Baruch Espinosa e o início da era secular

“Não é por julgarmos uma coisa boa que nos esforçamos por ela, que a queremos, que a apetecemos, que a desejamos, mas, ao contrário, é por nos esforçarmos por ela, por querê-la, por apetecê-la, por desejá-la, que a julgamos boa”. Baruch Espinosa

Nascido nos Países Baixos em 24 de novembro de 1632 (em Amsterdam), Baruch Espinosa, filho de família judia, foi um gênio/filósofo que fez o primeiro grande ataque às relações entre a Igreja e o Estado. Morreu com apenas 44 anos, em 1677, em Haia. Nesta época a Europa vivia uma forte transição entre o medievo e o Iluminismo, e a Holanda em particular estava sob o jugo da Igreja Reformada Neerlandesa (hoje fundida com outras duas denominações cristãs locais).

Espinosa é conhecido por usar o método racionalista cartesiano em suas proposições, e sua obra mais discutida é o “Tratado Teológico-Político”, publicado anonimamente em 1670, à época chamado de “livro forjado no inferno” pelos defensores da teologia dominante.

A obra mostra uma perspectiva do sagrado (de Deus) e das relações de poder (Estado) completamente diferentes das vigentes naquele período histórico.

Sobre a questão de Deus, Espinosa lança o conceito panteísta-emanatista, onde a problemática questão do espírito e da matéria é apresentada como dois atributos de uma única substância (divina). A união se daria, portanto, através de um paralelismo psicofísico (espécie de pampsiquismo que lembra em muito o atual modelo de ecopsicologia).

Esta visão de “animação universal” é resultante da combinação das influências, em Espinosa, dos neoplatônicos e das teorias de Descartes.

Deus estaria fora do tempo, é eterno e infinito, e ao homem compete apenas conhecer dois de Seus atributos, a cogitatio (matéria) e a extensio (espírito). De Deus, portanto, surgem todas as coisas (inclusive o homem, claro). As extensões não podem ser consideradas separadas da natura naturans (Deus que emana) mas, antes, como as modificações de Seus atributos.

Em Espinosa a “necessidade” é apresentada como uma “lei suprema da realidade única e universal”, ou seja, “Deus não somente é racionalmente necessitado na sua vida interior, mas se manifesta necessariamente no mundo, em que, por sua vez, tudo é necessitado, a matéria e o espírito, o intelecto e a vontade”.

O homem é visto como um conjunto de modos derivados. No entanto, apesar de Espinosa negar uma substância individual no homem, o atributo pensamento surge da “substância única”. “E, igualmente o corpo nada mais é que um complexo de modos derivados, elementares, do atributo extensão da mesma substância. O homem, alma e corpo, é resolvido num complexo de fenômenos psicofísicos”. A negação da existência da alma ao estilo cristão não fecha a possibilidade de haver o reconhecimento de várias atividades psíquicas nesse “agregado” onde se estrutura o fenômeno.

Especificamente sobre a questão da política e da religião, Espinosa considera “o estado e a igreja como meios irracionais para o advento da racionalidade”. Ou seja, ações que dependem do temor (igreja) ou da esperança (Estado) ainda estão no âmbito do temporal e, em suma, representam paixões irracionais. Embora ele considere o Estado como aquele que tutela o “pacto social”, o homem ainda é visto pelo filósofo holandês como alguém inclinado a violar os acordos. Falta-lhes, portanto, “o arrimo da força para sustentar-se”. “Então os componentes devem confiar a um poder central a força de que dispõem, dando-lhe a incumbência e o modo de proteger os direitos de cada um. Só então o estado é verdadeiramente constituído”. No entanto o Estado não pode ser considerado “o dominador supremo”, já que não se configura como o fim supremo do homem. “Seu fim supremo é conhecer a Deus por meio da razão e agir de conformidade, de sorte que será a razão a norma suprema da vida humana”.

Quanto à religião, Espinosa apresenta-a como a substituta da filosofia para as pessoas vulgares. Ele até chega a ver racionalidade no “conteúdo” revelado, no entanto a forma [religiosa] é “absolutamente irracional”. Ou Seja, a religião revelada representaria “sensivelmente, simbolicamente, de um modo apto para a mentalidade popular, as verdades racionais, filosóficas acerca de Deus e do homem”. Sobre os dogmas, caberia apenas imprimir-lhes dois aspectos: “indução à submissão a Deus e ao amor ao próximo”. Isso resulta na “unificação final de tudo e de todos em Deus”.

A visão de Espinosa sobre a Moral também merece destaque, sobretudo em três volumes de sua coleção de escritos denominada “Ethica”, onde o filósofo esclarece sobre “a escravidão do homem sujeito às paixões”, cuja dependência decorre do erro “do conhecimento sensível, pelo que o homem considera as coisas finitas como absolutas e, logo, em choque entre si e com ele”. Para libertar-se das paixões há de se ter o conhecimento racional, um tipo de conhecimento verdadeiro e que não depende do livre-arbítrio, “e sim da natureza particular de que somos dotados”.

Voltando à questão de Deus e ao panteísmo expresso na obra espinosana, chama atenção a “denúncia” feita pelo filósofo sobre a hipocrisia religiosa. Para tanto, exorta seus leitores a pararem de ficar rezando e “batendo no peito”, afinal o que Deus quer “que faças é que saias pelo mundo e desfrutes de tua vida. Eu quero que gozes, cantes, te divirtas e que desfrutes de tudo o que Eu fiz para ti”. Ou seja, os “templos lúgubres, obscuros e frios” não são, em Espinoza, o melhor lugar para se acessar o Sagrado, por mais que o homem acredite ser essa a Sua casa.

“Minha casa está nas montanhas, nos bosques, nos rios, nos lagos, nas praias. Aí é onde Eu vivo e aí expresso meu amor por ti”.

Sobre a persistente “mania” humana de culpar os outros pelas suas agruras, e inclusive culpar a Deus, Espinosa alerta que não é do Sagrado que saem as convenções morais referentes a “pecado”, “impureza da sexualidade” e tantas outras coisas. Pois o sexo, por exemplo, é um presente dado por Deus, uma expansão do divino “com o qual podes expressar teu amor, teu êxtase, tua alegria. Assim, não me culpes por tudo o que te fizeram crer”. O conselho, então, para se conhecer a Deus não estaria nas Escrituras, pois “Se não podes me ler num amanhecer, numa paisagem, no olhar de teus amigos, nos olhos de teu filhinho… Não me encontrarás em nenhum livro!”.

Especificamente sobre o Medo, o filósofo de Amsterdam critica o fato de o homem viver o tempo inteiro pedindo pelo perdão de Deus. Já que o Deus espinosano está em tudo, Ele também estaria nas paixões, limitações, sentimentos e necessidades humanas. Portanto, seria uma incoerência envergonhar-se destas tendências. Afinal, “Como posso te culpar se respondes a algo que eu pus em ti? Como posso te castigar por seres como és, se Eu sou quem te fez? Crês que eu poderia criar um lugar para queimar a todos meus filhos que não se comportem bem, pelo resto da eternidade? Que tipo de Deus pode fazer isso?”.

Deus não oferece a Vida para que esta se transforme numa prova, numa expiação em que é necessário subir degraus para se atingir um paraíso. “Esta vida é o único que há aqui e agora, e o único que precisas. Eu te fiz absolutamente livre. Não há prêmios nem castigos. Não há pecados nem virtudes”. Só há vida e completude em abundância. Para tanto, é necessário de “desamarrar” das “cordas morais” impostas pelas tradições denunciadas por Espinosa.

E o holandês vai mais fundo, ao dizer que não se deve acreditar em Deus, pois crer é supor, imaginar. Antes disso, seria melhor sentir a Deus. E sentir em todas as coisas, mesmo “quando beijas tua amada, quando agasalhas tua filhinha, quando acaricias teu cachorro, quando tomas banho no mar”. Não por menos a Holanda é, hoje, um dos países mais secularizados do mundo, e o que emite uma das mais fortes mensagens em defesa das liberdades individuais, mesmo o país ainda sendo predominantemente cristão.

Em Haia, cidade em que Espinoza morreu e foi sepultado, há um monumento em sua homenagem que se tornou ponto de passagem para muitos estudiosos de várias partes do mundo (um verdadeiro “santuário secular”). No local, há uma frase (inscrita em 1882) que chama atenção por destacar a grandeza do filósofo, que só foi reconhecido muitos anos após a sua morte:

“Maldição sobre o passante que insultar essa suave cabeça pensativa. Será punido como todas as almas vulgares são punidas — pela sua própria vulgaridade e pela incapacidade de conceber o que é divino. Este homem, do seu pedestal de granito, apontará a todos o caminho da bem-aventurança por ele encontrado; e por todos os tempos o homem culto que por aqui passar dirá em seu coração: Foi quem teve a mais profunda visão de Deus”1

Para finalizar, há uma extraordinária análise de Espinosa feita por um de seus maiores biógrafos, o americano Steven Nadler, que destaca a defesa do holandês à liberdade humana, pois todo indivíduo tem direito a acreditar no que quiser. Para tanto, teria que ser necessário a saída das autoridades eclesiásticas das decisões do Estado, pois ingerências religiosas “produziriam ameaças à prosperidade das nações, bem como ao progresso da filosofia e da ciência”.

Essa eloquente defesa do livre-pensar, de filosofar sem sofrer a influência/interferência de autoridades eclesiásticas e/ou de autoridades do Estado é uma das máximas mais lembradas quando os sistemas democráticos vigentes (sobretudo nos países ocidentais) são ameaçados por arroubos dogmáticos, como os ocorridos recentemente no Brasil, com a ascensão dos pastores/políticos Silas Malafaia, João Campos, Jair Bolsonaro e Marco Feliciano. Não há, portanto, um melhor antídoto para essa onda sombria de conservadorismo do que a leitura constante das obras de Espinosa. E que as jovens gerações possam obter este hábito, assim como já ocorre no país de origem do filósofo.

 

Nota:

1– Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Baruch_Espinoza – Acesso em 04/01/2014

Referências:

NADLER, Steven. Um livro forjado no inferno: o tratado escandaloso de Espinosa e o nascimento da era secular; tradução de Alexandre Morales. – São Paulo: Três Estrelas, 2013.

DOMINGUES, Atilano. Biografias de Spinoza – Madrid: Editora Alianza, 2013 [livro disponível em formato digital].

Biografia de Baruch Spinoza – Info Escola: navegando e aprendendo. Disponível emhttp://www.infoescola.com/biografias/baruch-spinoza/ – Acesso em 04/01/2014.

Referências:

NADLER, Steven. Um livro forjado no inferno: o tratado escandaloso de Espinosa e o nascimento da era secular; tradução de Alexandre Morales. – São Paulo: Três Estrelas, 2013.

DOMINGUES, Atilano. Biografias de Spinoza – Madrid: Editora Alianza, 2013 [livro disponível em formato digital].

Biografia de Baruch Spinoza – Info Escola: navegando e aprendendo. Disponível emhttp://www.infoescola.com/biografias/baruch-spinoza/ – Acesso em 04/01/2014

Psicólogo. Mestre em Comunicação e Sociedade (UFT). Pós-graduado em Docência Universitária, Comunicação e Novas Tecnologias (UNITINS) e em Psicologia Analítica (UNYLEYA-DF). Filósofo, pela Universidade Católica de Brasília. Bacharel em Comunicação Social (CEULP/ULBRA), com enfoque em Jornalismo Cultural; é editor do jornal e site O GIRASSOL, Coordenador Editorial do Portal (En)Cena.