Bohemian Rhapsody: espíritos fortes têm ‘gênios’ indomáveis

Concorre com 5 indicações ao OSCAR:

Melhor Filme, Melhor Ator (Rami Malek), Melhor Edição (John Ottman), Melhor Edição de Som (John Warhurst), Melhor Mixagem de Som

A ambivalência de Freddie Mercury em grande medida lembra dois aspectos centrais da filosofia nietzschiana que influenciaram sobremaneira linhas teóricas da Psicologia Moderna: Vontade de Potência e Amor Fati

Fonte: encurtador.com.br/ouLQ7

Mais do que a cinebiografia da Banda inglesa Queen, Bohemian Rhapsody é uma ode a Freddie Mercury, vocalista que deu o tom diferenciado para a agremiação e que, com o seu estilo peculiar, delineou as tendências do showbiz em língua inglesa nos anos 1980 e 1990. Em 134 minutos o espectador é ‘envenenado’ por uma sequência frenética de acontecimentos que só poderiam condizer com as características do representante mor da banda, cuja existência meteórica refletia uma habilidade que poucos artistas conseguiram imprimir: viver várias vidas numa única – e curta – existência. Na versão feminina, algo similar ocorreu com Amy Winehouse.

Atuando como Mercury, o talentoso Rami Malek ganha o reconhecimento do público e da crítica por encarnar o espírito controvertido – e igualmente apaixonante – do britânico, que em aproximadamente duas décadas (o filme, no entanto, só retrata 15 anos do ídolo) mudou a forma de se produzir música no Ocidente e de interagir com o público, como bem pontuou a cantora pop norte-americana Lady Gaga, fortemente influenciada pelas performances do vocalista, que mesmo na fase mais crítica da AIDS (ele integrou uma legião de artistas e intelectuais ceifados pela doença, na década de 90) manteve uma postura que dispensava a culpa e o ressentimento.

Neste sentido, Freddie Mercury data um período de transição entre, de um lado, uma geração fortemente marcada pela necessidade de liberdade, e disposta a pagar o preço por esta mesma liberdade (antítese das anteriores, com tônica social repressiva e psicologicamente recalcada) e, de outro lado, uma geração mais fluida – nascente nos anos 2000 –, também altamente adepta da liberdade, só que com mais dificuldade para lidar com os reveses da vida, notadamente no que parte da psicanálise e da sociologia identifica como um descompasso entre o excesso de expectativa e, na práxis, o fato de ter que lidar com a realidade, tal qual ela se apresenta.

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A vida – ou as vidas – do cantor inglês, marcada por sucesso, fama, segurança e insegurança, ambientes tóxicos, doença, família, dinheiro, amores e aproveitadores, refletem um caráter ambivalente de Freddie, caráter este que ora o colocava a mercê afetivamente de uma amiga que o acompanhou por toda a vida adulta, ora o enchia de rompante e de energia para encarar noites seguidas na companhia de homens e de drogas (não que haja uma relação direta entre estes objetos, caro leitor). Além disso, no cenário existencial de Freddie Mercury houve espaço para o amor e para a generosidade, notadamente a partir de seu romance com Jim Hutton, e tendo em vista a aproximação com a família, que sabia de sua homossexualidade, mas que não encarava a questão de frente – supostamente porque o próprio Freddie assim o desejava.

Esta ambivalência de Freddie Mercury em grande medida lembra dois aspectos centrais da filosofia nietzschiana que influenciaram sobremaneira linhas teóricas da Psicologia Moderna, como o Humanismo, a Esquizoanálise, o Existencialismo e a Psicanálise Junguiana, dentre outras. Trata-se da ‘Vontade de Potência’ e do ‘Amor Fati’. Pois bem, sobre a relação da ‘Vontade de Potência’, no que há de mais elementar, Nietzsche – tendo recebido influência direta de Schopenhauer e dos ‘anos selvagens’ da Filosofia, como pontuou o alemão Rüdiger Safranski – calcou toda a sua tese inicial, obviamente identificando e combatendo, a posteriori, o niilismo schopenhaueriano.

Neste sentido, Mercury é a personificação do sujeito ocidental que começa a experimentar a liberdade de pensamento e de expressão, aliando a isso uma recusa à docilização dos corpos, tese estruturada, àquela mesma época, pelo francês Michel Foucault. Assim, o vocalista do Queen identifica na imanência, nas relações concretas e no contato com os prazeres o que havia de mais real na existência, abstendo-se, portanto, das reservas/restrições/contingências sensoriais típicas da pré-revolução cultural.

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Ora, a genealogia da moral nietzschiana e, depois, foucaultiana, já havia escrutinado o suposto sistema doutrinário do cristianismo da época, que era – ainda é, muitos apontam – acusado de exercer poder sobre as massas a partir do controle dos pensamentos (pelo dispositivo do pecado e da censura a determinadas narrativas) e, também, sobre os corpos, a partir de um rígido sistema de delimitação performática que impedia homens e mulheres de agir de acordo com as suas vontades pessoais. Legislar e contingenciar (este último, no sentido econômico mesmo, de impor controle, contenção), desta forma, era a máxima tanto da esfera pública, a partir dos modernos governos europeus (que, ainda assim, levaram a cabo a vida do inglês Turing, morto injustamente por ser gay) e das próprias estruturas privadas, tendo na igreja cristã um bastião relevante.

Freddie Mercury, a partir de suas apresentações que destoavam explicitamente do que se esperava dos papeis de gênero, consolida, portanto, um movimento de resistência ao rolo compressor das ideias hegemônicas. Só se pode fazer isso se houver bastante clareza de que vale a pena viver de acordo com as convicções pessoais, dando vazão à máxima socrática do ‘torna-te quem és’. Esta não é uma tarefa fácil, mas certamente representa bem como Freddie Mercury transformou a sua própria existência num palco da ‘Vontade de Potência’.

Querer liberta: eis a verdadeira doutrina da vontade e da liberdade – assim Zaratustra ensina a vós […] Para longe de Deus e dos deuses me atraiu essa vontade; que haveria para criar, se houvesse – deuses! Mas para o ser humano sempre me impele minha fervorosa vontade de criar” – Nietzsche, Assim falou Zaratustra.

Ao procurar expandir-se ao máximo, muitas vezes sendo incompreendido, atacado e desprezado, o astro do Queen, de outra parte, garantiu um séquito de seguidores por todo o mundo, que viram nele um eco de suas vontades ainda não materializadas – ao menos não em escala global, sob a pele de um showman -, e que se coloca no plural, como aquele que é amante, amado, traído e traidor, usuário de drogas e artista incomparável, num movimento que permite a ação das investidas antagônicas da vida.

A ‘Vontade de Potência’, então, como força cega e natural, rompe qualquer tentativa de dicotomizar a vida entre bem/mal, certo/errado… ela opera pelo princípio da expansão pela acomodação de forças e pela criação de novos valores. Mercury, desta forma, fez valer esta máxima, e mesmo que tenha morrido jovem para os parâmetros da época, se aproximou daquilo que, em psicologia, costumou-se chamar de autorrealização, no sentido de que, mesmo em períodos de sofrimento agudo – como quando, no filme, enfrenta o diagnóstico por HIV –, esteve próximo do seu mais íntimo desejo, da sua vontade, numa aceitação inconteste dos movimentos que regem a vida.

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É neste momento que a existência de Freddie coaduna com outra proposição nietzschiana, a do ‘Amor Fati’. Trata-se de um pressuposto que eclode ao mesmo tempo em que o sujeito se permite viver sob a égide da ‘Vontade de Potência’. Alguns podem perguntar se isso ocorre de modo consciente ou inconsciente. Para um psicanalista junguiano, quanto mais houver a possibilidade de viver alinhado as necessidades do centro psíquico (ou Self), tanto mais é possível reconhecer as próprias necessidades e, independente das forças em contrário (claro, guardadas as devidas proporções e tendo-se por base evitar visões polarizadas), faz valer tais necessidades.

Freddie Mercury abraça como ninguém a sua própria vida, de um ser que não é originalmente da Inglaterra, um homossexual com dentes protuberantes – que lhe garantiram um timbre de voz singular –, com trejeitos femininos (se ainda hoje a referência masculina aos traços femininos ainda causa repulsa, imagine nos anos 70 e 80) e que, independe do olhar do outro, está disposto a pagar caro pela própria irreverência. De temperamento forte, foi a solidão o primeiro efeito colateral experimentado pelo astro. Mas ainda assim isso não lhe tirou o brilho. A segunda metade do longa deixa isso muito claro. Encarnado na pele de astro, ele era alguém que exalava energia. Para fazer isso, Mercury demonstrou ter as características de um espírito incomum e, igualmente, indomável.

“Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas. Amor-fati [amor ao destino]: seja este, doravante, o meu amor! Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores. Que minha única negação seja desviar o olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia, apenas alguém que diz Sim!” – Nietzsche, Gaia Ciência, §276

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O showman inglês, então, foi alguém que disse sim para a vida, num amor indubitável pela existência. Amor este marcado pelos aparentes excessos, mas que produziu novos cenários. Mercury aceita a imanência, a concretude da existência. Com sabores/prazeres, mas também com suas dores. Não por menos, nega qualquer pecha de coitadismo quando de seus últimos anos de vida. Disse não se arrepender de nada, bem a seu espírito. Isso reflete uma personalidade que nega o niilismo e afirma a sua própria trajetória como um percurso possível e belo, apesar dos revezes. Aprender amar o próprio destino e ver beleza onde, pela educação enviesada, só se vê desabono, é, em essência, uma prova de autorrealização.

Bohemian Rhapsody é um filme que, guardadas as proporções, soube sintetizar bem todas estas nuances. Ele prende o expectador em todos os seus minutos, mesmo que já se conheça a história de Freddie Mercury. São minutos inebriados pela performance do astro, que soube se opor a um sistema de representações ditado por uma política e uma moral repressivas. A seu modo, conduziu uma revolução que ajudou a moldar o comportamento de toda uma geração, geração esta que passa a se familiarizar com vozes globais pela liberdade, pelo direito de ser quem é, um dos valores das sociedades liberais do ocidente, em que pese a guinada conservadora destes últimos anos. Bohemian Rhapsody faz lembrar que, se houver coragem de viver, de ousar e de não se acovardar, a vida pode ser extremamente significativa, mesmo que breve.

FICHA TÉCNICA:

BOHEMIAN RHAPSODY

Título original: Bohemian Rhapsody
Direção: Bryan Singer
Elenco: Rami Malek,  Ben Hardy, Roger Meddows-Taylor, Mike Myers;
Países: EUA, Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte
Ano: 2018
Gênero: Biografia, Drama, Música.

REFERÊNCIAS:

FOUCAULT, Michel. Ética, Sexualidade, Política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.

JUNG, C.G. O Eu e o Inconsciente. 18 Ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2004.

NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Editora Martin Claret, 2003.

_________. A Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 1ª ed. 2001.

SAFRANSKI, Rüdiger. Schopenhauer e os anos mais selvagens da filosofia. São Paulo: Geração Editorial, 2011.

 

Psicólogo. Mestre em Comunicação e Sociedade (UFT). Pós-graduado em Docência Universitária, Comunicação e Novas Tecnologias (UNITINS) e em Psicologia Analítica (UNYLEYA-DF). Filósofo, pela Universidade Católica de Brasília. Bacharel em Comunicação Social (CEULP/ULBRA), com enfoque em Jornalismo Cultural; é editor do jornal e site O GIRASSOL, Coordenador Editorial do Portal (En)Cena.