade como desvio e, consequentemente, criando a perspectiva de que esse desvio deve ser corrigido como forma de pertencer àquilo que é considerado a norma. Ainda segundo os autores, se a definição de um comportamento como normal ou patológico dá-se socialmente, em contextos históricos específicos, então não existem dados objetivos que permitam classificar alguns deles como desejáveis ou não, permitindo-nos ter em vista o que realmente importa: as dificuldades enfrentadas por alguém sem que seja atribuído a elas juízo de valor ou rótulos estigmatizados, mas considerando possibilidades de mudança em que essa dificuldade já não faça mais sentido. Questiona-se, portanto, como a não definição de algo como um problema pode realmente abrir portas para a possível resolução da dificuldade? 

Esteves de Vasconcellos (2025) complementa a discussão discutindo o exemplo de duas famílias. Na primeira, a mãe começa a observar determinado comportamento de seu filho que ela julga estranho, passando a se preocupar e perguntando a percepção das pessoas próximas importantes para ela. A partir disso, contata-se a escola, que também distingue o comportamento como estranho, indicando um psicólogo que, por sua vez, encaminha o caso a um neurologista. Essas pessoas, assim, concordam que trata-se de uma criança que “tem um problema” e que sai da consulta rotulada com o diagnóstico de TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade). A criança passa a ser portadora de um desvio, de uma anormalidade, como se esse desvio fosse intrínseco a ela e não resultado de uma construção social, realizada naquele contexto específico e por um grupo de pessoas específico. 

Já na segunda família, eles percebem um comportamento que distinguem como diferente, mas não o definem como um “problema”, desenvolvendo formas satisfatórias para lidar com a dificuldade, denotando o caráter não trivial e importante a respeito do modo como o meio lida com determinadas características. A primeira criança, portanto, começa uma “carreira no transtorno”, enquadrada em uma caixa e tendo suas possibilidades de atuação limitadas a partir dessa determinação. A segunda, ao contrário, não teve seu comportamento de agitação e desatenção rotulados como um problema e, dessa maneira, soluções criativas puderam ser encontradas para que determinadas características, que podem mostrar-se como dificuldades em contextos específicos, pudessem ser articuladas. 

Esses exemplos mostram, na prática, sobre como a realidade não é objetiva, mas que, ao contrário, o modo como falamos sobre ela, como a descrevemos através da linguagem, é que influencia a forma como nos relacionamos com as potencialidades e dificuldades. No entanto, haja vista que vivemos em uma sociedade que demanda rótulos diagnósticos para que alguns direitos e possibilidades de inclusão sejam acessados, não trata-se de negá-los completamente, mas de pensar em caminhos para que essas etiquetas possam ser utilizadas de forma estratégica como garantia de direito, tangenciando ao máximo as demais problemáticas que elas podem acarretar. Mais do que isso: sugere-se a possibilidade da conquista de outras possibilidades de existência em que a colaboração, enquanto implicação constitutiva de uma vida em sociedade, permita que suportes sejam oferecidos para dificuldades sem que elas sejam rotuladas como um problema e precisem receber um rótulo diagnóstico em prol de receber a atenção necessária. 

Em síntese, a crítica ao uso rígido e naturalizado dos rótulos diagnósticos não pretende negar as dificuldades reais vividas pelas pessoas, mas tensionar as formas pelas quais tais nomeações podem limitar possibilidades, cristalizar sofrimentos e ocultar a dimensão relacional e contextual das experiências humanas. Ao reconhecer que classificações são construções sociais situadas, e não verdades absolutas sobre quem alguém é, abre-se espaço para práticas que favoreçam a criatividade, a responsabilidade compartilhada e a construção de suportes que respondam às necessidades concretas, e não às etiquetas atribuídas. Dessa forma, aponta-se para a importância de uma clínica e de uma sociedade que priorizem a singularidade, a colaboração e a transformação dos contextos, sem depender exclusivamente da patologização para legitimar cuidados e garantir direitos.

REFERÊNCIAS 

Metodologia de atendimento sistêmico: design de práticas colaborativas novo-paradigmáticas / Maria José Esteves de Vasconcellos (org.). – 1. ed. – Curitiba: Appris, 2025. 

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Graduanda em Psicologia do 10º período (bacharelado e licenciatura) pela ULBRA Palmas. Estagiária em Psicoterapia Clínica sob a ótica da Abordagem Sistêmica e no portal (En)Cena – A Saúde Mental em Movimento, atuando na produção de textos e integrando a equipe editorial. Possui certificação Nível I em Terapia Focada nas Emoções. Atualmente exerce atividades de monitoria na disciplina de Psicologia Sistêmica e realiza estágio de licenciatura na disciplina de Psicologia da Sexualidade. Seus temas de interesse em pesquisa abrangem gênero, sexualidade, saúde mental, relacionamentos interpessoais e pensamento sistêmico novo-paradigmático

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