Tenho um filho de 19 anos. Ele não é dependente químico, não tem nenhuma doença mental e é extremamente pacífico. Para ter uma ideia, ele nunca provocou situações de violência na vida.
Há um ano, durante o carnaval, enquanto caminhava em Ondina com outro amigo, bem próximo a mim, ele levou um soco de alguém gratuitamente. A pessoa bateu e seguiu.
Ainda no ano passado, voltávamos para casa de minha mãe no fim de um dia comum e paramos numa baiana de acarajé para comprar uns quitutes e degustarmos juntos. Eu estava dirigindo e ele no banco de carona do nosso carro. Estacionei próximo a baiana e abaixei a cabeça para procurar o dinheiro na bolsa, enquanto ele aguardava para poder ir comprar os acarajés.
Levantei a cabeça com uma arma batendo no vidro do nosso carro, determinando que eu o abaixasse os vidros, meu filho abrisse a porta e saísse do carro. De início tomei um susto, pois tinha sido assaltada em situação parecida meses antes.
Abaixei o vidro e então entendi que eram policiais civis em uma busca. O que estava do meu lado pediu para eu ficar calma, enquanto enfiava a cabeça perguntando quem era o rapaz do meu lado. O que estava do lado do carona continuava batendo no vidro, mandando o rapaz sair do carro.
Expliquei que morávamos ali e eu só estava procurando dinheiro para MEU FILHO ir comprar acarajé. Tive que repetir diversas vezes que o rapaz ao meu lado era meu filho, tinha 19 anos e que moramos boa parte da vida no bairro. Um dos policiais, então, pediu para que o outro “deixasse” a abordagem para lá.
Foi ai que entendi o que estava acontecendo. Meu filho era um potencial suspeito porque é negro.
Todo dia antes dele sair eu observo como está vestido. Eu recrimino quando ele coloca o boné para trás. Eu pergunto se levou documento. Falo para não sair sem camisa. Eu analiso as tatuagens que quer fazer e alerto para a exposição em algumas partes do corpo. Eu não deixei ele aumentar o diâmetro do alargador na orelha.
Eu busco ele em festas de madrugada. Eu evitei que ele andasse de ônibus durante muito tempo e, mesmo quando começou a andar, monitorava se estava indo, voltando, chegando e, quando possível, ia levar, buscar…como no último carnaval quando eu sai de Vilas e fui em Ondina buscá-lo.
Eu reclamo do corte de cabelo, da calça rasgada, das fotos em que ele coloca o queixo para cima e faz “cara de mau”, das gírias em público e até de como ele fica parado na rua com as mãos no bolso.
Eu oriento a ficar longe da polícia, a responder sempre de forma branda, a atender tranquilamente as abordagens policiais nos coletivos.
Eu não queria fazer nada disso. Eu queria que ele tivesse o corpo livre para usar esteticamente como bem desejasse.
Mas ele é negro e o corpo negro do homem jovem é marcado por estereótipos e identificados pela polícia, seguranças e pelos brancos como permitidos ser violentado, agredido ou morto. E eu não quero meu filho em nenhuma dessas situações.
Talvez para você que não tenha um filho jovem negro isso não faça nenhum sentido. Talvez para você que até tenha um filho negro, mas não tenha origem ou não viva em bairros populares ou periféricos, isso pareça mimimi…Pessoas do meu mais profundo afeto já me disseram que é excesso, que eu não preciso me preocupar porque meu filho é maravilhoso. Ele próprio se chateia com meus excessos de orientação e “monitoramento”. Parece que não confio nele e em quem ele é.
Eu confio. Imensamente. E eu sei que ele é maravilhoso. O mais maravilhoso do mundo. E é verdade. O que parece excesso é zelo rotineiro. É medo das estatísticas. Eu quero que ele vá, que saia, que rode, que ande, aprenda, estude, trabalhe e se divirta. Mas quero ainda mais que ele volte sempre. Inteiro. E é dilascerante saber que eu não posso garantir isso e ter a consciência de que ele e a maioria de seus amigos estarão sempre mais vulneráveis.
INFELIZMENTE o país que a gente vive não garante a segurança de meninos como ele. A cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil. Não é a violência e insegurança. É o racismo. O racismo mata e ele está estruturalmente entranhado na nossa sociedade.
Esse textão é porque eu tô dilacerada com a morte de Pedro Gonzaga de 19 anos. Eu imagino exatamente a dor que a mãe de Pedro está sentindo porque, certamente, ela já sentiu essa dor muitas vezes ao ver seu filho ser violentado simbólica ou fisicamente, como eu.
A dor da mãe de Pedro é a minha dor. A morte de Pedro é a morte também do meu filho porque cada vez que matam um jovem preto, uma mãe preta vai morrendo mais um pouquinho.
Não quero ver o mundo de vídeo que está circulando. Não tenho estômago. Não quero ouvir nenhuma defesa ou justificativa para o ato do homicida que estava exercendo o papel de segurança de uma propriedade privada e que, portanto, não tinha NENHUMA licença para deter, prender, muito menos matar. Ainda que Pedro tivesse tentado subtrair sua arma, tentado roubar ou cometido QUALQUER ato no local que o tornasse suspeito, seu assassino não poderia ter sequer agredido-o, quanto mais matado-o sufocado.
Eu só queria abraçar a mãe de Pedro, dizer que sinto muito e que está doendo em mim. Queria dizer a ela que as vidas negras importam. Importam muito. Mesmo que toda sociedade queira continuar nos violentando, silenciando e nos matando, nós e nossos filhos não voltaremos para o tronco, para o anonimato e para a marginalidade que insistem em nos jogar.
A morte de Pedro Gonzaga é um assassinato legitimado pelo racismo que nossa sociedade doente insiste em reforçar.
Vamos continuar buscando a estratégias para nos proteger e continuarmos vivos nesse país de falsa liberdade e igualdade. Vamos efetivamente nos dar as mãos e evitar que mais meninos sejam simplesmente mortos.
Não é possível que continuem nos matando…
A carne mais barata do mercado não pode continuar sendo a carne negra.