O inconsciente na perspectiva junguiana

[…] quanto mais se enriquece a experiência, tanto mais se aprofunda também a convicção de que a função da inconsciência possui, na vida da psique, uma importância de que, por enquanto, talvez só tenhamos uma pálida ideia. Foi justamente a experiência analítica que descobriu, de modo cada vez mais claro, as influências do inconsciente sobre a vida consciente da alma – influências cuja exigência e significado a experiência havia ignorado até aqui. Em meu modo de ver, que se fundamenta em anos de experiência e em inumeráveis pesquisas, a significação da inconsciência para a atividade geral da psique é talvez tão grande quanto a da consciência (JUNG, 2013a, § 491).

No campo das psicodinâmicas e psicologias profundas, o conceito de inconsciente sempre tem lugar central nas suas estruturações teóricas. Porém, cada uma delas dá significados e dimensões distintas para o termo, sendo muito importante entender e diferenciá-los.

Na psicologia analítica, o inconsciente, ao contrário de outras teorias como a psicanálise, não se limita apenas a restos de lembranças de uma vida esquecida. Ele é também onde reside a gênese da vida humana, o ponto de partida do funcionamento do primitivo, que é anterior à própria consciência , onde nasce a criação de tudo que ainda há de emergir(Id., 2015b). No inconsciente, segundo Jung (2015a), residem também todos os padrões de comportamento, sedimentados ao longo dos milênios da vivência histórica humana, e acabam, por isso, sendo os verdadeiros balizadores de seus hábitos, recebendo o nome de padrões arquetípicos. Em resumo, ele é a totalidade de todos os fenômenos psíquicos em que se ausenta a qualidade da consciência (Id., 2013).

“[…] o inconsciente não representa apenas um apêndice “subconsciente”, ou até mesmo um mero depósito de lixo da consciência, mas um sistema psíquico amplamente autônomo capaz de compensar funcionalmente, por um lado, os desvios da consciência e, por outro, corrigi-la de seus desvios e unilateralidades, às vezes violentamente” (Id., 2016a, § 229).

Portanto, para a funcionalidade da consciência, são necessárias condições para a existência de uma vida inconsciente. É desta que flui toda a energia que torna viável o funcionamento da personalidade (Id., 2015c), e sem um processo de “homeostase” entre essas duas instâncias, a consciência perece carecida de vida. Toda a sorte de neuroses, psicoses e sintomas somáticos se dão por uma disfuncionalidade entre consciência e inconsciente.

Jung (2013, 2015c) separa conceitualmente o inconsciente entre pessoal e coletivo, e define o primeiro como o receptáculo de todas as lembranças perdidas, repressões mais ou menos intencionais de pensamentos e impressões incômodas, evocações dolorosas e todos aqueles conteúdos que ainda são muito débeis para se tornarem conscientes, ou seja, percepções dos sentidos que por falta de intensidade não atingiram a consciência.

“Mas afora esses, no inconsciente encontramos também as qualidades que não foram adquiridas individualmente, mas são herdadas, ou seja, os instintos enquanto impulsos destinados a produzir ações que resultam de uma necessidade interior, sem uma motivação consciente. Devemos incluir também as formas a priori, inatas, de intuição, quais sejam os arquétipos da percepção e da apreensão que são determinantes necessárias e a priori de todos os processos psíquicos. Da mesma maneira como os instintos impelem o homem a adotar uma forma de existência especificamente humana, assim também os arquétipos forçam a percepção e a intuição a assumirem determinados padrões especificamente humanos. Os instintos e os arquétipos formam conjuntamente o inconsciente coletivo” (Id., 2013, § 270)

Fonte: Jung (2009)

A forma que o inconsciente se vale para manter o equilíbrio psíquico é a compensação (Id., 2015d). Aquilo que falta à consciência em relação à totalidade da psique, é exercida pelo inconsciente, abrindo brechas na continuidade da consciência e na relação com o corpo em uma frequência não tão remota como se pensa:

“Mesmo se julgo (e outros comigo) apropriada a minha atitude, o inconsciente pode, por assim dizer, ser “de outra opinião”. […] o inconsciente é inteiramente capaz de provocar toda espécie de distúrbios desagradáveis, através de atos falhos, muitas vezes plenos de consequências, ou sintomas neuróticos. Estas perturbações provêm de um desencontro entre “consciente” e “inconsciente”. Normalmente, deveria haver a harmonia, mas, na realidade, ela ocorre muito poucas vezes, o que dá origem a uma multidão imprevisível de inconvenientes psicógenos, que vão de acidentes e doenças graves até os inocentes lapsus linguae.” (Id., 2013, § 546)

Ao final, o próprio funcionamento consciente corrente, depende de um processo de elaboração inconsciente. Por isso, o bom funcionamento psíquico necessita da constante colaboração entre essas duas instâncias.

“Quando se faz um discurso, a próxima frase já vem sendo preparada durante a fala da anterior, mas esta preparação é em grande parte inconsciente. Se o inconsciente não colaborar e retiver a próxima frase, ficamos empacados. Queremos mencionar um nome ou um conceito já em voga, mas ele simplesmente não vem. O inconsciente não o fornece. […] É dessa forma que dependemos da boa vontade do nosso inconsciente” (Id., 2015a, § 541).

A compreensão da influência do inconsciente na consciência, passa necessariamente pela relação entre os complexos e essas duas instâncias. O objeto que reside no inconsciente pessoal, e que se incute na consciência, é propriamente o complexo. Resumidamente, estando em um status de repressão e inconsciência devido a sua aversividade, e não tendo lugar de vazão, os complexos acumulam sua energia específica (libido), advindas dos seus respectivos instintos e imagens. Estando carregados, eles ativam o inconsciente, dando-lhe maior autonomia até o ponto dos complexos resvalarem rumo à consciência, se exprimindo em forma de fantasias, impulsos, atos falhos, lapsus linguae e até mesmo em estados de possessão. Para maiores informações sobre eles, visitar o texto: A estruturação da consciência e os complexos

A fim de harmonizar a relação entre essas duas instâncias, a psique conta com um mecanismo natural, que coloca a consciência em contato com os conteúdos inconscientes. Os sonhos confrontam o eu, através de imagens e situações, a uma complementação da atitude consciente. Segundo Jung (2014), eles são em sua maioria de natureza compensatória: “[…] sempre acentuam o outro lado, a fim de conservar o equilíbrio da alma” (§ 170). Portanto, “Sempre é útil perguntar, quando se interpreta clinicamente um sonho: que atitude consciente é compensada pelo sonho?” (Id., 2012a, § 330).

Fonte: Jung (2009)

Se o indivíduo nega isso, a consciência se enrijece com sua função principal em um invólucro hiper resistente contra as influências do inconsciente. Com concepções petrificadas, ele acaba por deflagrar uma oposição aberta em relação ao inconsciente (Id., 2015d). Tal atitude gera uma repressão da libido, que segundo Jung (2016b), aumenta a impulsividade, ativando possibilidades tendenciosas a excessos e aberrações de toda sorte. Também comprime a consciência a uma vida extremamente estreitada pela neurose, que pode, possivelmente, até mesmo fragmentá-la com o manancial de fantasias inconscientes, no caso da psicose. “[…] onde quer que o inconsciente domine, aí se encontra também a não-liberdade, e até mesmo a obsessão” (Id., 2012b, § 141).

REFERÊNCIAS

JUNG, Carl G.. A natureza da psique. 10. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2013. 416 p. (OC 8/2). Tradução de Mateus Ramalho Rocha.

JUNG, Carl Gustav. A vida simbólica: escritos diversos. Petrópolis, Rj: Vozes, 2015a. (OC 18/1). Tradução de Edgar Orth; revisão técnica de Jette Bonaventure.

JUNG, Carl Gustav. Ab-reação, análise dos sonhos e transferência. 9. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2012a. (OC. 16/2). Tradução de Maria Luiza Appy; revisão técnica de Jette Bonaventure.

JUNG, Carl Gustav. Estudos alquímicos. Petropolis, Rj: Vozes, 2016a. (OC 13). Tradução de Dora Mariana R. Ferreira da Silva, Maria Luiza Appy; Edição digital.

JUNG, Carl Gustav. Mysterium coniunctionis: pesquisas sobre a separação e a composição dos opostos psíquicos na alquimia. Petrópolis, Rj: Vozes, 2015b. (OC 14/2). Colaboração de Marie-Louise von Franz; tradução Valdemar do Amaral; revisão literária Orlando dos Reis; revisão técnica Jette Bonaventure.

JUNG, Carl Gustav. O eu e o inconsciente. 27. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2015c. (OC 7/2). Tradução de Dora Ferreira da Silva.

JUNG, Carl Gustav. Psicologia do inconsciente. 24. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2014. 168 p. (OC 7/1). Tradução de Maria Luiza Appy.

JUNG, Carl Gustav. Psicologia e religião. 11. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2012b. 160 p. (OC 11/1). Tradução do Pe. Dom Mateus Ramalho Rocha; revisão técnica de Dora Ferreira da Silva.

JUNG, Carl Gustav. Símbolos da transformação: análise dos prelúdios de uma esquizofrenia. Petropolis, Rj: Vozes, 2016b. (OC 5). Tradução de Eva Stern ; revisão técnica Jette Bonaventure.

JUNG, Carl Gustav. The Red Book: liber novus. New York, Ny. London: W. W. Norton & Company, 2009. (Philemon Series). Edited by Sonu Shamdasani; translated by Mark Kyburz, John Peck and Sonu Shamdasani.

JUNG, Carl Gustav. Tipos psicológicos. Petrópolis, Rj: Vozes, 2015d. (OC 6). Tradução de Lúcia Mathilde Endlich Orth.