Sobre malas e manicômios: memórias dos esquecidos

Segundo o dicionário Priberam da Língua Portuguesa, ‘Mala’ vem do francês Malle, que significa caixa revestida de couro ou lona, usada normalmente para transporte de roupas e/ou outros pertences, em viagens.

Não existem indícios na história de como foram criadas as primeiras bolsas/malas ou de como seria sua forma, o que se sabe é que desde o início dos tempos a comunicação já estava presente na vida humana. Por exemplo, através de desenhos os povos primitivos registravam seus costumes, sendo encontradas, então, imagens com a figura feminina portando bolsas.  Além, é claro, de que esses grupos pré-históricos eram nômades e viviam se deslocando de lugares de acordo com sua necessidade de obter alimentos, como já sabiam que a pele dos animais (couro) servia para proteção do corpo, pode ter surgido daí a ideia de criar um “recipiente” capaz de guardar alimentos e/ou outros objetos necessários para a viagem.

O que sabemos até aqui é que as malas sempre tiveram o mesmo sentido e foram utilizadas para os mesmos fins: carregar objetos. E se formos parar para pensar, pode ser que uma pessoa não tenha tantos objetos ou pertences, mas, mesmo assim, possui uma mala e a carrega para onde for, porque de uma forma ou de outra, ali está seu mundo.

Talvez tenha sido esta a ideia de Jon Crispin ao elaborar seu projeto, conhecido principalmente pela sua paixão por temas diferentes, dentre eles a curiosidade por manicômios abandonados. Talvez tenha sido daí que surgiu a curiosidade de se olhar para malas abandonadas e esquecidas procurando entrar no mundo de quem as perdeu.

O trabalho de Jon Crispin consistiu em fotografar cerca de 400 malas encontradas no manicômioWillard Asylum For The Chronic Insane (Asilo Para Cronicamente Insanos de Willard), lugar este que funcionava desde 1869, e que fechou suas portas em 1995.

Em 1975 o asilo passa a ser patrimônio histórico dos Estados Unidos. Foram encontradas centenas de malas que pertenciam aos usuários que por lá passaram e que provavelmente lá morreram. Malas carregadas de lembranças e histórias, tornando-se assim objetos do acervo do Museu do Estado de Nova York, para acesso da população.

O Willard Asylum for the Chronic Insane era mais um dos inúmeros locais onde as pessoas eram mantidas excluídas da sociedade. Não precisavam mostrar sintomas de perturbações mentais, bastavam não entrar no grupo de pessoas “normais” segundo as normas da sociedade. Pessoas deprimidas, gays, pobres, negros, prostitutas, mendigos, pessoas essas que precisavam ser mantidas longe, possivelmente passaram mais da metade de suas vidas presas e afastadas do mundo.

Não diferente de outros asilos, o Asilo Para Cronicamente Insanos de Willard também utilizava de formas rudimentares para o tratamento de seus internos. O asilo fechou na época em que tais formas de tratamento foram consideradas desumanas e cruéis.

Segundo alguns estudos, foi através da reforma psiquiátrica que tornou possível o início da luta pela extinção de locais como o Asilo Para Cronicamente Insano de Willard. A luta antimanicomial consiste principalmente em lutar pelos direitos da dignidade aos pacientes psiquiátricos, “luta essa com um olhar para o ser humano como sujeito de todas as ações, tendo como princípios a desinstitucionalização do manicômio” (LEAL, s/p, 2012). A reforma psiquiátrica visa modificar o sistema de tratamento clínico da doença mental, eliminando como forma de tratamento a internação e exclusão do paciente da sociedade.

O trabalho do fotógrafo Jon Crispin nos proporciona uma viagem pelo passado desses pacientes que tiveram suas vidas eliminadas de uma sociedade munida de pré-conceitos. Cada mala registra a simplicidade, os sonhos e os desejos de cada um dos internos que foram mantidos guardados, na esperança de que um dia eles pudessem finalmente voltar para suas casas, para uma vida normal. As fotografias representam um tipo de resgate à lembrança dessas pessoas que por lá foram esquecidas.

São imagens como essas, de uma realidade mantida por anos escondida, que nos fazem refletir sobre a nossa maneira de encarar a loucura, a nossa mania de deixar que nossos pré-conceitos dominem toda uma história. Lugares como esse asilo ainda existem por aí, cabe a nós lutarmos para que eles sejam excluídos de nossa história e que sejam lembrados apenas como um erro que não deveria ter existido, muito menos se repetir.

Nota: Todas as malas apresentadas foram retiradas do acervo de Jon Crispin, disponível em:http://joncrispin.wordpress.com/tag/willard-suitcases/