Marco Feliciano e o frágil discurso da “família natural”

Uma simples revisão histórica, já amplamente feita por pesquisadores desde o século 17, aponta para a família como fruto de movimentações culturais, e não decorrente de processos “naturais”, como faz entender o parlamentar-pastor.

Há poucos dias, durante uma viagem de avião entre Brasília e São Paulo, o deputado Pastor Marco Feliciano (PSC) foi interpelado por dois jovens rapazes – seus conterrâneos – que, de forma descontraída, cantaram ao lado da poltrona do parlamentar a música “Robocop Gay”, dos Mamonas Assassinas, em protesto por supostas declarações homofóbicas e misóginas por parte do político/pastor. Já em “terra firme”, Feliciano apressou-se em escrever na sua conta no Twitter que foi “assediado por um grupo de gays”, e que não é contra os gays, apenas defende a manutenção da “família natural”. Depois do ocorrido, a imprensa apurou que os dois jovens são heterossexuais. Tratou-se apenas de um episódio para chamar a atenção do deputado. “Não foi ativismo gay”1, disseram os jovens.

Rapidamente – como de regra ocorre nesta contemporaneidade marcada pelas redes sociais – os apoiadores do conservador pastor se puseram a defender o direito de Feliciano lutar pela “família natural”. Até aí, tudo bem. Afinal, todos – numa democracia de fato – têm o direito de se manifestar, dentro de certos limites. A questão é que, ao usar o termo “família natural”, este grupo de pessoas representado por Feliciano esquece – ou propositadamente assim o faz – de procurar o sentido etimológico e epistemológico do que é ser “família natural”.

Pois bem, a Filosofia e a Sociologia – além da Antropologia, obviamente – têm uma ampla pesquisa sobre este tema. Neste artigo, há uma ênfase ao trabalho do filósofo alemão Friedrich Engels (1820-1895), em sua “A origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”, livro baseado nas pesquisas do cientista americano e historiador da sociedade primitiva, Lewis Henry Morgan (1818-1881).

A obra faz um “mapa histórico” do refinamento do núcleo familiar no decorrer dos anos até o modelo que conhecemos hoje, e o associa ao próprio desenvolvimento do trabalho, da acumulação de bens e da “eterna” guerra de gêneros, em que finalmente o aspecto masculino foi sobreposto aos elementos femininos, numa escalada de “costuras” que remonta a milhares de anos.

Para Engels, desde sempre a família é um princípio ativo, e a concepção tradicional que se conhece hoje (monogamia, com poder tutelado ao homem) só foi existir no limiar da Antiguidade, tendo o seu ápice na sociedade grega (provavelmente o leitor já deve ter lido alguma frase desdenhosa do Estagirita Aristóteles em relação às mulheres). Engels faz uma crítica ferrenha aos historiadores que, convenientemente, acabam por tentar suprimir de suas pesquisas outras formas de arranjo familiar, provavelmente por considerá-los não honrosos à escalada humana.

No entanto, o estudo da história primitiva “revela-nos situações em que os homens praticam a poligamia ao mesmo tempo em que as mulheres praticam a poliandria2 e, portanto, os filhos de uns e outros tinham de ser considerados comuns”. É o chamado casamento grupal (por tribos), numa espécie de “todos pertencem a todos”.

Vale destacar que, no arranjo familiar exposto acima, os núcleos tanto poderiam ser comandados por homens quanto por mulheres. Se um “descendente” nascesse numa tribo (gens) cujo escopo partisse do matriarcado, naturalmente ele teria como referência hereditária (na visão da comunidade) apenas o referencial materno e, nestes casos, pouco importava a presença do pai. Mas com o passar do tempo e o aumento da tensão entre a “disputa de gênero”, este modelo foi aos poucos sendo substituído pela “família consanguínea”, onde algumas normas passaram a cristalizar-se, como a proibição de relações sexuais entre irmãos, já que até esta altura, não havia a concepção de incesto. “Não só irmão e irmã eram marido e mulher, como também, ainda hoje, em muitos povos são permitidas as relações sexuais entre pais e filhos”, relata Engels, ao se reportar à pesquisa de Hubert Bancroft sob o modo de vida dos nativos da América do Norte. “A única coisa definitivamente certa é que o ciúme se desenvolveu relativamente tarde”.

As transformações da família prosseguem, sendo que “o círculo de união conjugal comum, que era muito amplo em sua origem, estreita-se pouco até que, finalmente, compreenda o casal isolado que hoje predomina”. Não se deve esquecer, no entanto, que na contemporaneidade ainda há vestígios da família “pré-monogâmica”, sobretudo entre bolsões dominados pelos árabes conservadores. Ou seja, apesar de haver um modelo que condena o adultério, ainda é dado ao homem o direito de praticar a poligamia. A mulher, no entanto, tem que fazer votos de total obediência e fidelidade ao homem.

Um período que certamente evidencia explicitamente a “virada” de influência [muitas vezes, à força] de um gênero (o masculino) sobre outro (feminino) é o da Grécia Antiga. Foi também neste período onde começou a se desenvolver o controle da herança pelo sexo masculino, sendo os homens os “herdeiros naturais” das posses de seus antepassados. Isso implica numa abolição total da linha de descendência feminina e do “direito hereditário materno”.

É também na Grécia Antiga que se observa mais claramente outro fenômeno que, atualmente, parte da sociedade tenta “esconder para debaixo do tapete”: as relações homossexuais, notadamente as masculinas. Com o amplo domínio sobre a mulher e os escravos, além de ser depositário dos bens de herança, os homens que mantinham relações sexuais com “amigos próximos”3 e mesmo com “escravos do sexo masculino”4 não sofriam, em sua maioria, qualquer tipo de interpelação social. Isso só começou a mudar com o avanço e influência da moral Patrística5, entre os séculos I e VI da era cristã.

Outra característica essencial da “família natural” defendida pelo Pastor Marco Feliciano e que remonta tanto aos gregos antigos quanto aos semitas é seu caráter que remete “à escravidão como também a servidão”. Para Marx, em “A Sagrada Família”, “ela [a família] contém em si, em miniatura, todos os antagonismos que se desenvolverão mais tarde na sociedade e em seu Estado”. Foi este modelo, diz Engels, que os filisteus se apropriaram para, depois, supostamente espalharem-no por toda a cultura indo-europeia. E é justamente daí, deste ponto, que surge a ideia de que a mulher tem que ser subserviente ao homem.

Desta forma, o atual modelo de família, baseado na monogamia, no domínio do homem sob a mulher, e numa espécie de ojeriza à homossexualidade (provavelmente por esta se remeter à elementos do feminino), é proveniente de movimentos culturais, e não necessariamente de uma ordem “natural”. Como bem explicitou Engels, se o homem tivesse se mantido no domínio do “natural”, ainda estaria sob a influência dos mais diversos modos de constituição familiar (todos de todos, poligamia etc.), modos estes comuns entre as espécies próximas, como os macacos. “A monogamia, portanto, não entra de forma alguma na história como uma reconciliação entre o homem e a mulher e, menos ainda, como a forma mais elevada de casamento. Pelo contrário, surge sob a forma de subjugação de um sexo [masculino] pelo outro”.

Assim, é no mínimo irresponsabilidade, nos dias atuais, clamar por uma espécie de “família natural” em detrimento de outros arranjos familiares, sobretudo quando de fato este modelo reclamante sequer chegou a existir nos primórdios. A definição de família, sob este aspecto, é decorrente de transformações sociais e políticas, e muito provavelmente jamais se restringirá a um modo de ver o mundo sob o prisma do dogmatismo religioso.

Notas:

1 – Referência à matéria “Não foi ativismo gay”, dizem jovens que dançaram para Feliciano; gabinete diz que irá processá-los, publicado no UOL Notícias em 12/08/2013 – Disponível emhttp://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2013/08/12/nao-foi-um-ato-gay-e-isso-quebrou-feliciano-diz-jovem-que-dancou-para-o-deputado-em-aviao.htm acesso em 17/08/2013.

2 – Poliandria: (grego: poly- muitos, andros- homem) entende-se a união em que uma só mulher é ligada a dois ou mais maridos ao mesmo tempo. Ainda comum atualmente em sociedades “distantes”, como o Tibete. FONTE: Dicionário Houaiss.

3 – NAPHY, William. Born To Be Gay. Lisboa: Trafalgar Square, 2004, pág. 137.

4 – DOVER, Kenneth James. A Homossexualidade na Grécia Antiga. São Paulo: Nova Alexandria, 2007.

5 – Filosofia influenciada pelo cristianismo dos primeiros sete séculos, e elaborada pelos Padres da Igreja (alguns, designados doutores), considerados os primeiros teóricos do Catolicismo. Consiste, em linhas gerais, “na elaboração doutrinal das verdades de fé do Cristianismo e na sua defesa contra os ataques dos pagãos e contra as heresias”. FONTE: DROBNER, Hubertus. Manual de Patrologia. Petrópolis: Vozes, 2003.

Referências:

ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da propriedade privada e do Estado; tradução Ciro Mioranza. São Paulo: Lafonte, 2012 (Coleção Grandes Clássicos da Filosofia)

PLATÃO. O Banquete. Disponível em

http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraDownload.do?select_action=&co_obra=2279&co_midia=2 . Acesso em 20/05/2013.

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; Tradução de BACKES, Marcelo. A Sagrada Família. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.

YALOM, Marlyn. Como os franceses inventaram o amor. São Paulo: Editora Prumo, 2013.

Psicólogo. Mestre em Comunicação e Sociedade (UFT). Pós-graduado em Docência Universitária, Comunicação e Novas Tecnologias (UNITINS) e em Psicologia Analítica (UNYLEYA-DF). Filósofo, pela Universidade Católica de Brasília. Bacharel em Comunicação Social (CEULP/ULBRA), com enfoque em Jornalismo Cultural; é editor do jornal e site O GIRASSOL, Coordenador Editorial do Portal (En)Cena.