Masculinidade: um debate iminente

Recentemente o cantor Tiago Iorc lançou uma música intitulada “Masculinidade”. A letra traz confissões e desafios impostos a ele como homem na cultura e sociedade ocidental contemporânea. A letra levantou temas muito relevantes e pertinentes a discussões, como o consumo da pornografia, o machismo enraizado nas relações afetivas, assim como o patriarcado como estrutura de poder para marginalização de grupos já excluídos socialmente, como as mulheres, e a supremacia masculina.

Contudo, o público feminino destacou o agravo e “erros” contidos na música, pois o artista, segundo o público feminino, converte o abusador em potencial em uma suposta vítima, se esvaziando de toda e qualquer responsabilidade sobre seus atos. Dessa forma, é importante salientar que, para discorrer sobre masculinidade, é preciso discutir paralelamente sobre feminilidade e o movimento feminista.

Durante muitos séculos, a referência anatômica masculina serviu de parâmetro para referenciar as mulheres, que eram consideradas “homens invertidos”, pois no lugar do órgão genital peniano estava a vagina e os ovários seriam os testículos. Logo, a existência feminina não existia se não fosse a referência masculina. Isso foi denominado como monismo sexual, que é um só modelo de identidade e gênero sexual e vigorou até uns séculos atrás (SILVA, 2000).

Fonte: Rafael Trindade / Divulgação Tiago Iorc

A partir disso a referência da perfeição estava na anatomia masculina e em sua estrutura fálica, que era a principal característica que o diferenciava dos demais corpos. Inversamente a isso, a anatomia feminina era algo frágil e inferior, o que era considerado muitas vezes profano e funcionava como uma espécie de “bode expiatório” dos desvios de conduta dos homens. Com isso, qualquer outra forma de manifestação e relacional estava atrelada ao modelo masculino, como o orgasmo, as formas de reprodução e o sexo (SILVA, 2000).

Uma sensível mudança começou a acontecer a partir do século XIX, que apresentou outro modelo sexual, não sendo apenas o masculino como molde de referência. Ou seja, a mulher não era apenas um homem invertido, mas um corpo diferente do homem que carregava responsabilidades, deveres e papéis sociais a serem cumpridos com a solidificação da burguesia capitalista e europeia (BOTTON, 2007).

Contudo, ainda não se tinha igualdade e/ou equidade de direitos e deveres em ambos os gêneros, pois a mulher ainda estava restrita ao ambiente privado, que era o lar e seus cuidados. Toda a estrutura social delimitou rigorosamente esses papéis, que eram muito bem definidos e deveriam ser executados a todo custo (CITELI, 2001).

Fonte: Imagem por rawpixel.com no Freepik

A masculinidade herdada dos séculos anteriores funcionava mais como uma performance sobre como ser homem, que era basicamente não ser mulher e muito menos homossexual. A sua identidade social assim como seu gênero requerem deste mesmo homem uma postura de perfeição em sua conduta na sociedade. Isto é, em meio a problemas e obstáculos do cotidiano, este homem deveria mostrar o melhor de si na melhor das hipóteses, como bravura, agilidade, esperteza, entre outras características que o endeusavam (NADER; CAMINOTI, 2014).

Essa era a concepção construída e mantida pela sociedade burguesa da masculinidade e o papel do homem na sociedade. Por conseguinte, não demorou muito até a conta vir, pois com as adversidades que este homem enfrentava, foi possível concluir que não era tão alcançável assim executar esse papel, de um super-homem. Logo, se tinham dois extremos, a mulher sufocada em suas demandas domésticas e na vida privada, sendo considerada inferior e o homem calcado às responsabilidades públicas sendo visto como o superior de tudo e todos (SILVA 2006).

Contudo, percebeu-se que paralelo a luta feminista e suas reivindicações sociais assim como suas conquistas, havia gradualmente a mudança dessa concepção doentia e tóxica da burguesia sobre a visão do homem. Isto é, este novo homem contemporaneamente já aceitava suas limitações e fragilidades, bem como mudanças na postura e comportamentos, pois já não vigorava mais a conduta de um deus e sim de um ser humano corruptível (BOTTON, 2007).

Fonte: Freepik

Mesmo este novo homem admitindo ser um ser humano falho, frágil assim como a mulher e com limitações, ainda não se sabe ao certo como definir a masculinidade, uma vez que a cultura e condutas sociais se transformam ao decorrer do marco histórico. Logo, a identidade de uma masculinidade homogênea fica ainda vaga e ao mesmo tempo em aberto recebendo novos conceitos e mutações, mas sem chegar a um consenso definitivo (SILVA, 2000).

Entretanto, mesmo havendo esta mudança profunda, ainda prevalece a visão burguesa na maioria das condutas sociais masculinas, de um homem forte, intocável e superpoderoso, além de esperar da figura feminina uma postura de submissão e servidão. Isso dá margens a comportamentos de desvio de conduta, como o feminicídio, pois quando um homem não aceita certa decisão vinda de uma mulher, é capaz até mesmo de matá-la (SCHARAIBER, 2012).

Isso notadamente provém de uma cultura que cultua o falo, e não a subjetividade, e alicerçada pelo patriarcado e machismo, o produto nada mais seria que um homem com a certeza de que pode tudo, principalmente no corpo e atitudes da mulher. E muitas vezes esse homem é reforçado e amparado socialmente, desde às instituições sociais até aos seus pares comuns (SCHARAIBER, 2012).

O que fica de reflexão é: como esse homem na sociedade se vê e o que pode ser feito para enfim reafirmar sua identidade sem ser de forma doentia e/ou violenta? Sabe-se que espaços terapêuticos desempenham uma ótima função na escuta ativa e na melhora de problemas, mas até a busca por aderência do público masculino pode encontrar dificuldades, pois “falar demais” é considerado uma característica feminina e consequentemente, inferior.

Fonte: Divulgação campanha contra a violência do governo do estado.

REFERÊNCIAS

BOTTON, F. B. As masculinidades em questão: uma perspectiva de construção teórica. Revista Vernáculo, n. 19 e. 20, 2007.

CITELI, M. T. Fazendo diferenças: teorias sobre gênero, corpo e comportamento. Revista Estudos Feministas, v. 9, n.1, pp-1-15, 2001.

NADER, M. B.; CAMINOTI, J. M. Gênero e poder: a construção da masculinidade e o exercício do poder masculino na esfera doméstica. In: ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA DA ANPUH-RIO: SABERES E PRÁTICAS CIENTÍFICAS. XVI, 2014, Rio de Janeiro. Anais eletrônicos. Rio de Janeiro: Apuh-Rio, 2014. Disponível em: http://www.encontro2014.rj.anpuh.org/resources/anais/28/1400262820_ARQUIVO_Generoepoderaconstrucaodamasculinidadeeoexerciciodopodermasculinonaesferadomestica.pdf. Acesso em: 18 nov. 2021.

SCHRAIBER, L. B. et al. Homens, masculinidade e violência: estudo em serviços de atenção primária à saúde. Revista Brasileira de Epidemiologia, v.15, n.4, pp-790-803, 2012.

SILVA, S. G. A crise da Masculinidade: Uma Crítica à Identidade de Gênero e à Literatura Masculinista. Psicologia: ciência e profissão, v.26, n.1, pp.118-131. 2006.

SILVA, S. G. Masculinidade na história: a construção cultural da diferença entre os sexos. Psicologia: ciência e profissão, v.20, n.3, pp.8-15. 2001.