Eu, Clarice Lispector, o cachorro e o mendigo… um grande encontro de almas…
Eu preciso escrever sobre isso…
De tanto me chamarem de “estranha e louquinha”, contemplava-me diferente por “sentir, ver e ouvir” coisas que nem todo mundo percebia.
Até que um dia, li um conto “Felicidade Clandestina”, de Clarice Lispector e… DESCANSEI… Afinal, alguém no mundo sentia e transcrevia a realidade que eu acredito existir e viver.
Quem me conhece sabe o quanto EU AMO CLARICE LISPECTOR… Então, imaginem a euforia quando eu soube que havia uma estátua em sua homenagem no Leme-RJ… Eu precisava “visitá-la”.
E aquela tarde estava fria como os corações decepcionados… Mas o céu estava tão azul, o mar tão agitadamente compulsivo que, assim como os corações seduzidos e aventureiros, fui aquecida por tanto amor repentino que esqueci das decepções da vida. Eu era só POESIA!
Caminhava pelo calçadão no Rio como uma adolescente ansiosa e tímida que vai para o seu primeiro encontro amoroso.
Foi quando, quase sem querer, olhei para a rua…
E uma cena me fez esquecer da beleza daquela tarde de agosto…
Ele estava jogado na sarjeta. Tinha uns 18 anos… sem camisa…negro… um pé calçado, outro descalço… deitado em forma de “C”… nesse frequente e incômodo abcedário da EXCLUSÃO.
Pensei “será que está morto?… Por que ninguém se importa com ele? É um ser humano!”
Intencionei atravessar a rua para vê-lo mais de perto. Ajudar… Porém, as pessoas continuavam caminhando tranquilamente pelo calçadão. O casal fazia poses amorosas. O frentista abastecia calmamente um carro conversível…
Um homem musculoso, que levava um imenso cachorro, somente, desviou do mendigo…
E eu ali… estática… pensando: “É um ser humano!”
Foi quando meus olhos cruzaram com os olhos do cachorro que era conduzido pelo homem musculoso. Era como se o “animal” compreendesse minha angústia… Então, enquanto esperava com seu dono para atravessar a avenida, o cão olhava com piedade para o mendigo e para mim. A mesma piedade que me causou tanta comoção. Mas de que vale ter piedade sem ação? Nem eu nem o cachorro soubemos responder…
O cão seguiu seu caminho sem deixar de olhar, vez ou outra, para trás.
Expliquei isso para Clarice e para seu cão que ouvia atentamente meu relato como que pedindo absolvição.
E Clarice Lispector? Respondeu-me, depois de um caloroso abraço de despedida de velhas amigas “Há de se desculpar o cachorro, que pertencia ao homem musculoso, porque ele estava PRESO a uma coleira. E você, Elienai, qual coleira lhe acorrentava?”
Sorri para não chorar…
Amo Clarice Lispector porque ela lê, interpreta e descreve os labirintos enigmáticos de nossa existência.