Os primórdios da psicanálise têm seu gérmen a partir do momento em que Freud entra em contato com a escola de hipnotismo francesa (JUNG, 2013c). Ali, através da hipnose, ele experimenta diretamente a presença e influência do inconsciente na personalidade. Por razões de efetividade terapêutica, mais tarde, junto de Josef Breuer, eles abandonam a prática hipnótica, e passam a usar como prática terapêutica exclusivamente a associação livre. É consolidado assim o método psicanalítico.
A via para o inconsciente agora se dava através de uma forma interpretativa do discurso, a partir da análise de sintomas e repetições, de forma que o paciente era, ao contrário do método hipnótico, agente participante do seu processo terapêutico. Faltava, porém, uma via direta de diálogo com o inconsciente, sem o filtro da consciência. É nesse contexto então, que se dá a grande descoberta de Freud: o sonho como a via régia para o inconsciente, publicando assim em 1900 a obra “A interpretação dos sonhos”. “[Este livro] contém, mesmo segundo meu julgamento atual, a mais valiosa descoberta que tive a felicidade de fazer. Um insight como esse só nos ocorre uma vez na vida” (FREUD, 2018, contracapa).
A partir de 1907, Carl Gustav Jung dá início ao seu contato com Freud, que dura até 1913, período de parceria e coparticipação em descobertas psicanalíticas. É embasado na noção psicanalítica, que se inicia o conhecimento de Jung sobre o sonho. Mais tarde, ele a coloca como parte integrante de sua compreensão sobre a fenomenologia do sonho, a nomeando de perspectiva causalista (JUNG, 2013a).
Nessa teoria do sonho, ele é compreendido como produto de uma complicada conexão de fenômenos psíquicos, uma obra que tem seus motivos, advindos de cadeias prévias de associações, sempre referindo-se a algo anterior, um passado psíquico, e possui, portanto, um significado. Esse método baseia-se em um procedimento redutivo, exclusivamente causal, que decompõe o sonho nos componentes de reminiscências e nos processos instintivos que lhe constituem a base (JUNG, 2014). Ante a obscuridade e confusão que se apresenta o sonho como o lembramos, dá-se o nome de conteúdo manifesto. Ele seria a fachada pelo qual se esconde a verdadeira ideia do sonho, o conteúdo latente (FREUD, 2018).
O “sonho manifesto”, isto é, o sonho tal como nos lembramos dele, segundo Freud, é como a fachada de uma casa: à primeira vista nada revela de seu interior, que fica oculto por detrás da chamada censura do sonho. Permitindo-se que a pessoa fale sobre os detalhes de seu sonho – obedecidas determinadas regras técnicas – vemos que as ideias que lhe ocorrem seguem todas uma mesma direção, concentrando-se em torno de um assunto específico, de significado pessoal. Inicialmente, essas ideias assumem um sentido que se dissimulava por trás do enredo do sonho. […] Esse complexo específico de pensamentos em que se concentram todos os fios do sonho é o conflito procurado, que se apresenta numa variação condicionada pelas circunstâncias (JUNG, 2014, § 21).
A forma toda especial que adquirirá o conteúdo manifesto do sonho corresponde a disposição psíquica do indivíduo, ou seja, sua individualidade. Nosso estado de espírito no presente depende de nossa história, e, por isso, os elementos de valores, na diversidade de cada pessoa, são os determinantes da constelação psíquica. Acontecimentos que provocam fortes reações de sentimento são de grande importância para o desenvolvimento psíquico posterior. Essas recordações, dotadas de forte carga emocional, formam complexos de associações mais ou menos extensos, que Jung (2013c) dá o nome de “complexos ideoafetivos”.
São, portanto, as associações consteladas pelos complexos que dão forma para o conteúdo manifesto do sonho, e é através dele que se pode fazer o caminho contrário para compreender seu conteúdo latente. Nesse método interpretativo, se volta ao passado para reconstituir certas experiências anteriores, a partir da manifestação de determinados motivos oníricos. Esse percurso é de utilidade em contexto terapêutico por abrir a possibilidade da conscientização de conteúdos inconscientes, ou de revelar fatos que o paciente não queria contar.
Se alguém sonha, por exemplo, com uma mesa, estamos ainda bem longe de saber o que a palavra “mesa” do sonho significa, embora a palavra “mesa” em si pareça suficientemente precisa. Com efeito, há qualquer coisa que ignoramos, e é que esta “mesa” é precisamente aquela mesa à qual estava sentado o pai do sonhador, quando lhe recusou qualquer ajuda financeira posterior e o expulsou de casa como um sujeito imprestável. A superfície lustrosa desta mesa está ali, diante de seus olhos, como o símbolo de uma inutilidade catastrófica tanto no estado de vigília, como nos sonhos noturnos. Eis o que o sonhador entende por “mesa” (JUNG, 2013a, § 539).
Os elementos do conteúdo manifesto, em relação ao conteúdo latente, apresentam-se não só de forma difusa e distorcida, como também uma espécie de resumo de um conglomerado de conteúdos psíquicos inconscientes. Em um único sonho, a partir de uma reflexão sobre o mesmo, é possível obter uma infinidade de observações, percepções e associações subjacentes, de forma que todas façam sentido. Esses, revelam os pensamentos oníricos, que são processos correntes na dinâmica psíquica, uma espécie de pauta inconsciente levantada e eliciada pelos processos vivenciados em vigília. São produtos da constelação psíquica do dia a dia.
Segundo Freud (2018), essa multiplicidade se dá devido o trabalho de condensação realizado pela elaboração onírica, um processo em que se incute uma diversa cadeia de significantes em um único sonho. Portanto, da mesma forma que um sonho pode se ligar a mais de um fato, um objeto do sonho pode condensar e se referir a mais do que apenas um elemento. Um bom exemplo é quando no sonho, nos deparamos com uma pessoa que se parece com alguém que conhecemos, mas ao mesmo tempo nos lembra outra pessoa.
Outro processo comum e importante do sonho é o deslocamento. Aqui, o pensamento onírico é encoberto por uma espécie de disfarce. “[…] seu conteúdo é ordenado em torno de elementos centrais diferentes dos pensamentos oníricos […] ou seja, arrancado do contexto e, dessa maneira, transformado em algo estranho” (FREUD, 2018, p. 328).
Esse mecanismo do sonho contribui com o processo de censura do conteúdo latente, pois encobre seu significado. A citação usada acima é um ótimo exemplo. A mesa de pinho, como conteúdo manifesto, é um deslocamento do real conteúdo latente: a recusa de auxílio financeiro e expulsão de casa realizada pelo seu pai, que no momento se sentava à mesa de pinho.
Freud (2018) em sua teoria interpretativa, postula uma regra geral que se aplicaria ao sentido de todo sonho: ele representa a realização de um desejo reprimido. Todo o processo de censura realizado pelo contudo manifesto – que segundo ele, acontece no processo do acordar – seria justamente para mascarar aquilo que há de recalcado pela consciência. Mesmo os sonhos de angústia seriam distorções devido à defesa contra um desejo que, para a consciência, é insuportável assumir. Para o autor portanto, o sonho teria duas etapas: a realização da fantasia desejante e, após isso, sua censura, que só permite que uma ideia se manifeste quando está tão deformada que o sonhador não a consegue reconhecer, graças a isso, a informação se torna tolerável para consciência.
Tais fantasias se referem a desejos de caráter sexual (FREUD, 1997) que, por demais incompatíveis com a moral do ego, não podem tornar-se conscientes, devido a uma força contraria que se opõe a elas pela consciência: o recalque. A consciência mantém esses conteúdos inconscientes, e isso é sentido durante o processo de análise como resistência, manifestação da força que provocou e mantém o recalque. Para a psicanálise, o recalcado é o protótipo do que é inconsciente (FREUD, 2011).
Sendo o inconsciente, para Freud, um conglomerado de conteúdos recalcados devido sua incompatibilidade para com a consciência. É compreensível que ele postule os sonhos como mera manifestação destes. Já Jung não o considera de forma tão redutiva:
De acordo com a ideia original de Freud, o inconsciente é uma espécie de recipiente, ou porão, para material reprimido, desejos infantis e coisas do gênero. Contudo o inconsciente é bem mais do que isso: ele é, simplesmente, a base, a condição preliminar da consciência. Representa a função inconsciente do psiquismo. É a vida psíquica antes, durante e depois da tomada de consciência. Como a criança recém-nascida, que chega ao mundo com o cérebro pronto e altamente desenvolvido, e cuja diferenciação foi formada pela experiência acumulada dos seus antepassados, no decorrer de séculos e séculos sem conta. Assim também a psique inconsciente é formada por instintos, funções e formas herdadas, já pertencentes à psique ancestral (JUNG, 2013b, § 61).
Sendo suas considerações sobre o inconsciente diferentes das de Freud, também suas perspectivas sobre os sonhos se diferenciam das dele. Melhor dizendo: as concepções de Jung sobre o inconsciente e, logo, sobre os sonhos, consideram os conhecimentos freudianos como componentes da psicologia analítica, e uma etapa do processo de análise. Ou seja, a fenomenologia psíquica do sonho – bem como de todo o inconsciente – para a psicologia analítica, não se reduz à lógica causal, onde se dá um porque para um fenômeno, isso compõe uma parte de sua totalidade, ou melhor, um lado.
Dentre vários motivos, Jung busca outras perspectivas para o fenômeno psíquico pelo fato de a psicologia prestar contas àquele que sofre psicologicamente. Para este, nem sempre a conscientização de conteúdos inconscientes resolve seu problema. A partir desse ponto, os sonhos interpretados pelo método causal apenas continuariam a trazer as mesmas informações já sabidas. Não seria uma grande novidade, pois as causas anteriores se reduzem às bases do sujeito, que são sempre as mesmas.
É necessário compreender também o que o inconsciente e o sonho estão querendo dizer com tal situação, o que ele informa sobre o que pode ser feito. Com isso, entende-se o produto psíquico do ponto de vista de sua finalidade, e o sentido que tende o atual processo psíquico (JUNG, 2014). Não à toa, Carl Jung é um teórico da Individuação.
REFERÊNCIAS
FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. Porto Alegre, RS: L&PM, 2018. 736p. Tradução do alemão de Renato Zwick, revisão técnica e prefácio de Tânia Rivera, ensaio biobibliográfico de Paulo Endo e Edson Souza.
FREUD, Sigmund; SALOMÃO, Jayme. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Edição ‘Livros do Brasil’, 1997.
FREUD, Sigmund. Obras completes, volume 16: O eu e o id, “autobiografia” e outros textos (1923-1925). São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2011. Tradução de Paulo César de Souza.
JUNG, Carl G.. A natureza da psique. 10. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2013. 416 p. (OC 8/2). Tradução de Mateus Ramalho Rocha.
JUNG, Carl G.. A prática da psicoterapia: contribuições ao problema da psicoterapia e à psicologia da transferência. 16. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2013. 156 p. (OC 16/1).
JUNG, Carl Gustav. Ab-reação, análise dos sonhos e transferência. 9. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2012. (OC 16/2). Tradução de Maria Luiza Appy; revisão técnica de Jette Bonaventure.
JUNG, Carl Gustav. Freud e a psicanálise. 7. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2013. 366 p. (Obras Comp). Tradução de Lúcia Mathilde Orth; revisão técnica Jette Bonaventure.
JUNG, Carl Gustav. Psicologia do inconsciente. 24. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2014. 168 p. (OC 7/1). Tradução de Maria Luiza Appy.
JUNG, Carl Gustav. The Red Book: liber novus. New York, Ny. London: W. W. Norton & Company, 2009. (Philemon Series). Edited by Sonu Shamdasani; translated by Mark Kyburz, John Peck and Sonu Shamdasani.