O romance ‘Where we go from here’, publicado por uma das maiores editoras dos Estados Unidos, é tradução de ‘Você tem a vida inteira’, do brasileiro Lucas Rocha. A obra conta a história de três jovens entrelaçadas pelo vírus HIV. “O livro mostra que o principal desafio do soropositivo hoje é o estigma”, afirma a editora-executiva Rafaella Machado, que, à frente da Galera Record, consolida um trabalho pioneiro de dar voz à diversidade.
Primeira editora a publicar um livro jovem com protagonista homossexual, a Galera Record teve seu trabalho reconhecido internacionalmente com a chegada ao mercado americano de ‘Where we go from here’, tradução de Você tem a vida inteira, de Lucas Rocha. O romance, que trata sobre o preconceito enfrentado por jovens soropositivos, foi apresentado por Rafaella Machado, editora-executiva da Galera Record, a David Levithan, diretor editorial da Scholastic, uma das maiores editoras dos Estados Unidos. “Conheci o David, que também é autor de livros para jovens, numa Bienal do Livro, e o apresentei ao título. O que mais chamou a atenção dele foi a forma como Lucas abordou a temática do HIV. É uma leitura importante para desconstruir o preconceito”, observa Rafaella Machado. O livro de Lucas Rocha foi um dos três selecionados para o Kit Gay, lançado pela Galera Record em 2018, e foi um dos títulos distribuídos pelo influenciador Felipe Neto na Bienal do Livro de 2019 em seu protesto contra a tentativa de censura do Prefeito Crivella.
A trama de Você tem a vida inteira começa com Ian, que recebe o resultado positivo do teste de HIV. No centro de tratamento onde fez o exame ele conhece Victor, cujo resultado foi negativo. Victor ainda está irado com Henrique, o rapaz com quem está saindo, por ele ter contado que era soropositivo apenas depois que eles transaram – embora tenha se precavido e usado camisinha em todos os momentos. Já Henrique está gostando de verdade de Victor e, por isso, tomou a decisão de se abrir sobre o HIV. Suas experiências anteriores no assunto não foram muito boas, e ele ainda reluta em acreditar que possa amar alguém de novo. Por meio destes três personagens, ele narra os medos, as esperanças e o preconceito sofrido por quem vive com HIV. Tudo isso numa prosa delicada e embalada também por humor, referências pop e personagens secundários cativantes – de diversos gêneros, cores e sexualidades. “Ainda temos inúmeras vozes em silêncio na comunidade onde estou inserido – da sigla LGBTQIA+, a maior parte das narrativas que vejo são G, e vou ficar muito feliz quando todas as outras letras também tiverem seu espaço de destaque, principalmente na literatura jovem brasileira”, defende Lucas Rocha.
Destaque no exterior e SUS em debate
O editor brasileiro Orlando dos Reis, colaborador da Scholastic, em entrevista ao site Publisher’s Weekly, lembrou de quando leu o original em português pela primeira vez – e se encantou imediatamente: “Ao meio do capítulo quatro, comecei a traduzir. Pensei: ‘Alguém mais precisa ler isso. Não posso ser o único”, entusiasmou-se o editor brasileiro. Depois de publicado, o livro recebeu destaque da editora norte-americana. Em meio aos quase quatrocentos títulos publicados anualmente, a Scholastic escolhe três para “leitura obrigatória” aos funcionários para a convenção anual, e ‘Where we go from here’ foi uma delas. Rafaella Machado, que participou da Convenção, a convite de Levithan, comenta o sucesso do título na nova casa. “Um ponto do livro que impressionou os funcionários da Scholastic, especialmente neste contexto de pandemia, é a assistência do serviço público brasileiro de saúde ao portador de HIV, que é uma referência mundial”. No livro, Lucas destaca na trama o desempenho do Sistema Único de Saúde brasileiro, o SUS.
3 perguntas para Rafaella Machado
A editora-executiva da Galera Record, Rafaella Machado, faz parte da terceira geração da família no comando do Grupo Editorial Record, fundado por seu avô, Alfredo Machado, em 1942 – Alfredo tinha o sonho de vender livros como ‘um produto de massa’, que todos pudessem comprar. Depois de passar pelo marketing da empresa, Rafaella assumiu a editora Galera Record com a missão de buscar novos autores, com a formação de novas gerações de leitores, sempre preocupada com a inclusão de temas e pautas de representatividade, e captar tendências editoriais.
Qual é a importância do livro do Lucas Rocha hoje?
Rafaella Machado: Há 20 anos, muitos livros e filmes para jovens falavam sobre o perigo do HIV. Agora que o vírus está sob controle, e o Brasil é referência no tratamento, existe uma carência de livros que falem sobre a verdadeira epidemia que circunda os soropositivos, que é o preconceito e a intolerância. O livro do Lucas mostra que o principal desafio do soropositivo hoje não é mais a doença e sim o estigma pessoal.
Como surgiu a ideia de apresentar o livro ao David Levithan?
R. M: Eu conheci o David aqui no Brasil, quando ele veio para a Bienal de 2018 e conversamos muito sobre a importância de livros LGBT contra o autoritarismo e homofobia, especialmente nos Estados Unidos do Trump. Quando acabou a Bienal, o David foi conhecer a sede do Grupo Editorial Record, em São Cristóvão, no Rio, e ele me perguntou qual livro do selo que mais me empolgou ultimamente. Entreguei um exemplar para o David e nunca pensei que ele encontraria alguém para ler o original em português.
Levithan é uma referência no mercado jovem. Como é sua relação com ele?
R. M: Eu me inspiro muito no trabalho dele. Foi para ele que liguei quando o Crivella tentou censurar os livros gays na Bienal e falar com ele reforçou para mim a responsabilidade social de um editor jovem na luta contra o silenciamento, o tabu e preconceito, seja de pessoas homoafetivas ou qualquer outro tipo de minoria.