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Mário Quintana e o Encantamento

Neste 30 de julho de 2012, homenageamos Mario Quintana que completaria 106 anos se ele não tivesse morrido, ou melhor, encantado, aos 87, em 1994.

Os poetas, aliás, os artistas em geral, não morrem. Eles apenas encantam-se a fim de, infinitamente, encantarem as pessoas com o legado artístico que, publicado, pertence a todos, uma vez que o ser humano precisa de arte para ser menos incompleto.

Assim, a melhor maneira de celebrar o aniversário do poeta gaúcho o qual escreveu durante várias décadas é atualizar os textos que ele deixou na literatura brasileira. Ou seja, cada vez que lemos poesias, crônicas e/ou histórias infantis produzidas por Quintana, permitindo-as transformar nosso olhar sobre o mundo do qual o poeta fala; e também aguçar nossa sensibilidade estética, nós o homenageamos e o legitimamos como escritor. Pois as obras precisam deixar as prateleiras materiais e virtuais para se abrigarem na memória e na vida de quem os lê. O poeta homenageado, em poeminha curto, alerta:

Cuidado
A poesia não se entrega a quem a define.

Ele expressa significativa lucidez sobre a relação entre texto literário e leitor, cujo tema motivou vários escritos, como por exemplo, o excerto[1]  seguinte o qual explicita que o poema não é passatempo. É arte. E, como tal, exige gosto estético, aprendizagem sutil e abertura ao novo.

(…)
Um poema não é para te distraíres
como com essas imagens mutantes de caleidoscópios.
Um poema não é quando te deténs para apreciar um detalhe
Um poema não é também quando paras no fim,
porque um verdadeiro poema continua sempre…
Um poema que não te ajude a viver e não saiba preparar-te para a morte
não tem sentido: é um pobre chocalho de palavras.

É verdade que o leitor sequer se dá conta das transformações realizadas pelos textos artísticos, pois é lento e sutil o processo. Muito menos por poemas, já que nós, brasileiros (e talvez os seres humanos de qualquer país), temos mais ligação com as narrativas. Elas nos acompanham desde recém-nascidos, com as histórias para dormir[2]   ou ainda com os casos, verdadeiros ou inventados, que os adultos geralmente contam[3]   no cotidiano.

Entretanto, quando damos chance ao poema e, gradualmente, vamos desfrutando a musicalidade, a brevidade os versos, as palavras cuidadosamente escolhidas, os ditos e não ditos que os vocábulos revelam ou escondem… o texto poético vai se mostrando e nos inebriando su-til-men-te. Vejamos, por exemplo, a linda metáfora que Quintana utiliza a seguir:

Os Poemas

Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam voo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto;
alimentam-se um instante em cada
par de mãos e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti…

Um aspecto que impressiona na poesia do autor gaúcho é o fato de temas tão corriqueiros serem abordados ao mesmo tempo com tamanha simplicidade, como em conversa informal entre amigos, e beleza estética.

 

Canção do dia de sempre

Tão bom viver dia a dia…
A vida assim, jamais cansa…

Viver tão só de momentos
Como estas nuvens no céu…

E só ganhar, toda a vida,
Inexperiência… esperança…

E a rosa louca dos ventos
Presa à copa do chapéu.

Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar.

Nada jamais continua,
Tudo vai recomeçar!

E sem nenhuma lembrança
Das outras vezes perdidas,
Atiro a rosa do sonho
Nas tuas mãos distraídas…

Nessa “canção do dia de sempre”, por exemplo, imagens e metáforas promovem estranhamento e tornam-no diferente de outros tipos de textos não artísticos. O eu-poético nos convida a viver cada dia como fosse o único, pois, embora aparentemente a rotina consiga transformar o tempo em dias em iguais, comparados às nuvens e a determinado rio, eles não o são. A cada novo amanhecer há novas nuvens movimentando na estratosfera, e o rio, ainda que siga o curso de sempre, é outra a água que por ele passa. Assim, a cada novo dia há perspectivas e desafios distintos os quais o fazem diferente do anterior. Ou, mesmo que sejam os mesmos, o olhar, as forças e o jeito de encará-los são diferentes.

Mas os leitores distraídos, aqueles que ficam presos ao passado, às perdas e desventuras, à “rosa louca dos ventos”, esses não percebem o recomeço exigido a cada novo dia, por isso param de sonhar, como revelam os últimos versos. Então, podemos afirmar que, simples e despretensioso, o poema desafia o leitor a pensar, seja em elementos corriqueiros que o automatismo cotidiano encobre, como nuvens, rio, rosa, chapéu. E também em aspectos extremamente importantes como a vida, os sonhos, os valores que preservamos ou deixamos escapar pelos dedos da monotonia e da falta de esperança.

No soneto[4]   “Ah, os relógios”, o eu-poético nos instiga a pensar sobre a sobreposição do tempo do relógio: marcado, rotulado, normatizado e apressado que Cronos continua devorando, sem tréguas, das nossas vidas. Em contraposição ao tempo primitivo, anterior ao instrumento, desacelerado, sem ponteiros nem frações, no qual a própria poesia ajuda a imergir e onde se encontram os sonhos, as amizades, a eternidade poética e a possibilidade de vida plena.

Ah, os relógios

Amigos, não consultem os relógios
quando um dia eu me for de vossas vidas
em seus fúteis problemas tão perdidas
que até parecem mais uns necrológicos…

Porque o tempo é uma invenção da morte:
não o conhece a vida – a verdadeira –
em que basta um momento de poesia
para nos dar a eternidade inteira.

Inteira, sim, porque essa vida eterna
somente por si mesma é dividida:
não cabe, a cada qual, uma porção.

E os anjos entreolham-se espantados
quando alguém – ao voltar a si da vida –
acaso lhes indaga que horas são…

Os poemas de Mario Quintana se destacam na literatura brasileira pelo modo como o autor ironiza, com o mesmo despojamento. Um dos textos irônicos é o “poeminho do contra”, que ele escreveu na época em que, pela terceira vez, não conseguiu votos suficientes para ser admitido na Academia Brasileira de Letras (ABL). Assim, ao invés de esbravejar contra os próprios colegas escritores, já veteranos na instituição, o gaúcho preferiu escrever aquele que se tornaria um de seus textos mais conhecidos. E o poema “biografia”, logo a seguir, parece complementar o primeiro.

 

Poeminho do Contra

Todos esses que aí estão
Atravancando meu caminho,
Eles passarão…
Eu passarinho!

 

Biografia

Era um grande nome — ora que dúvida! Uma verdadeira glória. Um dia adoeceu, morreu, virou rua… E continuaram a pisar em cima dele.

Já o texto “da observação” demonstra que o poeta de Alegrete (RS) conhecia muito a alma humana, inclusive suas limitações e fragilidades. Assim, de forma irônica, ele sugere que, ao invés de revidar o mal de forma comum, como todos o fazem, vale mesmo é a superioridade de quem sabe observar e encará-lo de maneira bem-humorada e divertida.

 

Da Observação

Não te irrites, por mais que te fizerem…
Estuda, a frio, o coração alheio.
Farás, assim, do mal que eles te querem,
Teu mais amável e sutil recreio…

Com a mesma singeleza e criatividade, Quintana aborda acerca do amor:

Bilhete

Se tu me amas,

ama-me baixinho.

Não o grites de cima dos telhados,
deixa em paz os passarinhos.

Deixa em paz a mim!
Se me queres,
enfim,

tem de ser bem devagarinho,
amada,

que a vida é breve,
e o amor
mais breve ainda.

Nesse poema, o eu-poético fala sobre discrição no relacionamento, como se o fizesse realmente por meio de um “bilhete”, tipo de texto bastante informal que é escrito entre pessoas as quais têm muita proximidade. Tal sentimento é reforçado pela demonstração de afetividade expressa pelo uso de diminutivos caprichosamente distribuídos no poema. Além da musicalidade produzida por rimas (baixinho/ passarinho/ devagarinho), pela utilização repetida da letra/som “s”, como por exemplo, em: amas / grites / cima / passarinhos;  e ainda da nasalização produzida pelos sons das letras “m/n”, como em: me amas / ama-me baixinho. O resultado é um sussurro ao pé do ouvido que traduz a discrição almejada e demonstra genialidade poética. Ou seja, o poeta não somente pede para falar baixinho: ele o faz por meio do texto.

Já o poema “Esperança”, geralmente é enviado por internautas, aos amigos, na época das festas natalinas. Assim como os demais, é texto o qual, como a própria esperança, dá prazer em atualizá-lo em cada novo Natal.

Esperança

Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano
Vive uma louca chamada Esperança
E ela pensa que quando todas as sirenas
Todas as buzinas
Todos os reco-recos tocarem
Atira-se
E
— ó delicioso voo!
Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada,
Outra vez criança…
E em torno dela indagará o povo:
— Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?
E ela lhes dirá
(É preciso dizer-lhes tudo de novo!)
Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam:
— O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA…

É evidente que somos desafiados a continuar homenageando Mario Quintana todos os dias, pois há inumeráveis escritos por meio dos quais podemos apreciar a singularidade do mundo. E,  enquanto lemos e deixamos os textos penetrarem lentamente em nossa vida, a partir/por meio deles também vamos construindo os nossos. Vejamos o que o poeta mesmo diz afirma no poeminha a seguir:

A Arte de Ler

O leitor que mais admiro é aquele que não chegou até a presente linha. Neste momento já interrompeu a leitura e está continuando a viagem por conta própria.

Quintana é assim: continua encantando com suas obras que podem nos transformar em leitores felizes e capazes contemplar o mundo com simplicidade e cantar em cada novo dia a “Canção da vida”.

 

A Canção da Vida

A vida é louca
a vida é uma sarabanda
é um corrupio…
A vida múltipla dá-se as mãos como um bando
de raparigas em flor
e está cantando
em torno a ti:
Como eu sou bela
amor!
Entra em mim, como em uma tela
de Renoir
enquanto é primavera,
enquanto o mundo
não poluir
o azul do ar!
Não vás ficar
não vás ficar
aí…
como um salso chorando
na beira do rio…
(Como a vida é bela! como a vida é louca!)

[1] Todos os poemas utilizados foram extraídos do blog de Fábio Rocha, disponível em: <http://www.poesiaspoemaseversos.com.br/mario-quintana-poemas/>. Acesso em 26 de jul. 2012

[2] Não foi à toa que Mario Quintana escreveu inúmeros livros infantis: O Batalhão das Letras, Pé de Pilão, Lili inventa o Mundo, O Sapo Amarelo, etc.

[3] Histórias de pescador e de assombração, por exemplo.

[4] Poema clássico, composto por dois quartetos e dois tercetos, cujos versos apresentam rimas definidas e simétricas.

Professora do CEULP/ULBRA e pesquisadora de poéticas orais na Comunidade Mumbuca.