João e Maria: aspectos simbólicos do inconsciente

João e Maria é um conto de fadas que foi coletado da tradição oral e transcrito pelos irmãos Grimm. E é um conto bastante popular, principalmente entre as crianças.

Todos nós carregamos uma imagem interna do que é a mãe, e nós nos confrontamos com essa imagem a todo o momento em nossas vidas. E essa imagem carrega em si o lado bom, protetor, afetuoso, que nos enche de carinho e prazer e o outro lado sombrio que é o da fome, do sofrimento e até da morte.

E esse lado sombrio é retratado nos contos de fadas, como uma madrasta, uma bruxa, uma feiticeira. Mas a verdade é que podemos encontrar os dois lados juntos em uma mesma pessoa. E o conto João e Maria trata do processo de encarar o lado terrível da mãe.

Aqui nesse ponto acredito que seja importante contextualizar o que ocorria com as crianças na época em que o conto foi escrito.

CORSO & CORSO (2006) nos contextualiza e mostra o clima da época:

Era um tempo em que os pais, só depois de encher bem a barriga, lembram que as crianças poderiam ficar com as sobras. O duro é que era bem assim. A criança como alguém que possui um valor mais alto que o adulto, alguém a quem se deve cuidar e preservar, é uma conquista da modernidade. Para nós é tão natural abrirmos mão do pouco para que não falte às crianças, quanto, para a sociedade tradicional européia, era deixá-las com as sobras.

Hoje nossos valores mudaram, mas como a estória sobrevive podemos supor que esse elemento da fome hoje está a serviço de um aspecto psicológico, senão haveria sido suprimido do conto.
Prosseguindo na análise psicológica, sabemos que enquanto bebês nossas mães nos alimenta e nos carrega no colo, mas quando crescemos deixamos de ser ninados e temos que passar a ser independentes. E isso traz uma sensação de abandono, que faz com que olhemos para nossas mães como bruxas.

Infelizmente aquela mãe protetora, que coloca no colo deve desaparecer para que a criança encontre seu próprio valor e se desenvolva como personalidade própria no mundo, senão ela será um brinquedinho e uma extensão da mãe.

O fato da família no conto passar fome significa que a mãe não pode mais dar o alimento, que é o colinho. Chega um momento em que o desmame é necessário. A comida é apenas um símbolo de que o indivíduo sente fome de novas vivencias. João e Maria estão crescendo e precisam ter novas experiências e contato com o mundo. Isso pode ocorrer com a ida à escola, onde a criança pode se sentir abandonada pela mãe e a vê-la como fria e cruel.

O pai resiste a princípio, mas se deixa influenciar pela madrasta. Essa é uma visão que a criança pode ter em relação ao pai: de que ele é fraco e sucumbe aos pedidos da mãe.

Outro ponto importante a ser analisado é o fato de termos um casal de crianças como protagonista. Maria é a típica menininha que chora e João é aquele que tenta resolver os problemas. Na verdade, sem entrar no mérito da questão dos gêneros, esses dois lados estão presentes em nós. Independente do nosso sexo, por vezes, em uma situação difícil, podemos sentir vontade de chorar, mas ao mesmo tempo podemos sentir algo pulsando em nós querendo resolver a situação.

A floresta, em geral, é um símbolo do inconsciente, aqui no conto podemos afirmar que quando a criança vai para o mundo automaticamente ela passa a separar o que é mundo interno e externo. A consciência separa os opostos, antes ela vivia em um estado de plenitude, mas agora além de enfrentar as demandas do mundo externo e do seu mundo interno inconsciente.

Crescer e ter de sair de casa tem um simbolismo para a psique de morte. A criança se sente condenada à morte. E realmente todo crescimento psíquico, toda mudança de vida exige uma morte simbólica. Aqui João e Maria devem deixar morrer seu lado bebê e sua ligação simbiótica com a mãe.

Após caminharem muito e já exaustos e com fome, eles encontram a casa de doces e a bruxa. A bruxa se mostra bondosa e generosa, mas sua intenção é devorar as crianças. Agora que a criança não está mais sob os braços da mãe, ela terá de lidar com a figura interna da mãe terrível, uma figura arquetípica presente no inconsciente coletivo. Ela é cega, portanto ela não quer ver que as crianças estão crescendo, ela quer “come-los”, devorá-los simbolicamente, para que voltem ao seu ventre e não cresçam. É um aspecto regressivo nosso que anseia voltar para a barriga da mamãe.

Essa separação mãe-filho nunca é fácil para ambas as partes. A criança sofre porque perdeu seu paraíso, mas vemos também nessa fase onde ocorre o desmame, ou quando o filho começa ir à escola, que muitas mães sentem culpa, fazem dramas e tentam sofregamente trazer de volta aquele paraíso idílico entre os dois.

Mas voltando a bruxa, observem que ela alimenta o menino e a menina lhe serve como escrava, limpando, cozinhando e lavando. Ou seja, seu animus deve continuar fraco e infantil, entretanto ao passo que ela deseja destruí-lo ela acaba fortalecendo mais seu lado masculino. Ao lhe dar mais comida ele adquire mais força.

Na verdade ela quer comer os dois, uma vez que manter o filho em um estado de bebê não é privilégio da relação da mãe com o filho.

Mas é a menina que engana a bruxa e a faz cair dentro do forno. Ou seja, a menina que vivia chorando agora adquiriu objetividade e astucia. A ingenuidade foi embora o lado infantil que se apavora agora confia em seus instintos (isso fica claro quando Maria adquire uma sensatez em relação ao cisne, seu lado animal, fazendo com que ele leve um de cada vez ao outro lado da margem do lago).

As crianças finalmente voltam para casa, agora trazendo as riquezas encontradas em seu inconsciente e compreendendo que foi necessário cortar o cordão umbilical para que pudessem amadurecer.

Referências:

BONAVENTURE, J. O que conta o conto?. São Paulo. Edições Paulinas: 1992.

CORSO, D. L. & CORSO, M. Fadas no Divã – A psicanálise nas histórias infantis. Porto Alegre. Artmed: 2006.

JUNG, C. G. Símbolos da Transformação. Vozes. Petrópolis: 1986.

Psicanalista Clínica com pós-graduação em Psicologia Analítica pela FACIS-RIBEHE, São Paulo. Especialista em Mitologia e Contos de Fada. Colaboradora do (En)Cena.