Heleninha Rotiman no A.A: universidade e instilação de esperança dos processos grupais em Vale Tudo

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O remake de Vale Tudo de 2025 tem retomado alguns os enredos e os personagens clássicos da versão original de 1988. Mas além disso, a modernidade possibilitou com que se construísse novas linhas dramáticas que colocam problemas sociais e de saúde em evidência de um modo mais intencional que o clássico. Entre essas linhas, destaca-se o arco da Heleninha Roitman, cuja dependência de álcool passa a ocupar mais espaço na trama quando a personagem percebe repercussões de seu uso na vida de pessoas próximas em especial de seu filho Tiago, que começa a reproduzir padrões de consumo semelhantes aos dela, propositalmente, com o objetivo de comovê-la. Em meados de agosto de 2025, a novela mostrou Heleninha conversando com sua psiquiatra e analista, a Dra. Ana, recebendo a sugestão de procurar os Alcoólicos Anônimos (A.A.) e, em sequência, participando de uma reunião em que declara aquele momento como seu “dia um” de sua recuperação. 

Heleninha tem seu consumo problemático narrado desde a adolescência, a personagem diz ter começado a beber aos 16 anos e a trama enfatiza agravamentos após eventos traumáticos, como a morte do irmão gêmeo, a qual a culpa do acidente que provocou este falecimento, foi atribuída a ela. Na novela, o alcoolismo da Heleninha manifesta-se em recaídas, prejuízos relacionais, episódios de autocobrança e comportamento autodestrutivo que afetam a vida pessoal e profissional da personagem. A novela dramatiza, assim, a progressão típica de um transtorno por uso de álcool, de um modo condizente ao que é previsto na literatura, abordando o uso crescente, perda de controle e consequências sociais e emocionais (Bvsms, 2025; WHO, 2024). Essa construção dramatúrgica aproxima a audiência de indicadores clínicos reconhecidos como a preocupação com o consumo, tentativas fracassadas de reduzir, prejuízos ocupacionais e relacionais e prepara o terreno para a busca de ajuda em serviços e grupos de apoio. Para além da dramaturgia, a opção de trazer Heleninha ao A.A. foi apresentada pelos veículos como intenção de desconstruir estigmas e incentivar procura por tratamento (Gshow, 2025; CNN brasil, 2025).

O termo alcoolismo costuma corresponder a condição caracterizada por padrão problemático de consumo que provoca prejuízo clínico ou sofrimento significativo (Bvsms, 2025; Who, 2024). Três aspectos são centrais na definição clínica e nas políticas de saúde: 1) perda de controle sobre a bebida; 2) tolerância e/ou sintomas de abstinência; 3) persistência do consumo apesar de danos médicos, sociais ou legais (WHO, 2024). No caso de Heleninha, a novela evidencia elementos desses critérios de início precoce, uso reativo a perdas, recaídas e prejuízos relacionais o que justifica a indicação de grupos de apoio e de tratamento articulado com serviços de saúde.

Alcoólicos Anônimos é uma irmandade de ajuda mútua fundada nos Estados Unidos na década de 1930 por Bill W. e Dr. Bob, seu texto fundador foi publicado originalmente em 1939 e sistematizou a experiência inicial do método (AA, 1939). A proposta do A.A. é simples e coletiva ao reunir pessoas que têm desejo de parar de beber para, por meio de depoimentos, apoio recíproco, aplicação dos princípios e dos passos, manter a sobriedade “um dia de cada vez” (AA, 1939). Entre princípios centrais destacam-se o desejo de parar de beber como único requisito formal de participação, o anonimato como regra ética e membros mais antigos apoiando novatos e o ato de ajudar é parte do processo de recuperação (AA, 1939).

O conjunto conhecido como Doze Passos organiza um roteiro tanto simbólico como prático que inclui admitir impotência diante do álcool, crer em um poder maior conforme cada crença pessoal, reparação de danos e auxílio a outros alcoólicos como modo de manutenção da própria recuperação (AA, 1939). O formato das reuniões varia ente leituras, depoimentos e estudos, mas o eixo é sempre o compartilhamento entre pares. A.A. possui capilaridade global e histórica e, no Brasil, está presente desde 1947, com milhares de grupos e reuniões semanais que ocorrem presencialmente e em formato virtual (AA, 1947).

A.A. é, por excelência, uma dinâmica de grupo, pois suas práticas centrais são a escuta recíproca, o relato pessoal e o apoio mútuo. Do ponto de vista dos processos grupais, há, neste tipo de grupo, várias propriedades terapêuticas reconhecíveis, incluindo a coesão grupal com o sentimento de pertença que aumenta o comprometimento com abstinência;

Irvin Yalom, em sua teoria dos fatores terapêuticos de grupos, definiu universalidade como o reconhecimento de que outros vivenciam problemas semelhantes, o que reduz isolamento e vergonha e favorece a abertura (Yalom, 2005). A universalidade funciona quando relatos em grupo mostram ao indivíduo que não está sozinho em sua experiência, isso oferece modelos de enfrentamento. A universalidade é uma das forças que tornam o grupo um agente transformador considerando que ao ouvir histórias parecidas, membros validam sua experiência e encontram sentido compartilhado (Yalom, 2005).

Fonte: Gshow

No A.A., a universalidade está presente quando os depoimentos de quem já viveu recaídas, perda de papéis sociais e recuperação fornecem espelhos para iniciantes (AA, 1939; Yalom, 2005). Para Heleninha, ouvir relatos sobre caminhos de recuperação e identificar padrões próximos aos seus pode reduzir a vergonha, facilitar a aceitação do diagnóstico (assumir-se como dependente do álcool) e legitimar a busca por suporte. Na cena inicial, a declaração de seu “dia um” é um gesto simbólico que sinaliza essa aceitação pública e se fundamenta na experiência de universalidade oferecida pelo círculo de A.A.

Outro fator terapêutico apontado por Yalom (2005) presente na trama é a instilação de esperança. Nos grupos de A.A., há participantes em diferentes etapas do processo de recuperação, vivenciando distintos passos do programa. Observar pessoas que conseguem lidar com a abstinência do álcool gera encorajamento, pois o progresso do outro funciona como inspiração e reforça a expectativa de que também será possível avançar.

Quando uma novela de grande alcance mostra uma personagem pública indo ao A.A., há potencial de entertainment-education, isto é, a narrativa entretém e, simultaneamente, educa sobre recursos de ajuda (Singhal & Rogers, 1999). A literatura indica que exposições midiáticas bem-feitas podem reduzir estigma e, em certos contextos, aumentar a busca por serviços de saúde ou grupos de apoio desde que a representação seja responsável e não romantize soluções fáceis (Singhal & Rogers, 1999; Annenberg, s.d.). No caso de Heleninha, veículos noticiaram a cena e representantes do A.A. apontaram que a visibilidade costuma aumentar procura e gerar identificação em quem convive com o problema; pesquisas sobre mídia e saúde confirmam que retratos verossímeis aumentam empatia e ajudam a desnaturalizar julgamentos morais sobre dependência (Gshow, 2025; CNN brasil, 2025; Aa, 1947). 

A ida da Heleninha ao grupo ilustra como o A.A. opera como um processo grupal, ativando fatores como a universalidade e a instilação de esperança. Também é possível refletir em  como a representação midiática pode desencadear procura por ajuda e reduzir estigmas. 

Referências

ALCOÓLICOS ANÔNIMOS. O início e crescimento de A.A. Alcoólicos Anônimos do Brasil. 2025. Disponível em: https://www.aa.org.br/o-inicio-e-crescimento-de-a-a/The Big Book: Alcoholics Anonymous. Alcoholics Anonymous World Services. First published 1939. Disponível em: https://www.aa.org/the-big-book

ANNENBERG USC. Shifting Minds: representações de saúde mental e impacto no público. s.d

BVSMS / MINISTÉRIO DA SAÚDE. Alcoolismo. Biblioteca Virtual em Saúde. 2025. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/alcoolismo/

CNN BRASIL. O que é Alcoólicos Anônimos, procurado por Heleninha em “Vale Tudo”. 15 ago. 2025. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/saude/o-que-e-alcoolicos-anonimos-procurado-por-heleninha-em-vale-tudo/

GSHOW / REDE GLOBO. Heleninha decide buscar ajuda no Alcoólicos Anônimos. 13 ago. 2025. Disponível em: https://gshow.globo.com/novelas/vale-tudo/vem-por-ai/noticia/heleninha-decide-buscar-ajuda-no-alcoolicos-anonimos.ghtml

SINGHAL, A.; ROGERS, E. Entertainment-education: a communication strategy for social change. Routledge, 1999.

WHO. Alcohol. 2025 Disponível em: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/alcohol

YALOM, I. D. The theory and practice of group psychotherapy. 5. ed. New York: Basic Books, 2005.

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Graduando em Psicologia pela ULBRA Palmas. Estagiário no Grupo Gestor das Equipes Multidisciplinares do Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins (GGEM/TJTO). Integra a equipe editorial do Portal (En)Cena - A Saúde Mental em Movimento e exerce atividades de monitoria na disciplina Estágio Básico em Entrevista Psicológica.

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