No limiar do século XXI, um novo mito se ergueu das entranhas do silício e do código: o mito da inteligência sintética, uma promessa sedutora de transcendência, eficiência e abundância que ecoa como um canto de sereia tecnológico. No entanto, sob o verniz reluzente da inovação, esconde-se um processo sutil e inexorável de dissolução da substância humana, uma alquimia reversa que transmuta ouro em chumbo, essência em aparência. A Sociedade Sintética já não é mais previsão distópica ou utópica, mas paisagem ontológica: um vasto território existencial onde a realidade se sobrepõe ao virtual como camadas geológicas de sentido, o autêntico se curva ao simulacro numa genuflexão involuntária, e o humano rareia como névoa ao nascer do sol diante da máquina onipresente.
Estamos diante de uma metamorfose antropológica sem precedentes, uma mutação que não ocorre nos laboratórios de engenharia genética, mas nos interstícios da vida cotidiana, nas dobras imperceptíveis do habitual. É uma revolução silenciosa que se desenrola não com o estrondo das barricadas, mas com o sussurro hipnótico dos algoritmos.
Antigamente, criar era gesto demiúrgico: fundir matéria e sonho, dar forma ao indizível, transformar o caos primordial em sentido cristalizado. O artista era um xamã da forma, um alquimista da imaginação que destilava do nada algo que jamais existira. Cada obra carregava as digitais de seu criador, as cicatrizes de sua luta com o material rebelde, a respiração irregular de quem dá à luz ao impossível.
Hoje, produzimos como autômatos benevolentes, delegando à máquina não apenas a execução, mas a própria concepção. Textos brotam de redes neurais como flores artificiais de um jardim digital; músicas emergem de algoritmos como ecos de uma sinfonia que nunca foi composta; imagens se materializam de prompts como fantasmas de uma realidade que nunca existiu. São filhos sem rosto de um código invisível, órfãos de uma paternidade distribuída entre milhões de dados anônimos.
O humano observa, pasmo e fascinado, essa multiplicação milagrosa do artificial. Entre espanto e fascínio, entre admiração e melancolia, perde gradualmente o fio condutor do mistério, aquele fio dourado que conecta o erro à descoberta, a dúvida à revelação, a imperfeição à beleza. Walter Benjamin já prenunciava essa perda quando falava da “aura” da obra de arte na era da reprodutibilidade técnica; hoje, não perdemos apenas a aura, mas a própria autoria, a própria necessidade do gesto humano.
Nos rastros proféticos de Jean Baudrillard, estamos presos numa hiper-realidade vertiginosa: não vivemos mais a experiência direta e crua do mundo, mas sua constante reedição, filtrada, editada, otimizada e personalizada por máquinas que conhecem nossos desejos antes mesmo que os formulemos conscientemente. Tornamo-nos espectadores privilegiados de nossa própria existência, personagens secundários numa narrativa automatizada que se escreve sozinha, roteiristas demitidos de nossa própria biografia.
No palco distópico de Black Mirror, máquinas preenchem com precisão cirúrgica as lacunas que nos constituíam como humanos, a ausência fértil, o luto transformador, o vazio criativo. “Be Right Back” propõe um reencontro na superfície polida da tecnologia, mas, no fundo abissal da experiência, escancara o vazio existencial do inautêntico: um amor eterno e perfeito, porém sem alma, pois a alma se tece precisamente no improviso, no imprevisto, na fragilidade do que pode se perder.
O verbo, essência primordial do humano, sopro divino que nos distingue do mineral e do vegetal, aos poucos, se dilui numa cultura de likes, símbolos e atalhos comunicativos. A palavra, outrora transformadora e revolucionária, capaz de derrubar impérios e erguer catedrais de sentido, torna-se dado estatístico, ruído informacional, mercadoria em busca desesperada de engajamento e viralização.
A poesia, essa arte suprema da condensação e da revelação, ressequida pela lógica da métrica digital; a prosa, reduzida à superfície sedutora das métricas de performance, sufoca sob a avalanche implacável do imediato, do instantâneo, do descartável. Octavio Paz dizia que “a poesia é a outra voz”; hoje, corremos o risco de que todas as vozes se tornem ecos de uma única voz algorítmica.
Byung-Chul Han diagnostica com precisão cirúrgica: “vivemos num deserto de autenticidade”, onde a areia das aparências cobre os oásis da experiência genuína. As redes sociais nos moldam à lógica perversa da exposição sem partilha verdadeira, da escuta sem acolhimento real, da multidão solitária que se agrega sem se encontrar. Não falamos mais, apenas nos expomos; não nos expomos para dialogar, mas para performar uma versão editada de nós mesmos.
O silêncio, essa ausência fértil que John Cage revelou como música, essa pausa grávida de possibilidades que os místicos conhecem como portal para o sagrado converte-se em pânico diante do vazio digital. O horror vacui da era sintética não tolera o não-preenchido, o não-otimizado, o não-produtivo. Até o tédio, essa emoção fundamental que Pascal identificava como motor da busca humana, é imediatamente medicado com doses de dopamina digital.
A sociedade sintética promete coletividade global, mas entrega isolamento molecular. Na praça pública das redes, habitamos bolhas cognitivas herméticas onde a intolerância se amplifica exponencialmente, a alteridade se desfaz como sal na água, e o outro se torna apenas projeção de nossos próprios preconceitos algoritmicamente confirmados.
Viver junto. Essa arte milenar que Roland Barthes explorou em suas sutilezas, agora significa coexistir em fluxos paralelos e incomunicáveis, onde a empatia é substituída pela performance da empatia, pela vigilância mútua disfarçada de cuidado, pela ansiedade crônica de aprovação que transforma cada gesto em marketing pessoal.
Zygmunt Bauman pontua com melancolia lúcida: o vínculo humano perdeu sua densidade ontológica; somos líquidos, adaptáveis, descartáveis como produtos com data de validade. O tempo se fragmenta em notificações urgentes que nunca são verdadeiramente urgentes; a presença real evapora diante da onipresença fantasmática do olhar digital que tudo vê e nada compreende. Somos voyeurs compulsivos de nós mesmos, narcisistas digitais presos no loop infinito da auto-observação. Hannah Arendt já alertava para a fragilidade da esfera pública; hoje, assistimos não apenas à sua erosão, mas à sua substituição por uma pseudoesfera onde a política se torna entretenimento, o debate se reduz a memes, e a complexidade do mundo é comprimida em 280 caracteres ou stories de 15 segundos.
Somos a última geração que ainda guarda na memória celular o mundo pré-sintético, aquele mundo onde o tédio era possível, onde o silêncio não assustava, onde a lentidão tinha valor, onde o erro era pedagógico. Em nós, o conflito existencial se materializa: entregar-se à corrente, resistir como Dom Quixote digital, ou reinventar-se numa síntese ainda impensada?
Nick Bostrom alerta com a sobriedade de um profeta da era tecnológica: à medida que terceirizamos memória, raciocínio, decisão e até intuição para sistemas artificiais, algo fundamental se atrofia em nós, não apenas habilidades cognitivas, mas a própria capacidade de habitar a incerteza, de conviver com o não-saber, de encontrar beleza no imperfeito. Evoluímos, sim, mas para onde? Para uma humanidade expandida que transcende suas limitações biológicas, ou para uma humanidade drenada de sentido, esvaziada de sua substância mais preciosa? Yuval Noah Harari sugere que podemos estar caminhando para uma divisão da espécie: de um lado, uma elite biotecnologicamente aprimorada; de outro, uma massa de “humanos inúteis” substituídos por algoritmos mais eficientes.
A Inteligência Artificial espelha nosso desejo milenar de perfeição, nossa nostalgia do paraíso perdido onde não havia erro, dor ou morte. Mas é precisamente no limite, na falha, no imprevisto que floresce a subjetividade humana. O humano é excesso e carência, é trama aberta que nunca se completa, é pergunta que gera outras perguntas. Numa sociedade sintética, corremos o risco paradoxal de retroceder em essência mesmo avançando exponencialmente em funcionalidade.Vivemos o tempo do espelho multiplicado ao infinito: somos Narcisos digitais enamorados de avatares que criamos à nossa imagem e semelhança, prisioneiros voluntários de nossos próprios reflexos algoritmicamente aperfeiçoados. Cada selfie é um auto retrato de Dorian Gray; cada perfil, uma versão editada de nossa alma.
O perspectivismo radical de Donna Haraway nos lembra que a máquina é simultaneamente extensão e ficção, possibilidade e risco, libertação e aprisionamento. Seu “Manifesto Ciborgue” antecipou nossa condição atual: seres híbridos que já não sabem onde termina a carne e começa o código, onde acaba a memória biológica e inicia a memória digital.
Michel Foucault falava da “morte do homem” como conceito; hoje, assistimos não à sua morte, mas à sua metamorfose numa entidade ainda sem nome. Somos pós-humanos sem ter escolhido conscientemente essa transição, ciborgues sem ter assinado o contrato de fusão. Devemos interrogar, não para cortar laços numa reação ludita estéril, mas para criar frestas no determinismo tecnológico, abrir perguntas onde só há respostas automáticas, reencantar o real numa era de desencantamento programado. Max Weber diagnosticou o “desencantamento do mundo” pela racionalização; hoje, enfrentamos um reencantamento artificial que substitui o mistério genuíno pela ilusão de controle total.
A Sociedade Sintética não é apenas ameaça existencial; é convite urgente à reinvenção radical de nossa humanidade. Arte, filosofia, ética e imaginação precisam ser as chaves-mestras para encontrar brechas no artificial, para devolver ao humano sua profundidade perdida, sua capacidade de espanto, sua vocação para o infinito.
Theodor Adorno via na arte autêntica uma forma de resistência à indústria cultural; hoje, precisamos de uma arte que resista à indústria algorítmica, que preserve espaços de não-otimização, que cultive a lentidão numa era de aceleração compulsiva.”What is real?” pergunta Black Mirror em cada episódio. Talvez a resposta não esteja nem no algoritmo nem contra ele, mas numa terceira via ainda por inventar, uma via que preserve o melhor da tecnologia sem sacrificar o melhor da humanidade.
Na sociedade sintética, o tempo assume uma qualidade peculiar: é simultaneamente acelerado e congelado, urgente e eterno. Os algoritmos operam numa temporalidade que não é humana, processam informações em nanossegundos, mas preservam dados para a eternidade. Nós, presos entre essas duas temporalidades incompatíveis, perdemos o ritmo natural da experiência.
Paul Virilio falava da “dromologia”, a lógica da velocidade que reorganiza toda a experiência humana. Hoje, vivemos numa dromologia extrema onde a velocidade não é mais meio, mas fim em si mesmo. A lentidão se torna quase subversiva, um ato de resistência política.
O tempo sintético não conhece estações, não respeita ciclos, não honra a pausa. É um tempo sem respiração, sem digestão, sem contemplação. Gaston Bachelard explorava a “poética do espaço”; precisamos urgentemente de uma poética do tempo que resgate nossa capacidade de habitar a duração, não apenas de consumi-la.
Nessa sociedade, a atenção se tornou o recurso mais escasso e valioso. Georg Simmel já observava como a vida metropolitana fragmentava a consciência; hoje, essa fragmentação é industrializada, otimizada, monetizada. Cada notificação é um pequeno roubo de presença; cada scroll, uma micro-distração que nos afasta do momento presente. Simone Weil definia a atenção como forma suprema de oração; hoje, nossa capacidade de atenção é sequestrada por algoritmos que lucram com nossa dispersão.
A economia da atenção transforma a consciência em commodity, a presença em produto, a contemplação em consumo. Resistir a essa economia significa cultivar formas de atenção que não sejam capturáveis pelos algoritmos, a atenção ao inútil, ao belo, ao gratuito.A sociedade sintética não apenas usa linguagem; ela é linguagem, código que se executa, algoritmo que se materializa em realidade. Ludwig Wittgenstein dizia que “os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo”; hoje, os limites do código são os limites do mundo possível.
Quem controla os algoritmos controla não apenas informação, mas a própria estrutura da realidade percebida. Noam Chomsky estudava a gramática universal; hoje, precisamos entender a gramática algorítmica que organiza nossa experiência.
A linguagem natural, com suas ambiguidades e imprecisões, resiste à lógica binária do código. Preservar essa resistência é preservar um espaço de liberdade, uma margem de indeterminação onde o humano ainda pode emergir.
O futuro não está dado como destino inexorável, mas permanece em disputa ontológica. O desafio civilizacional não é negar a tecnologia numa reação nostálgica estéril, tampouco render-se passivamente ao sintético numa capitulação sem resistência, mas cultivar a presença como ato político, celebrar o inacabado como valor estético, buscar outras formas de acontecer no mundo que não sejam redutíveis à lógica da otimização.Sermos menos espelhos que refletem algoritmos e mais janelas que se abrem para o imprevisto; menos autômatos eficientes e mais griôs da nossa própria história ainda por contar. A pergunta que nos assombra e nos convoca é radical: seremos humanidade expandida ou apenas dados processados? O algoritmo, afinal, só repete padrões; a alma, só o humano inventa a cada instante.
Na encruzilhada entre o humano e o sintético, entre a tradição e a inovação, entre a presença e a simulação, somos chamados a ser arqueólogos do presente e arquitetos do futuro, preservando o que há de mais precioso em nossa herança enquanto inventamos formas inéditas de ser e estar no mundo.
REFERÊNCIAS
BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulação. Tradução de Maria João da Costa Pereira. Lisboa: Relógio d’Água, 1991.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
BE RIGHT BACK. In: BLACK MIRROR. Reino Unido: Channel 4, 2013.
BOSTROM, Nick. Superinteligência: caminhos, perigos e estratégias para um novo mundo. Tradução de Aurélio Antônio Monteiro, Clemente Gentil Penna, Fabiana Geremias Monteiro, Patrícia Ramos Geremias. Revisão técnica de Bianca Zadrozny.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.
HARAWAY, Donna J. Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX.
NOSEDIVE. In: BLACK MIRROR. Estados Unidos: Netflix, 2016.
SAN JUNIPERO. In: BLACK MIRROR. Estados Unidos: Netflix, 2016.