Todo o homem pode e deve ser filósofo. Há muitas frases célebres atribuídas a René Descartes; a mais conhecida, “Penso, logo existo.”, possivelmente concorre com “Ser ou não ser, eis a questão.”, de Shakespeare, pelo posto de frase mais citada e recitada ao longo dos últimos séculos. No entanto, talvez a frase que melhor defina a vida e a obra de Descartes seja outra: “É preferível ter os olhos fechados, sem nunca tentar abri-los, do que viver sem filosofar.”.
René Descartes, desenhado por Fernanda Rodrigues Galves
René Descartes nasceu em 1596, em La Haye, hoje território francês, a cerca de 300 quilômetros de Paris. Morreu em 1650, na Suécia. É portanto, um pensador do período Barroco, pós Renascimento, contemporâneo mais jovem de Galileu Galilei. Nesta época, o Vaticano promovia violenta perseguição aos indivíduos que representassem ameaça aos interesses da Igreja, o que ficou conhecido como Inquisição. Os filósofos e pensadores livres eram alvos de extrema importância, pois suas ideias muitas vezes iam, de forma muito bem fundamentada, contra preceitos primordiais pregados pela Igreja. Galileu Galilei foi um dos perseguidos.
René Descartes, sabendo do que ocorria com seus colegas quando publicavam obras que apresentavam ideias novas passíveis de contestação pelo clero, conduziu sua vida e sua obra de forma a ser um pensador livre sem ser enquadrado pela Inquisição. Diversas foram suas estratégias para realizar esta proeza, que lhe permitiu produzir sem restrições e resultou em grande feito: Descartes é hoje considerado o pai da filosofia moderna e um dos pensadores mais influentes de todos os tempos, suas contribuições em diversas áreas do conhecimento mudaram a História e a forma de viver da humanidade.
Sua educação formal de base se deu em escola jesuíta, tendo estudado por cerca de nove anos no colégio Royal Henry-le-Grand, em La Flèche. A educação jesuíta e a tradição escolástica lhe pareceram confusas, obscuras e sem praticidade. Ainda na França, Descartes estudou direito na Universidade de Poitiers. Seu espírito aventureiro, a sede de busca pela verdade e a energia de sua juventude o levaram ao preterir o exercício da profissão. A ida para a Holanda para ingresso nas forças armadas foi a escolha de Descartes após graduar-se, não por qualquer convicção bélica, mas por enxergar no exército a oportunidade de viajar e conhecer o mundo: “Daria tudo que sei em troca da metade de tudo que ignoro.”.
A carreira militar abriu uma nova oportunidade para a sua produção filosófica: a de poder pensar e fazer sem estar vinculado a uma instituição de ensino religiosa como anteriormente. Isto permitiu que Descartes se debruçasse livremente sobre temas diversos (como a música, no tratadoCompendium Musicae) e, consequentemente, vislumbrasse a dissociação entre filosofia e teologia, um grande tabu na época. Data de 1619 uma ocorrência que virou lenda e tradição na história da filosofia: em uma viagem à Alemanha, René Descartes teria tido, em sonhos, visões de uma filosofia nova e admirável, baseada em um novo sistema matemático e científico, o que interpretou como uma premonição do seu destino. Descartes então se estabeleceu por alguns anos em Paris e, depois, por duas décadas na Holanda, onde escreveu sua obra.
Após um milênio de “estagnação” científica e tecnológica na Europa, os avanços das ciências naturais do Renascimento em diante permitiram grandes feitos, mudando o cotidiano e deslumbrando as pessoas. Os avanços da matemática e da física, por exemplo, levaram ao desenvolvimento de equipamentos como a bússola e possibilitaram a construção de embarcações mais resistentes, culminando na era das grandes navegações, cujas consequências transformaram o planeta. No campo da filosofia, contudo, as principais contribuições desde a Antiguidade foram tentativas de adaptar a filosofia da Grécia Antiga ao Cristianismo, tendo como expoentes São Thomas de Aquino e Santo Agostinho. Ainda não havia se desenvolvido um novo sistema filosófico organizado e com continuidade de contribuições para as mesmas questões centrais por autores em sequência, como os gregos antigos haviam feito principalmente com Sócrates, Platão e Aristóteles.
Descartes tinha consciência de que o juízo de autoridade (quando a aceitação do conhecimento vem do fato de ele ter sido declarado por alguém considerado ilustre) praticado pelo Vaticano e a cassação pela Inquisição das pessoas cujas ideias poderiam destronar tal juízo de autoridade eram responsáveis pela “estagnação” filosófica. A conclusão de que não se podia confiar no conhecimento dos livros da época tornara-se uma convicção desde os tempos de escola jesuíta, bem como a consciência sobre a própria ignorância (e da humanidade em geral). O desejo de conhecer a natureza do homem e do universo e a noção de que isto seria encontrado dentro de si e no “livro do mundo” foram os propulsores da jornada (tanto no sentido das viagens pela Europa quanto da busca pela nova filosofia). Assim, outra convicção se estabeleceu: não só o conhecimento da Idade Média deve ser questionado, também não se pode confiar no que os sentidos dizem (aqui se referindo aos cinco sentidos biológicos básicos – visão, audição, tato, olfato e paladar).
A construção da filosofia de René Descartes é profundamente atrelada a um momento histórico ímpar da história da humanidade por ser um período de intensa transição e que resultou em mudanças drásticas. A dúvida é o ponto de partido em função da desconfiança no conhecimento prévio e nos sentidos. O ponto de chegada é o conhecimento seguro, que os avanços das ciências naturais demonstravam na dedução matemática. E a razão é o único meio de atravessar o caminho entre os dois pontos. Para se fazer tal travessia, Descartes estabeleceu quatro preceitos que devem ser seguidos em ordem. Estes preceitos foram descritos em um livro chamado Discurso do Método e orientam aquele que busca o conhecimento a: nunca aceitar coisa alguma como verdade sem conhecer evidentemente como tal, evitar a precipitação; dividir cada uma das dificuldades em tantas partes quanto for possível e necessário para melhor resolvê-la; conduzir por ordem os pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer até o conhecimento dos mais compostos; enumerar e revisar as conclusões, garantindo que nada seja omitido. Descartes acreditava que qualquer ser humano poderia, através deste método, atestar se um conhecimento é seguro. Ao não se limitar à especulação filosófica, criando também um método para a construção do conhecimento, Descartes deu origem a filosofia da ciência, estabelecendo as bases filosóficas para as posteriores escolas de pensamento e para a revolução científica que viria com a institucionalização da ciência em universidades “livres” financiadas pelos governos monarcas e seus nobres alguns séculos depois. O Método Cartesiano é a matriz da ciência ocidental moderna e a influencia enormemente até hoje.
Fonte: Revista Ciência Hoje
A primeira preocupação da filosofia cartesiana (a do conhecimento seguro) gera a segunda preocupação, que é a da relação entre corpo e alma, pois Descartes colocava a razão acima dos sentidos. A análise desta questão tem sequência nas obras de diversos filósofos posteriores, como Spinoza, Leibniz, Locke, Berkeley, Hume e Kant, caracterizando um sistema filosófico sólido. O dualismo cartesiano separava e hierarquizava corpo e alma, apresentando o pensamento (alma, espírito) como primeira substância e a extensão (matéria, realidade exterior) como segunda substância. Ambas as substâncias provinham de Deus e podiam se relacionar, mas eram tidas como independentes. Assim, os sentidos, provenientes da matéria, podiam atrapalhar o pensamento e era função do homem manter a razão livre da influência da extensão. A matéria por si só era inanimada, daí a aplicação do mecanicismo ao corpo humano, noção que, articulada a fragmentação do conhecimento proposta pelos quatro preceitos do método, influencia até hoje como a medicina enxerga o corpo humano. Cabia à glândula pineal atuar como ponte entre espírito e matéria – os filósofos da época eram o que hoje se chama de “multi e transdisciplinares”, Descartes também deixou contribuições para outras áreas do conhecimento, como a Biologia e a Matemática (eixos cartesianos).
Fonte: Revista Ciência Hoje
A rejeição ao conhecimento do Vaticano não levou Descartes à negação de Deus. Pelo contrário: Descartes usou sua filosofia para provar a existência de Deus. A predominância da razão sobre os sentidos colocava o pensamento como realidade plena, enquanto os sentidos podiam ser ilusórios, como se exemplifica nas palavras de Descartes sobre os sonhos: “Quando penso com cuidado no assunto, não encontro uma única característica capaz de marcar a diferença entre o estado acordado e o de sonho. Tanto eles se parecem, que fico completamente perplexo e não sei se estou sonhando neste momento.”. O pensamento era a garantia de existência (“Penso, logo existo.”); quanto mais evidente era uma coisa para o pensamento (utilizando o método para colocá-la em prova), tanto mais certo era o fato dela existir. E como o homem não é perfeito, o pensamento sobre um ser perfeito só poderia vir Deus. Logo, Deus existe.
Mesmo assim, Descartes não foi poupado de ter seus livros incluídos na lista de obras proibidas da Inquisição. Uma virtude e uma fatalidade, e não a comprovação da existência de Deus, permitiram-lhe trabalhar sem ser perseguido ao longo da vida. A virtude foi que, conhecedor e estrategista, Descartes não publicava seus livros de imediato, guardava-os e até os escondia, suas obras foram publicadas décadas após terem sido escritas. A fatalidade foi que Descartes morreu de pneumonia na Suécia, onde havia sido contratado como professor da família real, no ano seguinte à sua inclusão na lista da Inquisição.
Fonte: Revista Ciência Hoje
Bibliografia
Antônio Carlos Burlamaque Neto. Tese de Doutorado: Terapia Gênica: Ciência e Educação. (não publicada).
Jostein Gaarder. O Mundo de Sofia. São Paulo: Companhia das Letras; 1995.
René Descartes. Discurso do Método. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2003.
Revista Ciência Hoje: http://cienciahoje.tumblr.com