O show que nunca termina: a guerra semiótica criptografada do clã Bolsonaro

Bolsonaro confortavelmente continua o seu costumeiro discurso monofásico como se ainda estivesse numa disputa eleitoral

Muitos afirmam que o governo atual delibera através do Twitter. Parece que essas opiniões estão prisioneiras de uma aparência. Na verdade, esse governo se orienta principalmente pela estratégia de ocupação da pauta midiática de todo o espectro político. O capitão que posta “Xvídeos”?; “Golden Showers?”; declarações de que a democracia só existe por uma benesse das Forças Armadas? É um show que começou em setembro do ano passado e jamais termina: quase diariamente a irresponsabilidade retórica típica de uma eleição persiste num governo já eleito. Uma tática semiótica criptografada: criação sistemática de dissonâncias para cativar a atenção de toda a midiosfera. Enquanto isso, os movimentos da política executiva de terra arrasada seguem em frente, sem a devida atenção da opinião pública. A grande mídia participa do jogo para criar uma aparência de imparcialidade e se livrar de uma cobertura monofásica das “reformas”. E a esquerda perde suas energias com o doce sabor do prato frio da vingança oferecido de bandeja para ela.

No cenário do rock dos anos 1970, o power trio Emerson, Lake & Palmer ocupava uma posição especial, rivalizando com outros super grupos da época como Gênesis, Yes e Led Zeppelin. Seus shows começavam com uma emblemática introdução: “Welcome back my friends to the show that never ends… ladies and gentlemen, Emerson, Lake & Palmer!”.

Guardadas as devidas analogias, e obviamente sem o talento daquele trio de exímios músicos, cada tuite ou declaração de Bolsonaro deveria ser iniciado com a mesma introdução daqueles shows do ELP: “bem-vindos ao show que nunca termina…”.

Simplesmente, desde o dia 8 de setembro do ano passado, a campanha eleitoral do capitão da reserva insiste em não terminar. Ele e seu clã persistem em fazer ataques e provocações ideológicas, em viverem num constante estado de urgência diante de inimigos imaginários criados desde o primeiro dia de campanha eleitoral: a esquerda, o politicamente correto, os globalistas, a ditadura LGBT, o comunismo, a Venezuela, os agentes do comunismo internacional treinados na Rússia e infiltrados na imprensa brasileira, tudo ad nauseum…

Dando continuidade a esse show que nunca termina, o clã Bolsonaro denuncia o “golden shower” dos blocos de carnaval (“a verdade do carnaval”, tuitou o capitão), através de um vídeo ao melhor estilo “XVídeos”, que ameaçam homens de bem, a família e a pátria.

E tal qual uma máquina de promoção diária de “caneladas”, no dia seguinte, em discurso na cerimônia do Corpo de Fuzileiros Navais do RJ, afirmou que “só existe democracia se as Forças armadas assim quiserem”.

O que aumenta ainda mais a temperatura da pauta tanto da grande mídia quanto da alternativa na blogosfera: supostamente, militares “intervieram” na fala “dúbia” do presidente. Provocado por jornalistas, o vice General Mourão dispara que “não é ventríloquo do presidente”, para depois de ser mais ainda pressionado por uma declaração, afirmou: “ele foi mal interpretado…”.

Guerra criptografada?

Se após as vitórias de eleições recentes, os candidatos vitoriosos tentavam implementar no governo, o mais rápido possível, a pauta executiva para se contrapor ao “terceiro turno” dos inconformados derrotados (Aécio Neves tentando impugnar os resultados no TSE, por exemplo), hoje Bolsonaro confortavelmente continua o seu costumeiro discurso monofásico como se ainda estivesse numa disputa eleitoral onde a irresponsabilidade retórica predomina como estratégia de gerar efeitos emocionais nos eleitores.

É necessário mais uma vez lembrar a colocação do antropólogo Piero Leiner, professor da Universidade de São Carlos/SP e estudioso das estratégias militares: a estratégia de propaganda do atual governo de ocupação “é muito mais uma estratégia de criptografia e controle de categorias, através de um conjunto de informações dissonantes” (clique aqui).


Os excluídos: nem para sempre explorados servirão

Seria esse “show que nunca termina” uma proposital guerra semiótica criptografada? Se sim, seria bem diferente das estratégias anteriores nas quais bombas semióticas são detonadas para enfraquecer o oponente. Ao contrário, essa deliberada criação de dissonâncias (“caneladas”) criaria uma simulação de que a unidade do atual governo estaria se desmoronando.

Lembre-se: o capitão da reserva só chegou ao poder para implementar o “saco de maldades”, conjuntos das amargas “reformas” neoliberais para definitivamente colocar o Brasil na órbita de influência da geopolítica dos EUA – rebaixar o País a uma economia de exportação de commodities, desindustrializada e financeirizada, com vasta força de trabalho desempregada e excluída (isto é, não serve nem mais para ser explorada) condenada ao bombardeio midiático diário de receitas consoladoras de autoajuda: “reinvente-se no empreendedorismo!”, seja “patrão de si mesmo!”, exortam.

Ou simplesmente morra pela deliberada política de redução populacional (afinal, é a pauta da agenda da verdadeira política neoliberal de Globalização – não aquela dos “marxistas culturais”…) através da destruição das garantias e direitos.

Nas poucas vezes em que o noticiário dá espaço às reais medidas executivas do atual governo, não vemos exatamente projetos, mas política de terra arrasada: acabar, reduzir, enxugar, desfazer, eliminar, fundir, diminuir, tirar e assim por diante. Um léxico não exatamente popular e que jamais ganharia uma eleição.

Prestidigitação

Por isso, tal qual um mágico prestidigitador cujo gestual de uma das mãos distrai e esconde a outra que tira a carta do bolso do colete, o interminável show de dissonâncias cria o desvio de atenção necessário. Se funcionou na campanha eleitoral, porque não funcionaria com um presidente que “governa” através do Twitter? Afinal, seus arroubos ocupam a pauta midiática, em todas as gradações do espectro político.

Para a esquerda, que não consegue se libertar da sua “síndrome de Brian” (sobre essa patologia política clique aqui), é uma oportunidade de revanche, vingança – o doce sabor de escorraçar um presidente limítrofe, sem nenhum senso de pudor ou consciência da liturgia do cargo que ocupa.

Por exemplo, sem a menor cerimônia passa a celebrar as “informações de bastidores” por trás da “crise” do “Golden Shower” publicadas em matéria de capa da revista “Veja”. A mesma revista acusada de fazer “jornalismo de esgoto” por anos de guerra contra os governos trabalhistas de esquerda que agora ironicamente cita como arma de denuncia – clique aqui.

O presidente desinterino Temer ocupou no passado recente esse mesmo papel de “boi de piranha” – suas mesóclises parnasianas, sua pomposidade provinciana em eventos internacionais, etc. Figurado como um vampiro que sugava a esperança da Nação, serviu de para- raio para garantir a eficácia do primeiro ato do ataque das maldades neoliberais, fora do foco da opinião pública.

Troca de passes mídia/clã Bolsonaro

Além disso, a guerra semiótica criptografada é uma ótima oportunidade para o também interminável controle de danos da imagem da grande mídia, após os anos de jornalismo de guerra cujo resultado é esse cenário que está diante de nós.

A troca de passes atual que a mídia corporativa faz com as dissonâncias produzidas artificialmente pelo clã Bolsonaro cria a deixa ideal para os apresentadores e analistas políticos midiáticos posarem de imparciais quando criticam as “falas desnecessárias” do capitão, destacam os “cala a boca” do general Mourão e discutem as “repercussões” na base de apoio do Congresso.

Aliás, essa é a deixa principal para, mais uma vez, turbinar as chantagens pelas “reformas” – como o mal-estar no Congresso provocado pelas bravatas e pitacos de Bolsonaro podem atrapalhar as supostas urgências para solucionar o buraco na Previdência.

Mas grande parte da pauta da mídia passa a ser sistematicamente ocupada pelas dissonâncias praticamente diárias produzidas pelo clã Bolsonaro. Essa estratégia de agendamento proposital livra também a grande mídia da sua cobertura monofásica das soluções neoliberais.

Sem dar espaço para o contraditório e entrevistando apenas economistas de empresas de investimento do mercado financeiro, os telejornais tornam-se enfadonhos, repetitivos, martelando sempre na mesma tecla da chantagem e da ameaça do abismo.

Simplesmente desapareceram das informações de pauta das matérias jornalísticas os economistas de centrais sindicais ou associações classistas comerciais ou industriais. Só existe o mercado financeiro – afinal, a grande mídia virou rentista.

Falar mal do limítrofe Bolsonaro é mais divertido, criando uma aparência de debate e imparcialidade. E para a esquerda, nada mais representa do que o prato frio da vingança.

Aliás, essa guerra criptografada de dissonâncias e caneladas parece hipnotizar a esquerda. Simplesmente ela não consegue superar a cena traumática da derrota de 2018, quando naquele momento as bolhas das redes sociais e das manifestações do “Ele Não!” indicavam uma virada na reta final.

Sem conseguir sair dessa armadilha de agendamento da pauta sob o bombardeio dos petardos criptografados, não consegue concentrar suas energias na criação de um “terceiro turno” que tomaria conta do espaço público com todas as formas de mobilizações e protestos (greves, guerrilhas semióticas anti-mídia – clique aqui, ocupações de protestos, desobediência civil etc.).

Todos parecem prisioneiros dessa matrix criada pela guerra semiótica de criação sistemática de dissonâncias, cativos desse show que nunca termina.

Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi. Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.