Subjetividades contemporâneas massificadas: alguns efeitos da sociedade de controle

A Psicologia, na busca por compreender os fatores que influenciam a constituição dos sujeitos contemporâneos e os possíveis efeitos provocados, percorre os modos como a sociedade se organiza. Por meio da esquizoanálise, encontramos espaço para romper com a realidade e, mais especificamente, abolir os olhares cristalizados que esperam de nós formas padronizadas de ser e de viver.

O nosso percurso começa pelos fatores mais influentes na nossa constituição, que são definidos por Foucault como “dispositivos disciplinares que são as creches, as fábricas (empresas), quartéis, asilos, presídios, universidades” (Foucault 2004 apud NUNES, 2010, p.14).Todos estes locais marcam a nossa constituição subjetiva, mesmo quando não estamos mais inseridos neles, pois sentimos a sua influência atravessar nossas produções. Estes dispositivos funcionam por meio de estruturas fechadas, nos impondo tarefas de modo a nos transformar em pessoas produtoras, mas não das formas criativas de ser, e sim de modelos comportamentais moldados em nossa subjetividade para a transformação.

Aqui, dispositivo diz respeito à determinada maneira de dispor, de ordenar ou de posicionar estrategicamente sujeitos e equipamentos. Esses que idealizam a padronização de indivíduos produtores a favor do modo econômico vigente, o capitalismo. A função maior é “não excluir, mas, ao contrário, fixar os indivíduos […] em um aparelho de normalização dos homens.” (Foucault, 1998 apud MANSANO, 2009, p. 35).

Passamos tanto tempo inseridos nestes dispositivos disciplinares, absorvendo e sendo absorvidos pelo seu poder que chegamos a crer na inexistência de outras formas da sociedade se organizar que não sejam estas. Inclusive pensar assim faz parte da influência que estes modelos tiveram ao constituir nossa subjetividade.

O poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles. […] Efetivamente, aquilo que faz com que um corpo, gestos, discursos e desejos sejam identificados e construídos enquanto indivíduos é um dos primeiros efeitos do poder. […] O indivíduo é um efeito do poder e simultaneamente, ou pelo próprio fato de ser um efeito, é seu centro de transmissão. O poder passa através do indivíduo que ele constituiu” (FOUCAULT, 2001, p.183).

Depois de todo o tempo em que passamos sendo moldados por estes dispositivos – na nossa forma de ser e de viver – e constituir papéis definidos, chegamos na vida adulta e passamos a ser influenciados por outra forma, mas dessa vez a céu aberto pelos dispositivos de controle.

A ciência, os diversos campos do saber, os meios de comunicação social, o marketing e os organismos internacionais são exemplos desses dispositivos. Todos produzindo modulações que são assimiladas e colocadas em prática. Assim sendo, podemos dizer que as lógicas dos dispositivos disciplinares são diluídas no campo social e intensificadas, continuamente, pelas modulações dos dispositivos de controle (NUNES, 2010, p. 16).

O funcionamento do sistema disciplinar tornou-se possível através da produção de saberes e da organização de inúmeras práticas que passaram a disciplinar os indivíduos, submetendo a relacionarem-se consigo mesmos e com os outros a partir desses conhecimentos produzidos (e reconhecidos) como verdadeiros (CARVALHO, 2005, p.2).

O controle ocorre de forma a garantir que os parâmetros da sociedade disciplinar sejam seguidos e quando nos percebemos longe destes, entramos em conflito.  Enfrentamos umabusca incessante para cumprir com nossas obrigações, oriundas de todos os papéis que devemos exercer e ao mesmo tempo não nos estabilizar em nenhum. Enfrentamos uma corrida eterna em busca da plena satisfação das nossas necessidades enquanto sujeitos contemporâneos. Diversas podem ser as consequências desta busca implacável do mundo pós-moderno, sendo que uma delas é o medo.

É a origem da crise de identidade do ser que, de tão múltiplo, perdeu-se em si mesmo e luta para buscar-se. Tamanha incerteza, contradição e multiplicidade do indivíduo, muitas vezes, levam alguns a estados tão severos de questionamento, sensação de inadequação e perda em si mesmo, que se tornam depressivos, criam medos e insegurança (BAUMAN, 2008 apud SILVA, 2012, p.3-4).

O MEDO

Neste ínterim de exigências pela excelência em todos os aspectos o medo é predominante. Torna-se difícil descrever o medo de uma forma que traduza como ele é sentido e influencia todos os sujeitos. O que se sabe é que se trata de uma reação indescritível e intocável, despertada em nós, que nos fragiliza e nos faz abrir mão do que somos em busca de segurança. Sabemos que cada sujeito é único, mas ao se deparar com o medo, busca por segurança por meio de formas banais, pois ninguém quer se distanciar da padronização da sociedade hegemônica.

O medo do encontro com nós mesmos pode resultar na percepção de que somos diferentes do que a sociedade espera, lembrando que o nosso pensamento depois de moldado pelos dispositivos disciplinares crê piamente que temos que seguir certos parâmetros.

As instituições de sequestro podem ser consideradas como “máquinas” que disciplinam aqueles às quais são submetidos, imprimindo profunda e permanentemente certas disposições (disciplinares) que passam a operar pelo resto da vida. Esse conjunto de operações leva ao fim o poder disciplinar e tem como propósito a (normalização das condutas) transformação técnica dos indivíduos para adequá-los a uma norma (Foucault 1987; 2003ª apud CARVALHO, 2005, p. 8-9).

A estranheza do encontro com nós mesmos provoca mais medo e negação; um medo de ser autêntico na nossa forma mais singular de existir.Nós nos afastamos de nós mesmos ao nos comprometermos com a realidade imposta pela sociedade controladora, a qual trabalha a serviço do mundo capitalista.

Há uma homogeneização das formas de existir – que captura os processos singulares de existência. Esta política – que chamamos de política de vida – opera em nível mundial e tem como aliados dispositivos característicos das sociedades disciplinares e de controle (NUNES, 2010, p.14).

Sentimos o medo invadir nossa existência e se disseminar aos diversos aspectos do cotidiano: medo de errar, de não ser compreendido, de ser excluído, de não ser perdoado, de não ser bom como a sociedade espera (bom pai, bom filho, bom amigo, bom aluno, bom profissional), medo de fazer escolhas, de não chegar a lugar algum.

A ordem capitalística produz os modos das relações humanas até em suas representações inconscientes: os modos como se trabalha, como se é ensinado, como se ama […]. Ela fabrica a relação com a produção, com a natureza, com os fatores, com o movimento, com o corpo, com a alimentação, com o presente, com o passado e com o futuro – em suma, ela fabrica a relação do homem com o mundo e consigo mesmo. Aceitamos tudo isso porque partimos do pressuposto de que esta é a ordem do mundo, ordem que não pode ser tocada sem que se comprometa a própria ideia de vida social organizada (GUATTARI e ROLNIK, 2000, p. 42).

O medo oriundo dos processos da vida contemporânea atravessa a nossa subjetividade, e também nos transforma em pessoas consumistas e submissas. “[…] a indústria do consumo gosta de se alimentar do medo […]” (Bauman, 2008 apud KLINGER, 2013, s/p). Nos tornamos consumistas de formas materiais e imateriais ao consumirmos cada vez mais as inovações tecnológicas acreditando que precisamos delas para ser feliz; compramos status profissional quando trocamos o carro no intuito de representar ser um bom profissional. “Consumimos formas de ser e de viver, principalmente aqueles produtos que estão em evidência na mídia” (NUNES, 2010, p.14).

Na medida em que os mercados crescem os sujeitos se tornam inseguros e inadequados à sociedade. Nada é o suficientemente bastante para suprir a sensação de contramão na sociedade quando não se sente á altura dos modelos padronizados.

Os consumidores são bombardeados de todos os lados por sugestões de que precisam se equipar com um ou outro produto fornecido pelas lojas se quiserem ter a capacidade de alcançar e manter a posição social que desejam desempenhar, suas obrigações sociais e proteger a autoestima (BAUMAN, 2008 apud SILVA, 2012, p.2).

Os corpos são manipulados o tempo inteiro e nem percebemos isso. Nossa submissão é produto da constituição dos dispositivos disciplinares, que até hoje não foram superados por completo, de modo que tais dispositivos nos fazem crer piamente que sempre existe um saber dominante acima de nós. Esse saber dominante é serviçal do capitalismo e passa a nos controlar, nos influenciando a consumir os bens materiais e imateriais, ou seja, as formas de ser e de viver massificadas.

Podemos citar como o exemplo mais contemporâneo que invadiu a vida dos sujeitos o uso das redes sociais. Não estar inserido em uma rede faz com que o sujeito se sinta excluído da sociedade e desatualizado. Muitas vezes ele até mesmo é excluído, pois as relações passam a funcionar de forma mais dinâmica e, às vezes, restritas a esses meios.

Diante do consumo excessivo, a necessidade de mobilidade e visibilidade é cada vez maior, deflagrando uma constante reformulação das identidades como formas de assegurar os princípios de inclusão/exclusão elaborados pelo mercado (BAUMAN, 2008 apud SILVA, 2012, p.3).

O MEDO E O USO DAS REDES SOCIAIS

O sentimento de exclusão ou a necessidade de utilizar algumas ferramentas atreladas a este meio tecnológico fazem com que o sujeito se insira em alguma rede social. Participar desta deixou de ser algo pertencente apenas às classes de maior poder aquisitivo e passou a ser uma necessidade de todos os sujeitos independentemente da classe econômica, afinal todos querem ser vistos.

[…] Tendências exibicionistas e performáticas alimentam a procura de um efeito: o reconhecimento nos olhos alheios e, sobretudo, o cobiçado troféu de ser visto. Cada vez mais é preciso aparecer para ser. E de acordo com as premissas básicas do espetáculo e da moral da visibilidade, se ninguém vê alguma coisa é bem provável que essa coisa não exista (SIBILIA, 2008, p. 111-112).

Por um lado verificamos a facilidade e a rapidez com que as informações chegam até nós e que as transmitimos. Também podemos manipular a nossa vida, nos atualizar e aos outros sobre os acontecimentos recentes, pois como somos estendidos a este meio, passamos a nos expor sobre a forma como nos relacionamos, com quem, onde e quando. Por outro, temos a sensação de que somos escravos de tantas tecnologias. Quando inseridos nas redes sociais passamos a ter certos comportamentos padronizados como os dos outros. Sentimos que as subjetividades passam a ser expostas de tamanha forma como se estivéssemos despidos. Parece que nada mais é novidade, pois até mesmo o modo como as fotos são expostas passam a ser padrão para todos como o manjado “selfie”.

Em meio aos vertiginosos processos de globalização dos mercados em uma sociedade altamente midiatizada, fascinada pela incitação à visibilidade e pelo império de celebridades, percebe-se um deslocamento daquela subjetividade “interiorizada” em direção a novas formas de autoconstrução (SIBILIA, 2008, p. 23).

Quando acompanhamos as mudanças oriundas dos avanços tecnológicos, sentimos medo ao pensar que as relações estão praticamente restritas ao meio virtual e tecnológico. A forma como faculdade, o trabalho e as demais esferas da nossa vida são moduladas pela sociedade de controle acabam fazendo com que o sujeito busque fazer parte deste mundo contemporâneo. Sobre o modo como estas transformações contextuais afetam nossa subjetividade, Sibilia (2008) sinaliza que não há dúvidas de que “forças históricas imprimem sua influência na conformação dos corpos e das subjetividades”. Para autora, os vetores socioculturais, econômicos e políticos “exercem uma pressão sobre os sujeitos dos diversos tempos e espaços, estimulando a configuração de certas formas de ser e inibindo outras modalidades” (p.15).

Desse modo, não conseguimos pensar na possibilidade de criar novos modos de vida que não estejam baseados nesse tipo de controle porque toda essa massificação é espalhada por meio da mídia e produz o medo em todos nós.

Tanto na internet quanto fora dela, hoje a capacidade de criação é sistematicamente capturada pelos tentáculos do mercado, que atiçam como nunca essas forças vitais e, ao mesmo tempo, não cessam de transformá-las em mercadorias (SIBILIA, 2008, p. 8).

Este medo pode nos tornar constantemente insatisfeitos com o que somos e assim deixamos de aproveitar o nosso potencial com as nossas produções criativas;  passamos a gastá-lo com tentativas levianas de se igualar ao outro a fim de que sintamos a segurança do que o “ser comum”, ser igual ao outro é capaz de produzir. Ao invés de tentarmos nos conhecer melhor, passamos a copiar modelos de pessoas que muitas vezes também não se conhecem, apenas reproduzem o que está em voga. Em vez de solicitar a técnica da introspecção, que, segundo Sibilia (2008), procura olhar para dentro de si a fim de “decifrar o que se é, as novas práticas incitam o gesto oposto: impelem a se mostrar para fora” (p. 115).

Passamos a ser subjetivados pelo controle das tecnologias e redes sociais. Sentimos impotência e nos esforçamos cada vez mais para ter e fazer parte daquilo que a maioria tem ou faz, mesmo que isso não nos seja necessário, pois o que importa é estar em sintonia com a hegemonia da sociedade e não sentir o medo de “ficar para trás.” Estamos tão alienados que ao abandonar a nossa singularidade, nos tornamos despotencializados.

O que foi mencionado ao longo do texto não é uma luta contra a sociedade, mas uma das formas críticas de ver o funcionamento das relações sociais, a qual almeja mais liberdade para os “eus” enclausurados nos conceitos cristalizados de normalidade. Discutir acerca dos efeitos da sociedade de controle é uma importante estratégia de romper com a lógica de que existe uma certa forma subjetiva de existir, mas reconhecemos que ainda existe muito a ser estudado e discutido sobre o assunto.

Referências:

BAUMAN, Z. Vida líquida. 2ª ed. Zahar:  Rio de Janeiro, 2007

CARVALHO, R. S. Educação infantil: práticas escolares e o disciplinamento dos corpos. Porto Alegre. 2005. 193p. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Faculdade de Educação. 2005.

DESCARTES, René. Meditações Metafísicas. de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 16ª ed. Editora Graal: Rio de Janeiro, 2001. 295 p.

GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 2000.

KLINGER, K. A. O medo líquido em Bauman: leituras possíveis. 2013. Disponível em:http://ulbra-to.br/encena/2013/09/05/O-medo-liquido-em-Bauman-leituras-possiveis. Acesso em: 03/11/2014

MANSANO, S.R.V. Sorria, você está sendo controlado: Resistência e poder na sociedade de controle. Summus editorial: São Paulo, 2009. 191p.

NUNES, J. R. Produção de Práticas e Projetos Sociais. Niterói. 2010. 75 p.  Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de Psicologia, 2010.

ROLNIK, S. Cartografia Sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Editora Sulina: Porto Alegre, 2006. 247p.

SIBILIA. Paula. O Show do eu: a intimidade como espetáculo. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 2008. 286 p.

SILVA, A. A Sociedade Contemporânea: A Visão de Zygmunt Bauman. [Editorial]. Revista Pontifícia Universidade de São Paulo, n.2, 2012.

 


Nota:

O resultado deste texto é resultado das discussões promovidas na disciplina de Tópicos Especiais em Psicologia do curso de Psicologia do CEULP/ULBRA com a orientação da Profa Irenides Teixeira.