A psique é uma dinâmica complexa, que desafia o cientista na sua compreensão. O trabalho feito por Carl Gustav Jung, na tentativa de compreendê-la em conceitos cognoscíveis, foi um árduo exercício de pesquisa, que se baseou na observação empírica de si e de seus pacientes. A pesquisa da alma é das mais difíceis, haja visto que o objeto de pesquisa é o mesmo que seu próprio observador.
Essa constatação é um ponto vernal, que funda uma das regras mais essenciais para a formação analítica e psicanalítica: a necessidade de o próprio analista ser analisado (FREUD, 2010), exigência primeiramente demandada por Jung (2013c) quando ainda contribuía no movimento psicanalítico. Dado estes pontos, se constata que a pesquisa da psique se sustenta em um método essencialmente empírico.
Na sua pesquisa, Jung percebeu que, na alma, a produção de imagens e fantasias não são apenas produtos de antecedentes e tendências históricas individuais. Há também um movimento simbólico dirigido e orientado para determinados fins. O desenrolar desse processo possui uma direção, um objetivo (JUNG, 2013a).
Neste caso, a orientação ativa para um fim e uma intenção seria um privilégio não só da consciência, mas também do inconsciente, de tal modo que este seria capaz, tanto quanto a consciência, de assumir uma direção orientada para uma finalidade (JUNG, 2013b, § 491).
Essa constatação complementa a sua teoria que, junto da perspectiva causalista redutiva freudiana, compõem os dois lados do movimento psíquico, essenciais para compreender a psicologia analítica. A este aspecto interpretativo se dá o nome de método sintético ou construtivo, que se refere à elaboração dos produtos inconscientes como uma expressão simbólica que antecipa uma fase do desenvolvimento psicológico (JUNG, 2015).
Sabemos que todo produto psíquico, encarado do ponto de vista causal, é a resultante de conteúdos psíquicos que o precederam. Sabemos, além disso, que esse mesmo produto psíquico, considerado sob o ponto de vista de sua finalidade, tem um sentido e um alcance que lhe são próprios dentro do processo psíquico. Este critério deve ser aplicado também aos sonhos (JUNG, 2013b, § 451).
Para Jung (2013d), uma compreensão satisfatória e completa acerca do pensar inconsciente do sonho, passa necessariamente tanto pelo ponto de vista de sua determinação causal, quanto seu sentido teleológico ou prospectivo. Ou seja, depois que os símbolos do sonho forem reduzidos, decompostos em suas reminiscências ou anseios pessoais, deve-se partir em seguida para um processo de síntese. Este, integra o material simbólico numa expressão conjunta e coerente, que tende a informar à consciência a situação dos movimentos inconscientes (JUNG, 2014).
O inconsciente é aquilo que não se conhece em determinado momento, e por isto não é de surpreender que o sonho venha acrescentar à situação psicológica consciente do momento todos aqueles aspectos que são essenciais para um ponto de vista totalmente diferente. É óbvio que a função do sonho constitui um ajustamento psicológico, uma compensação absolutamente indispensável à atividade ordenada (JUNG, 2013b, §469).
Como dito na citação, o sonho tenta acrescentar aspectos essenciais à consciência. Tal fenômeno serve ao princípio de progressão da libido, que busca constantemente adaptar a consciência a uma nova situação, satisfazendo a exigência das condições ambientais (JUNG, 2013a). Com isso, se infere o quanto o ponto de vista final concorre para a educação prática da personalidade, pois além de a adaptar ao mundo externo, a leva à assimilação de funções inconscientes (JUNG, 2013b), ou seja, uma adaptação também ao mundo interno.
A partir daí, se começa a compreender o que Jung queria dizer ao resumir como função geral do sonho a compensação. Quando se diz isso, se quer dizer que o inconsciente, através do sonho, contrabalanceia a atitude unilateral consciente. Por isso é tão importante observar suas ideias e sugestões, elas fornecem o conhecimento das leis próprias do indivíduo. Estas, mantém o sujeito em contato com seus instintos individuais, aquilo que dá viço para ele e para sua existência (JUNG, 2013c).
Quanto mais unilateral for a sua atitude consciente e quanto mais ela se afastar das possibilidades vitais ótimas, tanto maior será também a possibilidade de que apareçam sonhos vivos de conteúdos fortemente contrastantes como expressão da autorregulação psicológica do indivíduo. Assim como o organismo reage de maneira adequada a um ferimento, a uma infecção ou a uma situação anormal da vida, assim também as funções psíquicas reagem a perturbações não naturais ou perigosas, com mecanismos de defesa apropriados. O sonho faz parte, segundo meu modo de entender, dessas reações oportunas, porque ele proporciona à consciência, em determinadas situações conscientes e sob uma combinação simbólica, o material inconsciente constelado para este fim. (JUNG, 2013, § 488)
Não estar minimamente em contato com o inconsciente, significa separar-se da vida instintual, o que estagna o sujeito e é causador de inúmeras neuroses. Isso se dá, devido a excessiva unilateralidade da consciência, gerando uma compensação proporcional por parte do inconsciente, que passa a contestá-la abertamente (JUNG, 2015). O resultado são “duas tendências, que estão em estrita oposição uma à outra, sendo que uma delas é inconsciente” (JUNG, 2014, § 16)
O exemplo da neurose é didático para a compreensão da dinâmica da compensação, na medida que se percebe que esse fenômeno é geral, e se manifesta de formas diferentes, de acordo com a situação atual do sujeito. Dentre outras razões, é por isso que muitas vezes a compensação exercida pelo sonho não se evidencia à primeira vista. Por isso, torna-se preciso analisar o conteúdo manifesto para se chegar aos elementos compensadores de seu conteúdo latente (JUNG, 2013b).
Nesta perspectiva existem três possibilidades. Se a atitude consciente a respeito de uma situação dada da vida é fortemente unilateral, o sonho adota um partido oposto. Se a consciência guarda uma posição que se aproxima mais ou menos do centro, o sonho se contenta em exprimir variantes. Se a atitude da consciência é “correta” (adequada), o sonho coincide com esta atitude e lhe sublinha assim as tendências, sem, contudo, perder a autonomia que lhe é própria (Ibid., § 546).
A partir de suas conclusões, Jung em seu texto: “Aspectos gerais da psicologia do sonho” de 1928, que consta dentro das suas obras completas no volume 8/2: “A natureza da psique” (2013b), tenta fazer uma classificação de diferentes formas gerais de compensação que o sonho pode manifestar. A primeira, seria aquela considerada apropriada, pois fala de uma autorregularão do organismo psíquico. Nela, o sonho acrescenta à situação consciente todos os elementos que, no estado de vigília não alcançaram o limiar da consciência, devido ao recalque, ou por serem muito débeis para conseguir chegar por si à consciência.
Ela é uma antecipação de atividades futuras conscientes, uma espécie de exercício preparatório, ou um esboço preliminar do inconsciente, um plano traçado antecipadamente, uma função prospectiva.
Seria injustificado qualificá-los de proféticos, pois, no fundo, não são mais proféticos do que um prognóstico médico ou meteorológico. São apenas uma combinação precoce de possibilidades que podem concordar, em determinados casos, com o curso real dos acontecimentos, mas que pode igualmente não concordar em nada ou não concordar em todos os pormenores (Ibid., § 493).
A função prospectiva, por resultar da fusão de elementos subliminares que, devido ao seu fraco relevo, escaparam à consciência, é muitas vezes superior à combinação consciente. Além disso, o sonho conta com memórias inconscientes, o que acrescenta em suas possibilidades perceptivas.
Jung prossegue dizendo que, apesar disso, é muito importante compreender que a atitude para com o sonho – e o inconsciente em geral – deve ser a partir do ponto de vista da consciência. Tomá-lo em consideração com exclusividade, como uma espécie de oráculo, em detrimento da consciência, seria inadequado, e só serviria para confundir e destruir a atividade consciente.
Somente em presença de uma atitude manifestamente insuficiente e deficiente é que se tem direito de atribuir ao inconsciente um valor superior. […] Se a atitude consciente, portanto, for mais ou menos suficiente, a importância do sonho se limita à sua significação puramente compensadora. Este caso é a regra geral para o homem normal e que vive em condições externas e internas normais (Ibid., § 494)
Quando o indivíduo se encontra com uma atitude consciente subjetiva e/ou objetivamente inadaptada, como Jung continua explicando no texto, a função exercida pelo inconsciente passa para uma categoria de função prospectiva dirigente, que imprime à atitude consciente uma orientação diferente e bem melhor do que a anterior exercida pela consciência.
Dando continuidade à classificação, o autor fala daqueles casos em que o indivíduo, cujo caráter idiossincrático não está de acordo com sua manifestação consciente, é compensado pelo sonho de forma redutora. Trata-se de indivíduos em que a atitude consciente e seu esforço de adaptação ultrapassam as suas capacidades individuais, querendo parecer em certos âmbitos melhores e mais valiosos do que de fato são.
O sonho redutor tem a tendencia de desintegrar, dissolver, depreciar, e até mesmo destruir e demolir partes e características da personalidade que não vão de encontro com o sujeito. Por isso, Jung (Ibid.) comenta, muitas vezes ele tem um efeito altamente salutar, pois afeta apenas a atitude especifica, e não a personalidade como um todo.
A função redutora do inconsciente, que se aplica a esse tipo de sonho, constela materiais compostos, em sua essência, de desejos sexuais inferiores recalcados (inserir aqui o link do texto: “Sonhos – a interpretação causalista redutiva freudiana”) e de vontades de poder infantis, bem como de resíduos arcaicos e supraindividuais. Tudo nele é retrospectivo, e conduz a um passado que há muito se acreditada estar sepultado
A reprodução de tais elementos com seu caráter totalmente arcaico é apropriada, mais do que nenhuma outra coisa, para minar efetivamente uma posição excessivamente elevada, para lembrar ao indivíduo a insignificância do ser humano e reconduzi-lo aos seus condicionamentos fisiológicos, históricos e filogenéticos. Toda aparência de grandeza e de importância falaciosas se dissipa diante das imagens redutoras de um sonho que analisa sua atitude consciente com implacável senso crítico, pondo às claras materiais arrasadores que se caracterizam por um registro completo de todas as suas fraquezas e inquietações (Ibid., 497).
Apesar de retrospectivo, este ainda mantém sua função finalista, pois é um sonho compensador, que tem como objetivo provocar uma melhor adaptação do indivíduo diante do seu ambiente.
Em continuidade, o autor oferece outras classificações mais específicas que não se encaixam necessariamente à psicologia geral do ser humano, pois dependem de circunstancias específicas, como lesões físicas no sistema nervoso, e por isso não serão acrescentadas a este texto. No que tange a demais classificações extraordinárias, é de utilidade e curiosidade acrescentar aqui os sonhos que expressam o fenômeno telepático.
Jung (Ibid.) não nega a existência desse tipo de fenômeno pelo fato de haver suficientes ocorrências verificadas, mas no presente texto não se arrisca a teorizar qualquer explicação para tanto, chegando mesmo a dizer que “O fenômeno existe, sem nenhuma dúvida, embora a sua teoria não me pareça tão simples” (Ibid., § 503). Ele apenas levanta alguns pontos que acrescentam à reflexão, como a criptomnésia e possibilidade de concordância de associações entre duas ou mais pessoas, com seus processos psíquicos paralelos que podem manifestar tal fenômeno por uma identidade ou semelhança muito grande de atitude. Tal situação é muito comum no seio das famílias.
A única coisa que Jung pontua no mesmo texto sobre o sonho telepático, é que segundo todas as suas observações já feitas acerca deles, o conteúdo telepático se encontra invariavelmente no conteúdo manifesto do sonho, e nunca no latente. Ou seja, ele sempre se apresentará da forma como o sonho já o apresenta, sem a necessidade de uma interpretação subjetiva do mesmo.
Resumidamente, Jung dá para o sonho um status de mecanismo psíquico para a regulação do indivíduo em relação ao inconsciente, encontrando como melhor conceito para esse fenômeno a compensação. Demonstrando as várias formas como ela pode se manifestar, ele expressa que esse mecanismo é um processo plástico, que se adapta à situação do sujeito, e que por isso, se expressa diferentemente em cada um. Sua única lei postulada é: “Sempre é útil perguntar, quando se interpreta clinicamente um sonho: que atitude consciente é compensada pelo sonho?” (JUNG, 2012, § 330).
Por fim, deixo uma citação direta, onde Jung, em sua primeira obra que se diferencia da psicanálise (“Símbolos da transformação”), argumenta sobre a função prospectiva do inconsciente por vias um tanto diferentes.
[…] indubitavelmente o inconsciente contém as combinações psicológicas que não atingem o limiar da consciência. A análise decompõe estas combinações em suas determinantes históricas. Ela trabalha em retrocesso, como a história. Assim como grande parte do passado está tão recuada no tempo que o conhecimento histórico não mais pode alcançá-la, assim também grande parte da determinação inconsciente é inalcançável. Mas a história não sabe de duas coisas: aquilo que está oculto no passado e aquilo que está oculto no futuro. Ambas, porém, talvez pudessem ser alcançadas com certa probabilidade, a primeira como postulado, a última como prognóstico político. À medida que no hoje já está contido o amanhã e toda a trama do futuro já está tecida, uma percepção mais profunda do presente poderia tornar possível um prognóstico do futuro mais ou menos distante. Se transportarmos este raciocínio para o campo psíquico, chegaremos necessariamente ao mesmo resultado: assim como vestígios de recordações de há muito subliminares ainda são acessíveis ao inconsciente, assim também o são determinadas combinações subliminares para a frente muito tênues, que são da maior importância para os acontecimentos futuros, à medida que estes são determinados por nossa psicologia. Mas, assim como a história não se preocupa com combinações para o futuro, que são objeto da política, tampouco as combinações psicológicas para o futuro são alvo da análise, mas constituiriam antes objeto de uma síntese psicológica refinada, que soubesse acompanhar os cursos naturais da libido. Não somos capazes disto, ou só muito imperfeitamente, mas o inconsciente o é, pois aí isto acontece, e parece que de tempos em tempos, em determinados casos, fragmentos importantes deste trabalho vêm à tona, pelo menos em sonhos, de onde viria então o significado profético dos sonhos, de há muito afirmado pela superstição. Os sonhos não raro são antecipações de modificações futuras do consciente (JUNG, 2011, § 78¹⁹).
REFERÊNCIAS:
FREUD, Sigmund. História de uma neurose infantil: O homem dos lobos; Além do princípio do prazer e outros textos: 1917 [1920]. In: História de uma neurose infantil: O homem dos lobos; Além do princípio do prazer e outros textos: 1917 [1920]. 2010. p. 424-424.
JUNG, Carl Gustav. A energia psíquica. 14. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2013. 99 p. (OC 8/1). Tradução de Maria Luiza Appy.
JUNG, Carl G.. A natureza da psique. 10. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2013. 416 p. (OC 8/2). Tradução de Mateus Ramalho Rocha.
JUNG, Carl G.. A prática da psicoterapia: contribuições ao problema da psicoterapia e à psicologia da transferência. 16. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2013. 156 p. (OC 16/1).
JUNG, Carl Gustav. Ab-reação, análise dos sonhos e transferência. 9. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2012. (OC 16/2). Tradução de Maria Luiza Appy; revisão técnica de Jette Bonaventure.
JUNG, Carl Gustav. Freud e a psicanálise. 7. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2013. 366 p. (OC 4). Tradução de Lúcia Mathilde Orth; revisão técnica Jette Bonaventure.
JUNG, Carl Gustav. Psicologia do inconsciente. 24. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2014. 168 p. (OC 7/1). Tradução de Maria Luiza Appy.
JUNG, Carl Gustav. Símbolos da transformação: análise dos prelúdios de uma esquizofrenia. Petropolis, Rj: Vozes, 2011. (OC 5). Tradução de Eva Stern ; revisão técnica Jette Bonaventure.
JUNG, Carl Gustav. The Red Book: liber novus. New York, Ny. London: W. W. Norton & Company, 2009. (Philemon Series). Edited by Sonu Shamdasani; translated by Mark Kyburz, John Peck and Sonu Shamdasani.
JUNG, Carl Gustav. Tipos psicológicos. Petrópolis, Rj: Vozes, 2015. (OC 6). Tradução de Lúcia Mathilde Endlich Orth.