Tijolo por tijolo: como o racismo me enterrou viva

Ano passado e esse ano tem sido de extremas desconstruções para mim. Começou quando eu decidi entrar em transição capilar e não imaginei o que estava por vir. Recebi e ainda recebo críticas de familiares do tipo: “Nossa, por que você fez isso com seu cabelo?”, “Ele estava melhor liso”, “Tá na moda, né?!”, “Tá tão bagunçado. Liso ficava mais arrumado”. Uma pessoa que já tinha problemas de autoestima ouvir esse tipo de coisa não ajuda em nada no emocional e na segurança.

Eu tenho tendência depressiva, tendência ao isolamento e nessa época, foi o que mais fiz. Não saia muito de casa. E quando saía, molhava o cabelo pra ele ficar mais baixo e não ter que ficar ouvindo comentários que sabia que iam me fazer mal. Diminui a interação com minha família e tinha contato com poucos amigos. Nesse período, ainda estava de luto por causa da minha avó que havia falecido e buscava contato com minha outra avó que mora na Itália. Ela também é negra e tenho muito carinho por ela.

Minha mãe não gosta que eu tenha contato com essa minha avó por diversos motivos e usava meu cabelo para me atacar quando ficava com raiva por eu não ter feito algo em casa. Ela dizia que meu cabelo era duro, bagunçado e vários outros comentários que me atingiam de uma forma que me faziam questionar se ela realmente gostava de mim do jeito que eu era. Descobri mais tarde que minha mãe era racista e que eu fui criada a partir de padrões que já não me encaixava mais.

Nessa mesma época, eu estava começando a consumir mais conteúdo de pessoas negras, seguindo pessoas que se pareciam mais comigo nas redes sociais, entendendo mais sobre o racismo, até que decidi que o tema do meu TCC seria sobre racismo. O problema era, qual professor vai me representar, vai me orientar? Todos os meus amigos já haviam escolhido seus orientadores, tinham uma conexão com eles e eu achava isso lindo. Queria isso para mim também. E foi aí que reparei que não havia ninguém para me representar na faculdade. Que não havia um único professor ou professora negros.

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Depois disso, foi só por água abaixo. Não lembrava de ter estudado um único teórico negro durante toda a faculdade. Esses fatos juntaram com ataques racistas vindos da minha mãe. Um “relacionamento” fracassado com um cara de outro estado que não queria me assumir. Violência policial passando na TV. A angústia de estar indo para um último ano de faculdade e começar a perceber o quanto eu vivia numa realidade ilusória. Eu sabia sim que o racismo existia, mas simplesmente escolhia não vê-lo. Não enxergá-lo. E esse fato doeu tanto, mais tanto que comecei a ter ideação suicida. Algo que já era comum no meu histórico, mas dessa vez veio com a força de mil sóis.

Falava dessas coisas para meu melhor amigo e ele ficava preocupado, tentava me ajudar, perguntava se eu precisava mesmo ser representada por alguém. Só que essas falas me deixavam ainda mais pra baixo. Ele não entendia o que eu estava passando. Ele é branco. Não tem como entender. E o pior de tudo é que não consigo explicar. Não queria. Não dava mais pra mim. Uma noite eu estava sozinha em casa e já havia planejado tudo o que iria fazer. Como ia tirar minha vida. Até que resolvi falar com meu amigo. Ele, obviamente ficou muito preocupado e ficou horas no telefone comigo. Me convenceu a procurar uma psicóloga, já que eu estava trabalhando e podia pagar por uma. Encontrei uma profissional que trabalhava com o antirracismo, dei meu relato e a aliança terapêutica foi linda. Uma das primeiras coisas que me lembro dela me dizer foi que eu ia sofrer muito. Mas acredito que se ela não estivesse comigo durante esse processo de descoberta de mim mesma, não sei se ainda estaria por aqui. Não tenho palavras pra descrever o quanto ela me ajudou.

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Em uma sessão, comecei a perguntar pra mim mesma o por que que eu queria que minha mãe me aceitasse tanto. Por que eu sentia essa necessidade. Minha psicóloga respondeu: Porque ela é sua mãe. Isso me deixou bem abalada. Tive uma conversa com minha mãe depois disso e como qualquer pessoa comum, ela não entendeu o motivo de eu estar chateada com ela e ainda ficou ofendida quando disse que ela dirigia comentários racistas para mim. Depois de um tempo, ela foi entendendo o que eu queria dizer. Viu também os protestos e ficou extremamente sensibilizada. Foi quando ela me chamou pra conversar sobre isso. Que não fazia ideia da dimensão do sofrimento que o racismo causa nas pessoas negras. Hoje, ela ainda fala alguns comentários do tipo, mas já está mais consciente. Eu fico feliz por isso, por essa consciência, por mais que ainda seja mínima.

Na faculdade a história já é outra. Pouquíssimos professores negros. Quase nenhuma instrução sobre o racismo ser fator de sofrimento mental para pessoas negras. Me sinto atingida como estudante e como mulher negra. Vou ter que buscar sozinha como ajudar essas pessoas. Espero que futuramente, contratem professores e professoras que sejam negros para que os alunos como eu não se sintam perdidos como me senti no final do curso. É uma sensação de não pertencimento. Quando você percebe que não tem ninguém no ambiente que seja parecido com você. Exclusão total. Fico feliz por ter tido uma rede de apoio forte o bastante para me manter sã e uma ótima psicóloga do meu lado. Me desconstruí e me construí de novo, “Tijolo por tijolo”, e ainda estou em constante aprendizado das situações que vivi durante toda a minha vida e que hoje, já consigo perceber padrões que não me cabem mais.