Carlos Drummond de Andrade: o mito do homem que se fez poesia

Toquem as trombetas, estendam o tapete vermelho, alinhem a mente e o coração para a passagem do “Poeta Maior” da literatura brasileira…

Sempre achei que deveria existir o verbo DRUMMONDIAR como sinônimo de criar, sonhar e amar. Seria uma honra para o  vocabulário da arte poética ser condecorado com essa palavra de rara beleza e significação mergulhada no infinito.

Esse notável poeta da literatura brasileira não nasceu, somente, mas foi profetizado. Parodiando a citação bíblica “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei minha igreja” (MT, 16, 18), o Criador pressagiou “Sobre esta Pedra edificarei a poesia”. Assim, Carlos Drummond de Andrade nasceu no dia 31 de outubro de 1902, em Itabira, cuja origem no tupi, sugestivamente, significa Pedra (Ita) que brilha (bira).

A profecia se cumpre quando Drummond, o nono dos catorze filhos dos primos Carlos de Paula Andrade e Julieta Augusta Drummond, que nasceu na Pedra que brilha (Itabira), consegue com maestria transformar “ pedra” em poesia.

No meio do caminho

No meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
Tinha uma pedra
No meio do caminho tinha uma pedra

Nunca me esquecerei deste acontecimento
Na vida de minhas retinas tão fatigadas
Nunca me esquecerei que no meio do caminho

Tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra.

Transformou suas pedras do caminho em inspiração reflexiva que mobilizou todos os nossos sentidos na tentativa de compreender as paradoxais intempéries da existência humana. Drummond indaga a inconsistência imensurável da sociedade que zomba do humano e se aproxima do escárnio pela existência dos plurais Josés deste mundo de “Meu Deus”

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José

E agora, José?
A festa acabou,
A luz apagou,
O povo sumiu,
A noite esfriou,
E agora José?

Você que é sem nome,
Que zomba dos outros,
Você que faz versos,
Que ama protesta,
E agora, José?

Esse mergulhar nas reflexões da alma do mundo desperta um Drummond inadaptado, um ser GAUCHE, como ele mesmo se intitulava. Tamanha era sua inquietude que, da sua subjetividade conflituosa, emerge um “eu-retorcido”

Poema de Sete Faces

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

 

Quando Drummond proclama a liberdade das palavras poéticas para proferir “Meu Deus, por que me abandonaste se sabias que eu não era Deus/se sabias que eu era fraco.”, pressente-se o indivíduo no “choque social” que representa um homem impotente, talvez incapaz de suportar as dores e mazelas da humanidade, mas  poeta competente na investigação da realidade humana. Contempla-se, nessa fase, um poeta inconformado com o estilhaçamento da humanidade, diante do vazio e do nada.

 

Os ombros suportam o mundo

Chega um tempo em que não se diz mais meu Deus
Tempo de absoluta depuração
Tempo em que não se diz mais meu amo
Porque o amo resulta inútil

E os olhos não choram
E as mãos tecem apenas o rude trabalho
E o coração está seco

Nesse momento em que a esperança se comporta como uma pipa fugitiva ao sabor do vento ao se encantar com a infinitude do céu azul, Drummond não permite o desfalecimento pelo porvir. Então, o poeta domina sua pipa multicor que baila nos zéfiros das recordações mais sublimes, guarda-a na sua mala de sentimentalismos, dirige-se à estação e adentra no bonde do escapismo que o leva, em pensamentos, à Itabira- MG, cidade onde nasceu e viveu sua doce infância. Itabira das imensuráveis reminiscências de outrora, tão presente nas lembranças dos primeiros anos de sua vida, mas tão diferente na realidade em que foi transformada. Por isso, para Drummond, Itabira sempre será abrigo do passado.

Confidência do Itabirano

Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente, nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso : de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calcadas
Oitenta por cento de ferro as almas.
E esse alheamento do que na vida é
Porosidade e comunicação.

A vontade de amar, que me paraliisa o trabalho,
Vem de Itabira, de suas noites brancas, sem
Mulheres e sem horizontes.

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E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
É doce herança Itabirana.

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Enfatizar esse verso divino de Drummond consiste obrigatoriedade “A vontade de amar, que me paralisa o trabalho”. Amar ou Drummondiar? Eis  a questão! Referir-se a Drummond faz divagar nossa alma no mar de AMAR….Se o AMOR para o poeta paralisou o trabalho, em nós, seus súditos apaixonados, o AMOR paralisa e mobiliza nossas existências.

E em se tratando de AMOR, Drummond, como caminheiro costumaz  e extremo conhecedor, ensina-nos o caminho das pedras que nos conduz à constatação de que caminhar na estrada da vida sem conhecer o Amor não é viver. Se assim for, seremos somente corpo, jamais alma. Então, o poeta nos aconselha.

Conselhos de um velho apaixonado

Quando encontrar alguém  e esse alguém fizer
Seu coração parar de funcionar por alguns segundos,
Preste atenção: pode ser a pessoa
mais importante da sua vida

Se os olhares se cruzarem e, neste momento,
Houver o mesmo brilho intenso entre eles,
Fique alerta: pode ser a pessoa que você está
Esperando desde o dia em que nasceu.

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Muitas pessoas apaixonam-se muitas vezes
Na vida poucas amam ou encontram um amor verdadeiro.

Às vezes encontram e, por não prestarem atenção
Nesses sinais, deixam o amor passar,
Sem deixá-lo acontecer verdadeiramente.

É o livre-arbítrio. Por isso, preste atenção nos sinais.
Não deixe que as loucuras do dia-a-dia o deixem
Cego para a melhor coisa da vida o AMOR!

O AMOR, com sua imensurável presença e necessidade, manifesta-se de forma caleidoscópica na obra Drummondiana. Logo, Importante na vida? Somente AMAR! AMAR! DRUMMONDIAR!

Carlos Drummond de Andrade formou-se em Farmácia. Contudo, verdadeiramente, foi o ALQUIMISTA DAS PALAVRAS. Parodiando Olavo Bilac, Drummond “teimou, limou, sofreu, suou”, ao lapidar seus versos. E fez poesias como joias raras que nos foram dadas gratuitamente para resplandecer e vivificar nossas existências. Por isso, ratifico meu desejo de Drummond ser sinônimo de CRIAR, AMAR, SONHAR e ENCANTAR.

Drummond, tu conquistaste morada eterna em nossos corações. Tuas  poesias possuem a chave que abre todas as portas dos nossos sentimentos. Cada leitor que adentra no Reino das tuas palavras, guardar-te-á para sempre na memória, como tu mesmo poetizaste

 

Memória

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão

Mas as coisas findas
muito mais que lindas,
essas ficarão.

Certa vez, perguntaram a Drummond se ele gostava de poesia. Sua reposta foi imediata “Gosto de gente, bichos, plantas, lugares, chocolate, vinho, papos amenos, amizade, amor. Acho que a poesia está contida nisso tudo.” Se a poesia está nisso tudo, tu estás em todos os lugares também, meu digníssimo poeta. Finalizo afirmando que na sua fala, decifra-se nosso encantamento. Não és unidade. Tu, Drummond, és comunhão de toda a arte da poesia.

Mestre em Letras. Professora do IFPA. Amante das artes e da vida.