Entre avaliações: relato de experiência de uma estagiária no contexto da avaliação (neuro)psicológica

Ana Carla Olímpio Soares- anacarlaolimpio@rede.ulbra.br

 

Não sei dizer ao certo o motivo pelo qual escolhi cursar Psicologia, talvez seria o momento de verbalizar a frase clichê “Não fui eu que escolhi a psicologia, foi ela quem me escolheu”? Também não sei dizer com clareza. Ao adentrar na faculdade em 2017 me deparei com um mundo totalmente desconhecido, me vi com medos, dúvidas e até mesmo sentindo-me perdida, ao mesmo tempo em que sentia encantamento diante dos conteúdos trabalhados com alguns professores. Confesso que vivenciei momentos em que simplesmente fui tomada pelo desânimo e a vontade de desistir da graduação, mas com o incentivo dos meus pais, eu permaneci.

Durante a graduação, grande parte do que “vivemos” são as teorias que nos são apresentadas, mas sempre há o lembrete que quando parte para a parte prática, nem sempre é possível seguir as teorias como elas são. Uma dessas vivências “teóricas” que lembro de experienciar durante o percurso, foi com a matéria de estágio básico em que recebíamos profissionais convidados pelas professoras que ministravam a matéria e esses convidados nos relataram sobre suas práticas e como funcionava o sistema em que eram inseridos. Em um desses momentos, ocorreu a visita ao CAPS AD III e que foi uma ocasião ao quão me fascinou e me trouxe uma vontade absurda de querer ter experiências nesse ambiente (estágio ou até mesmo trabalho após formação).

Conforme o tempo foi passando no curso, eu fui sentindo vontade de sair da “bolha” do que é apresentado na graduação, queria ter a experiência da prática de algo vinculado ao curso e até mesmo o fato de precisar de uma ajuda na minha renda, comecei a ir em busca de estágios extracurriculares. Sempre que compartilhavam uma vaga de estágio para acadêmicos de psicologia eu costumava enviar o currículo, até que ao “revirar” um site em que é apenas de vagas de emprego e/ou estágio, eu achei o anúncio de um vaga de estágio em uma clínica que oferta serviços de avaliação neuropsicológica e outras especialidades que a psicologia exerce e encaminhei o currículo. Confesso que foi algo que achei que não daria retorno, seria mais uma vaga sem “sucesso”.

Até que então fui chamada para participar do processo de entrevista e ao perceber que as outras acadêmicas possuíam algum tipo de experiência com crianças ou com outras situações trabalhistas, pensei que não teria “chances” e logo após ser chamada para a parte das avaliações, senti mais confiança de que poderia ser chamada. Ao ser chamada e iniciar o momento de experiências, mais uma vez os pensamentos intrusivos como “não vou conseguir”, “será que estou fazendo certo?”, “será que vou conseguir lidar com os momentos com as crianças?”, pensamentos esses que começaram a gerar medo e bastante ansiedade. Com o passar do tempo, as inseguranças e medos foram desaparecendo e dando espaço ao acolhimento e ensinamentos que os profissionais prestaram e oferecem até hoje. O processo de avaliação neuropsicológica de acordo com o trabalho de Mader (1996), é

“o método para investigação do funcionamento cerebral através do estudo comportamental. Os objetivos da avaliação neuropsicológica são basicamente auxiliar o diagnóstico diferencial, estabelecer a presença ou não de disfunção cognitiva e o nível de funcionamento em relação ao nível ocupacional, localizar alterações sutis, a fim de detectar as disfunções ainda em estágios iniciais.”

Referente a avaliação neuropsicológica infantil, a autora Navatta et al. (2009) traz a visão de diversos autores que expressam que

“A avaliação psicológica infantil é um processo e, portanto, pressupõe alguns passos: entrevista inicial, observações lúdicas, planejamento da avaliação, seleção de instrumentos, análise e integração dos dados, seja esse processo individual ou em grupo A avaliação neuropsicológica na infância pode ser expressa quantitativamente e qualitativamente. Do ponto de vista quantitativo, são utilizados testes psicométricos e neuropsicológicos, organizados em baterias fixas ou flexíveis, os resultados refletem os principais ganhos ao longo do desenvolvimento e têm o objetivo de determinar o nível evolutivo específico da criança”.

No campo do estágio, meu primeiro contato foi com os testes, materiais esses que são infinitos. Foi possível perceber a grande variedade que há para o processo avaliativo, dando assim, uma ampla maneira de planejar e executar o processo de cada paciente, podendo respeitar a subjetividade de cada um deles. Em primeiro momento ao ser apresentada aos testes, foi com o intuito de compreender o que é avaliado, como é feito sua aplicação e posteriormente, a correção e interpretação do mesmo. O teste que tive o primeiro contato foi o WISC-V, um teste que é composto por vários subtestes e que avalia, por exemplo, memória, atenção, funções executivas, raciocínio, além de fornecer o Q.I. da criança avaliada. Além de aprender ele, e sigo aprendendo (levando em consideração que os testes estão sempre se “renovando”), tive contato com o teste SON-R2, Figuras de Rey, entre outros.

Além da parte dos testes, tive (e ainda tenho) momentos de participação nos atendimentos com as crianças, com o objetivo de auxiliar o neuropsicólogo nos momentos precisos ou até mesmo como observadora com o intuito de ver na prática como funciona. Como nunca tive trabalho com crianças, ainda é algo novo e nesse quesito, o meu chefe procura me ajudar a “superar” esse fato e busca meios de me ensinar nesse processo. Quando acompanho os atendimentos, é perceptível que o processo de avaliação vai muito além da aplicação de testes, é de fundamental importância que o profissional tenha um olhar atento e até mesmo humanizado para que possa perceber as limitações que a criança apresenta e compreender que nem todo o planejamento inicial será possível de ser realizado e que isso também poderá ser um dado qualitativo a ser coletado.

Por vezes o processo é perpassado por momentos de complicações, além de imprevistos no momento da aplicação. Nos atendimentos em que já participei, em algumas vezes o planejamento era um, mas quando estava dentro da sala em conjunto com a criança, era percebido dificuldades de compreender os comandos, falta de concentração ou até mesmo o paciente não conseguia realizar a leitura das atividades e isso terminava por “desmontar” a sessão traçada. Nesses momentos sempre via necessário e eficiente o olhar clínico atento e até mesmo empático do profissional, pois além de adaptar algumas atividades ou realizar um momento lúdico com finalidade de estimulação ou aprendizado para a criança, percebia um cuidado essencial em não deixar a criança desconfortável por não conseguir realizar a atividade.

Antes havia a ideia de que um processo avaliativo era composto apenas pelas testagens e contato com os pais, mas ao adentrar nas sessões, é perceptível que vai além disso. É importante observar as crianças, pois o meio em que estamos está a todo momento nos afetando e nós afetando-o. Durante os encontros cada criança porta-se de uma forma, uns são tímidos e mais calados, outros mais falantes, alguns mais desatentos e outras características e cabe a nós dosar esses comportamentos, pois há um risco de que apresente interferências nos resultados, como por exemplo, uma criança que era bastante falante, enérgica quando foi o momento de realizar teste que avaliava sua capacidade de atenção, não apresentou resultados satisfatórios em comparação as tabelas normativas de correção.

Cada paciente e/o família que chegam é possível notar que apresentam características únicas, mas que apesar disso, é possível notar semelhanças em alguns pontos, como por exemplo, já vi pais preocupados com o que pode estar atrapalhando o filho, outros chegam “desesperados” por perceber que o filho não acompanha os colegas de turma ou crianças da idade e não sabe como proceder, há aqueles que chegam por meio de encaminhamento médico e nesse ponto, é notório o quão está crescente a presença do Transtorno de Déficit de Atenção – TDAH, Transtorno do Espectro Autista – TEA e até mesmo casos de ansiedade alta nas crianças.

Em um dos atendimentos em que participei em conjunto com o neuropsicólogo e que me marcou, foi a sessão com um menino de 12 anos em que seria realizado a aplicação do teste Leitura de Palavras e Pseudopalavras Isoladas – LPI, esse teste “tem como objetivo avaliar a habilidade de leitura oral, mais especificamente, a precisão no reconhecimento de palavras e pseudopalavras.” (VETOR, 2013). Na aplicação do teste, é apresentado para o paciente um pequeno livro em que contém diversas palavras, cada vez que é mostrado a palavra, a criança deve realizar a leitura e ao mesmo tempo, observar como ele pronuncia e em caso da pronúncia errada, escrever a maneira que ele verbalizou.

Com esse paciente em questão, desde a primeira palavra que havia sido apresentada, ele não conseguiu realizar a leitura. Como uma tentativa de continuar com o teste, foi tentando trabalhar juntamente com a junção silábica, mesmo assim foi necessário encerrar e partir para uma atividade lúdica para trabalhar as letras alfabéticas e até mesmo os numerais. No momento de trabalhar as letras e números, pedi para ele tentar organizar da maneira que ele sabia, era perceptível o quão desconfortável e envergonhado o paciente estava. Confesso que foi algo que também me deixou sem jeito, mas que era preciso fazer para poder avaliar até onde ele sabia. Aos poucos que ele ia acertando, costumava verbalizar palavras como “isso mesmo, parabéns”, “acertou” e podia perceber sorrisos de canto que ele expressava.

Fico pensando se fosse em um outro lugar, com outra equipe que focasse apenas nos testes e seus resultados e não levasse em conta todo o histórico e contexto em que aquela criança vive? E parando para pensar, será que o certo seria vive ou sobrevive? Não sei dizer ao certo. Mas até o momento atual esse atendimento “passeia” pela minha memória. E esse acontecimento só reforça o que sempre ouvi desde os primeiros momentos na graduação e até mesmo no início do estágio, é importante compreender o ambiente em que o paciente está inserido, como são as relações familiares e sociais que ele faz parte, condições financeiras (vivemos em um país em que isso pesa bastante em relação ao tipo de alimentação, educação e vida que o sujeito leva), se é uma criança que é estimulada ou não, se a escola que estuda possui recursos para auxiliá-lo e o principal, como a família lida com as dificuldades relacionadas à criança.

Além de estar tendo acesso ao mundo da avaliação neuropsicológica infantil, também estou inserida no campo das avaliações organizacionais (confesso que tem sido minha parte preferida). É algo que percebo que vem me auxiliando na minha timidez, pois tenho dificuldades em falar bem ou até mesmo explicar algo com alguém desconhecido ou lugares que possuem muitas pessoas.

O motivo pelo qual escolhi falar sobre minha experiência enquanto estagiária? Bom, está sendo algo delicioso e ao mesmo tempo desafiador de vivenciar. Percebo mudanças em alguns pontos de vista, estou trabalhando a capacidade de observação, tentando melhorar a oratória e o principal, estar ao lado de profissionais humanos, qualificados e que acreditam na minha capacidade de aprender e evoluir, trazendo até mesmo mudanças na forma como eu costumo me ver.

 

REFERÊNCIAS

MÄDER, Maria Joana. Avaliação neuropsicológica: aspectos históricos e situação atual. Psicologia: ciência e profissão, v. 16, p. 12-18, 1996. Disponível em:< https://doi.org/10.1590/S1414-98931996000300003> Acesso em: 19 abr. 2023.

NAVATTA, Anna Carolina Rufino et al. Triagem diagnóstica no processo de avaliação neuropsicológica interdisciplinar. Psicologia: Reflexão e Crítica, v. 22, p. 430-438, 2009. Disponível :< https://doi.org/10.1590/S0102-79722009000300014> Acesso em: 21 abr. 2023