Coringa e o arquétipo do Louco

“Era através de suas palavras que se reconhecia a loucura do louco; elas eram o lugar onde se exercia a separação; mas não eram nunca recolhidas nem escutadas.” (Trecho do discurso de Michel Foucault na sua aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970.)

(Coringa – personagem de histórias em quadrinhos da DC Comics – Arte: Alex Horley)

Joker (Piadista, na tradução), ou Coringa, é um dos principais e mais famosos vilões da HQ’s do Batman. O personagem sempre fez sucesso entre os leitores de HQ, mas caiu mesmo no gosto popular com a interpretação de Heath Ledger em The Dark Knight (2008). O longa dirigido por  Christopher Nolan, nos apresenta uma leitura mais realista, psicótica e cruel do personagem. É tão real, que quase podemos nos ver no personagem, e talvez seja este o diferencial que atraiu a atenção do público nessa franquia. Por meio da projeção de nosso eu na personalidade doentia do palhaço, trazemos à tona características particulares até então negligenciadas. A conscientização dessas características tão nossas, ou que almejamos serem nossas, nos permite perceber aspectos desconhecidos de nossa própria personalidade, auxiliando no autoconhecimento.

Em realidade, a projeção acontece de forma tão contínua e inconsciente que costumamos não dar atenção de que ela está acontecendo. Não obstante, tais projeções são instrumentos úteis à conquista do autoconhecimento. Contemplando as imagens que atiramos na realidade exterior, como reflexos de espelho da realidade interior, chegamos a conhecer-nos. (NICHOLS, 1997, p.20).

Não há consenso na história, e nem no surgimento do personagem do Coringa. Sua primeira aparição nos quadrinhos foi na revista Batman #1 de 1940. O personagem teria sido criado por Bill Finger (1914 – 1974) co-criador e roteirista do Batman. Finger teria se  inspirado em uma foto de Conrad Veidt no filme “The Man Who Laughs” (1928).

(Conrad Veidt em The Man Who Laughs, 1928).

O passado mais aceito, e popularmente mais citado vem da HQ A Piada Mortal editada por DC Comics em 1988. A edição especial traz um Coringa assombrado pelo seu passado, e disposto a provar a qualquer custo, que a loucura está ao alcance de todos os homens. Nas falas do próprio personagem: “A loucura é a saída de emergência” de nossa sanidade.

Nessa edição, nos vários flashbacks o Coringa aparece como o saqueador Capa Vermelha que na tentativa de dar uma vida melhor à esposa grávida, planeja assaltar a fábrica de cartas de baralho onde trabalhou. O vilão seria originalmente um engenheiro em uma fábrica de produtos químicos que, ao perder o emprego, tenta a vida, sem sucesso, como comediante. Enquanto planeja o assalto, ele é informado pela policia que sua esposa gravida morre em um acidente doméstico. Desolado, o vilão prossegue com a ideia do assalto, mas ainda sem muita experiência, acaba sendo flagrado no ato e, num rápido confronto com o Batman, cai no tonel de produtos químicos. Todos acreditam que Capa Vermelha teria morrido no incidente, mas ele reaparece saindo da água, já com a pele branca e cabelo verde, sendo o Coringa.

Contudo, essa teoria é desacreditada pelo próprio palhaço, quem em uma das falas afirma não ter certeza quanto ao seu passado, nem de como teria se tornado o coringa: “Se eu vou ter um passado, prefiro que seja de múltiplas escolhas.” (Coringa – A Piada Mortal – DC Comics, 1988, p 40).

A história incerta do Palhaço se confunde com a do arquétipo do Louco do Tarô de Marselha. Segundo Sallie Nichols, O Louco (em nossos tempos a carta do Coringa, outro símbolo utilizado pelo vilão tanto nas HQ’s quanto nos cinemas) é um andarilho, enérgico, ambíguo e imortal. Segundo o autor, o Coringa seria o mais poderoso de todos os Trunfos do Tarô. “Por não ter número fixo, está livre para viajar à vontade, perturbando, não raro, a ordem estabelecida com as suas travessuras” (NICHOLS, 1997, p.35).

Nos quadrinhos o Coringa se diferencia dos demais vilões por ser o único a não querer a morte do Batman, mesmo quando tem a oportunidade de fazê-lo. Em seu discurso, ele parece ter um desejo inquietante de mostrar ao herói que ambos necessitam um do outro, em uma relação antagônica e de dependência mútua. Se considerarmos que o Coringa fora capaz de atos brutais como molestar e deixar paralítica a Batgirl Barbara Gordon, matar sem misericórdia tanto o Robin Jason Todd quanto a esposa do Comissário Gordon, pode-se concluir que a sobrevivência do homem morcego tem um significado maior para o vilão.

[…] o Louco se acha em tão estreito contato com o seu lado instintivo que não precisa olhar para onde vai no sentido literal: sua natureza animal guia-lhe os passos. Em algumas cartas do Taro o Louco é retratado como se tivesse os olhos vendados, o que lhe enfatiza ainda mais a capacidade de agir antes por introvisão do que pela visão, utilizando a sabedoria intuitiva em lugar da lógica convencional (NICHOLS, 1997, p.36).

Em A Piada Mortal, Coringa está determinado a mostrar ao herói que há um limite tênue entre sanidade e loucura, e que em muitos momentos a insanidade é o melhor conforto, um abrigo encontrado pelo homem. Batman parece ser um dos poucos que sempre entendem o real propósito de Coringa por trás de seus feitos lunáticos. Apesar da impetuosidade e do perfil sádico, psicótico, perverso e homicida, e de seus propósitos duvidosos, o vilão esconde uma inteligência superior, com conhecimento preciso em química, genética e engenharia; confundindo a mente daqueles que o desacreditam por sua aparência demente e improvável.

(A Piada Mortal – DC Comics, 1988, p 36).

Desde a alta Idade Média, o louco é aquele cujo discurso não pode circular com o dos outros: pode ocorrer que sua palavra seja considerada nula e não seja acolhida, não tendo verdade nem importância, não podendo testemunhar na justiça, não podendo autenticar um ato ou um contrato, não podendo nem mesmo, no sacrifício da missa, permitir a transubstanciação e fazer do pão um corpo; pode ocorrer também, em contrapartida, que se lhe atribua por oposição a todas as outras, estranhos poderes, o de dizer uma verdade escondida, o de pronunciar o futuro, o de enxergar com toda ingenuidade aquilo que a sabedoria dos outros não pode perceber (FOUCAULT, 1970, p.11).

Nos quadrinhos o personagem chama a atenção pela caraterização: pele branca, cabelos verdes, boca vermelha, terno roxo, sempre ostentado um sorriso sádico.

(Representações da Carta do Louco (Coringa) em baralhos antigos, Fonte: NICHOLS, 1997).

A roupa colorida do Louco é o símbolo por excelência da união de muitas espécies de opostos. Suas cores variegadas e o seu desenho fortuito parecem indicar um espírito discordante: no entanto, dentro daquele caos aparente, discerne-se um modelo. Dessa maneira, o Louco se apresenta como ponte entre o mundo caótico do inconsciente e o mundo ordenado da consciência. (NICHOLS, 1997, p.36).

O sorriso constante e cristalizado do vilão se tornou uma marca, e o que deveria ser cômico e gracioso, passa a ser, nas mãos do Coringa, aterrorizador. Esse sorriso constante, mesmo diante da derrota em suas batalhas com Batman, às vezes, parece incomodar o herói. Aliás, perverter a real significação das coisas parece ser a principal habilidade do palhaço, que o faz, sempre com uma pitada de loucura. Seja nas suas vestes de palhaço, com senso de humor doentio, ou nas suas armas: uma luva com dispositivo elétrico que dá um choque letal; uma flor que jorra ácido; tortas de cianureto; e o gás do riso, que força a vítima a rir até a morte.

É preciso dar destaque ainda para a habilidade de adaptação do palhaço que parece nunca morrer, mesmo depois de ser baleado, cair de prédios, etc. O vilão sempre reaparece depois de ser dado como morto em várias ocasiões.

(à esquerda Jack Nicholson em Batman, 1989 e  Heath Ledger em The Dark Knight, 2008 à direita).

No cinema, os diretores sempre apostaram no sadismo cômico para a criação e representação do personagem que, sem origem definida, acaba por tomar rumos diferentes em cada roteiro. Em 1989, na versão de Tim Burton,  Batman  traz uma identidade nova ao Coringa (interpretado por Jack Nicholson) que desagrada seus fãs, fazendo do filme um fracasso de bilheteria. Nesse filme além de um colaborador da máfia, o vilão teria ainda sido o responsável pela morte dos pais de Bruce Wayne, teoria que contraria todas as HQ’s.

Na versão mais recente do vilão, interpretada por Heath Ledger em The Dark Knight, o personagem traz algumas características novas, como a pele de cor natural, apenas com maquiagem branca, sorriso feito por uma cicatriz, e cabelo comprido. Nessa versão também não há consenso sobre a origem do Coringa, que conta duas teorias diferentes para sua história. Na primeira, as cicatrizes teriam sido feitas pelo seu pai que, bêbado e drogado, cortara sua boca e bochechas para que ele sorrisse sempre, fazendo menção à famosa frase que caracterizou o personagem: “Why so serious?”. Na segunda história, contada à personagem Rachel Dawes, o palhaço diz ter ele mesmo produzido as cicatrizes ao tentar consolar sua mulher, que teria sido desfigurada por agiotas, mas a esposa não teria ficado satisfeita com o sacrifício do marido, desfazendo o casamento.

Em ambas as histórias não há consenso, e a sensação que paira é a de que em em todas o vilão apenas se propõe a aterrorizar suas vitimas, e não há compromisso com a verdade.

Na versão de Christopher Nolan, o Coringa (que segundo o ator Heath Ledger fora inspirado em Sid Vicious de “A Clockwork Orange”) parece mais cruel, dramático e agressivo do que nunca, e se apóia no estereotipo da loucura para justificar seu comportamento perverso. Sua sagacidade se confirma o criar em  Harvey Dent (o promotor da cidade) o vilão Duas Caras. O personagem, eloquente, parece ter bastante clareza de seu objetivo, e um compromisso em trazer a Gotham City a verdade sobre quem é o Batman, e que ambos (herói e vilão) são iguais, o único diferencial seriam seus propósitos, em uma relação de dependência mútua.

(Imagem de divulgação do filme The Dark Knight)

Segundo Seino (2011), temos na figura do Coringa a personificação do arquétipo do Embusteiro (Trickster – O Trapaceiro). Esse arquétipo pode ser tanto bom quanto mal. No caso do personagem Coringa, ele representa apenas os aspectos negativos deste arquétipo.

O arquétipo do Embusteiro ou do Louco é também encontrado na mitologia nórdica sob a figura de Loki, o deus anárquico que sempre está tramando contra os outros deuses, que também é o equivalente a Hermes da mitologia grega. Hermes é o deus grego astuto, com trânsito livre entre os mundos, portador da mensagem, está sempre pregando peças nos deuses do Olimpo. Hermes é também conhecido como Mercúrio no panteão romano, o elemento mercúrio, por sua vez, é reconhecido por sua volatilidade.

A presença e as ações do Coringa no filme desencadeiam a desordem, trazendo o terror e o caos à cena, e libera em cada um, sentimentos antagônicos e contraditórios. À medida que tais emoções afloram e se tornam conscientes permite-se uma melhor análise das potencialidades e conflitos das figuras do ego real e o ego ideal.

Nesse processo de assimilação, a consciência se amplia e se modifica. De modo paralelo, os processos inconscientes também se modificam. O que ocorre é uma verdadeira transformação da personalidade, o processo de individuação. (MAGALHÃES, 1984, p.146).

Segundo Nichols (1997),

Os Trunfos são ideais para esse propósito porque representam simbolicamente as forças instituais que operam de modo autônomo nas profundezas da psique humana e que Jung denominou arquétipos. Tais arquétipos funcionam na psique de maneira muito parecida com a que os instintos funcionam no corpo. (…) Está claro que não podemos ver essas forças arquetípicas, como, de fato, não podemos ver os instintos; mas experimentamo-las em nossos sonhos, visões e pensamentos de vigília onde aparecem como imagens (NICHOLS, 1997, p.35).

O final confuso de Batman: A Piada Mortal se dá com as gargalhadas trocadas entre o Homem Morcego e o Palhaço, após o Coringa contar a seguinte anedota:

– Tinham dois caras no hospício… Uma noite eles decidiram que não queriam mais viver lá… E resolveram escapar pra nunca mais voltar. Aí eles foram até a cobertura do lugar e viram, ao lado, o telhado de um outro prédio apontando pra lua… Apontando para a liberdade! Então um dos sujeitos saltou sem problemas para o outro telhado, mas o amigo dele se acovardou… É que ele tinha medo de cair. Aí, o primeiro cara teve uma ideia. Ele disse: – Ei! Eu estou com minha lanterna aqui. Vou acendê-la pelos vãos dos prédios e você atravessa sobre o facho de luz! Mas o outro sacudiu a cabeça e disse: – O que você acha que eu sou? Louco??? E se você apagar a luz quando eu estiver no meio do caminho?!” (A Piada Mortal – DC Comics, 1988, p. 48)

(Coringa, The Dark Knight, 2008).

A imagem arquetípica do Louco e o personagem do Coringa parecem se confundir e se completar em vários aspectos. Em Batman, a imagem do vilão se sobrepõe à do herói, provocando fascínio e admiração dos telespectadores desejando o sucesso do Coringa ao final da trama e mudando a concepção de que é certo ou errado, do que é bom e mau, de loucura e normalidade. A análise do personagem, de sua história contraditória, sem fatos concretos e de propósitos insanos, nos faz refletir sobre o que faz de nós sãos?  E mais uma vez o personagem cumpre o seu propósito, ao trazer luz às mentes obscuras, perverte o real significado das coisas.

Saiba mais:

http://super.abril.com.br/blogs/nerdices/tag/coringa/

http://super.abril.com.br/blogs/cultura/novo-batman-fecha-bem-a-historia-do-heroi/comment-page-1/

http://super.abril.com.br/blogs/cultura/tag/cavaleiro-das-trevas/

http://vidaehistoriadocoringa.blogspot.com.br/