“I drive”
A cidade e suas direções
Há filmes que nascem clássicos, colocando-se em relevo perante seus coirmãos de época. Este é o caso de Drive, lançado em 2011, dirigido por Nicolas Winding Refn e estrelado por Ryan Gosling. A estrutura da obra gira ao redor de um tríplice pilar fundamental: o motorista (driver) e sua relação com sua essência volátil representada pelo automóvel que guia com maestria e precisão; os redutos e cantos da cidade na qual se passa o filme, ora como uma sufocante urbanosfera noturna, ora como uma calorosa e efêmera possibilidade de fuga do cotidiano citadino.
E, por último, o elenco de apoio da obra, que é formado por nomes como Carey Mulligan (Irene), Bryan Cranston (Shannon), Oscar Isaac (Standard Guzma), Ron Perlman (Nino) e Albert Brooks (Bernie Rose), e nos ajudam a compreender a complexidade daquele indivíduo monosilábico que dá título à obra. E, sobre o elenco, é preciso determo-nos na atuação de Ryan Gosling. O ator, nos últimos anos, vem demonstrando uma maturidade ímpar na escolha e diversificação dos seus papeis no cinema, em filmes como The Place Beyond the Pines (2013), The Big Short (2015) e o vindouro Blade Runner 2049 (2017).
A sua desenvoltura em Drive remete-nos a grandes atuações em filmes que exploraram a figura icônica do forasteiro ou desconhecido que decide agir em uma situação específica e, deste ponto em diante, a trama da obra degringola até seus momentos decisivos. Deste estofo roteirístico há grandes referências em personagens como o homem sem nome de Por um Punhado de Dólares (1964) na figura de Clint Eastwood, Chris Adams de Sete Homens e Um Destino (1960) e até mesmo o alienígena Klaatu, interpretado por Michael Renne em O dia em que a Terra parou (1951).
A sua relação com a inacabável cidade é fria e calculista, de modo a buscar em suas ruas, guetos e luminárias, apenas o que lhe convém na manutenção de suas necessidades imediatas. O padrão sempre rígido em relação à localização, tempos e encontros remete a essa postura sobre a ecumenópolis, propositalmente inominada, em que Drive se passa e, cuja imensidão é descrita pelo próprio personagem central: “There’s a hundred-thousand streets in this city. You don’t need to know the route. You give me a time and a place, I give you a five minute window. Anything happens in that five minutes and I’m yours. No matter what. Anything happens a minute either side of that and you’re on your own. Do you understand?” (Driver).
Neste ponto específico, das nuanças paisagísticas que permeiam o filme, podemos trazer à tona algumas das influências imagéticas, ‘estoriais’ e de desenvolvimento na presença deste padrão urbano ao longo da obra, em uma reincidência de temas e abordagens. Outros filmes que exploraram o conceito de grandes centros urbanos, seja em situações neo noir, cyberpunk ou, até mesmo, em retrofuturismos, podem ser listados como referências proximais ou longínquas da obra de Refn: Blade Runner (1982), Chinatown (1974), Seven (1995), Cães de Aluguel (1992), Trilogia das Cores (1993-1994), Johnny Mnemonic (1995), Body Hammer (1989), Ghost in the Shell (1995), etc.
Os indivíduos citadinos em sua integração
Também há elementos imagéticos importantes para a composição da trama em Drive, desses aspectos pode-se destacar a maneira como a direção de arte aloca paletas de cores para personagens específicos, ou então, quando os mesmos estão em determinadas situações de interação uns com os outros. Neste último caso, de interação entre as personagens, há a presença dos tons azul e amarelo para representar os momentos em que o motorista\dublê está em partilha espaço-temporal com a família de Irene e seu filho – desde o supermercado até os ambientes interiores de sua casa, também, quando está com o filho da mesma, Benicio.
Cenas com leque de colorações quentes e ternas são utilizadas, em diferentes momentos, para representar uma calmaria e harmonia entre estes três personagens do longa, todo o seguimento do passeio de carro, ao som da trilha de Real Hero de College & Electric Youth e Under Your Spell da banda Desire são as melhores representações dessas ocasiões. Percebe-se, inclusive, a maneira cautelosa com a qual Irene adiciona aquele novo elemento à sua dinâmica com o filho, de modo a aproveitar ao máximo aqueles efêmeros istantes de fuga de suas realidades cotidianas.
Irene: Thank you. He had a good time
Driver: Me too.
Irene: Sorry if I put you on the spot showing up like that.
Driver: It’s okay.
[he takes his jacket from her and gives her a long stare]
Driver: I’m not doing anything this weekend, if you wanna a ride or somethin’.
Outro ponto a ser observado – e aqui temos uma visualização dos contrapontos na direção de arte da obra – é a presença primeiramente residual e perspectiva do pai do garoto (Guzman, interpretado por Oscar Isaac), e depois mais efetiva e insinuante com a volta deste da prisão. Os tons vermelho e vinho – assim como uma atmosfera mais tensa e escurecida –, servem como contraparte desta perenidade (presente ou ausente) de Guzman.
Ainda sobre estes extremos colorais, da calmaria para a sensação de periculosidade iminente, outras cenas do longa possuem tal enlace como, por exemplo, toda a sequência de espancamento do camarim, alguns quadros abertos no elevador e, também, quando Bernie e Nino estão em evidência no longa, principalmente nas explosões de violência do primeiro.
Ao voltarmos a atenção ao personagem de Gosling, temos alguns traços de sua persona que podem ser colocados em relevo a partir do que Drive nos oferece imageticamente. Um dos pontos interessentes sobre este indivíduo é seu aspecto fugidio, já que não sabemos de seu passado, ou qual é sua verdadeira situação presente. O fato do mesmo trabalhar como dublê reforça a sua falta de definição em meio à sociedade, ou seja, suas “máscaras sociais” são concretas e o semblante utilizado em meio ao seu dia-a-dia é inócuo e indefinível, aqui temos inspirações em outras obras como Quero ser John Malkovich (1999) e Abre los Ojos (1997), nas quais esta falta de identificação do habitante com o seu meio é amplamente explorado.
As sequências do personagem à noite sempre são carregadas de tensão e melancolia, de modo a reforçar seu aspecto ignoto no que tange às emoções, não apenas com outras pessoas, mas consigo próprio. A única ponte de dialogia, mesmo assim restrita, é com seu mentor e chefe da oficina Shannon (Cranston) antes, é claro, de sermos imergidos em sua infiltração na família de Irene.
Novamente, além do trabalho de ambientação, da direção de arte aos figurinos, existe o acompanhamento sonoro à esta personalidade taciturna e alerta, em faixas como Tick of the Clock (Chromatics) e, assim como as outras canções retrowaves citadas, Nightcall (Kavinsky).
Em meio às características do longa, que engendram o comportamento do personagem principal, toda a imersão em um cenário oitentista, neo-noir e de retrofuturismo musical contribuem para dar ao filme uma peculiaridade de desenvolvimento, seja nos momentos mais brandos ou naqueles mais chocantes e de embate do que se apresenta na tela para o que realmente se desdobra segundos depois, momentos esses, definidores do peso dramático de Drive.
Violência em sua essência
Utilizar a violência como ponto de balizamento de uma obra fílmica não é algo novo e, mais recentemente, tem sido objeto de fascinação de diretores como Martin Scorcese, Quentin Tarantino, Antoine Fuqua, Oliver Stone, Gaspar Noé, dentre outros. Portanto, o que Fefn faz em Drive segue esta tendência nos atos de sua película, variando das cores à composição dos cenários, dos diálogos aos momentos de silêncio.
E, novamente, é preciso voltarmos nossa atenção ao personagem de Ryan Gosling, porque é a partir dele que toda a discursividade da violência como escopo de desenvolvimento do longa ocorre. A reflexão posta é de que há em cada um dos elementos que compõem este intrigante elemento, as membranas e camadas de alguém já habituado com a deteriorização das finas e frágeis relações humanas por explosões de fúria.
No entanto, é preciso ressaltar os extremos destas relações e detalhes, sua especialidade com carros lhe garante um emprego diário, que em nada sugere seu real e exímio ofício noturno, e numa das cenas de perseguição do início do longa, observamos que não há apenas o apelo à velocidade, mas também aos momentos de espera e parcimônia na escolha da próxima direção a ser tomada. Outro exemplo é a jaqueta utilizada no seu ofício obscuro e noturno pelas ruas da metrópole desconhecida, a mesma a aquecer o jovem Benicio, em uma das tomadas mais belas de todo o filme.
Mais do que estas dialogias e rimas cenográficas limítrofes, os silêncios fazem parte desta escalada rumo à violência extrema. Neste caso, os personagens de Gosling, Perlman e Brooks, representam, como uma clava ao espectador, os estopins incontroláveis da violência durante Drive, seja em tortura dos seus desafetos ou na execução de seus desafetos.
No caso do motorista sem nome, o seu olhar não é de surpresa ou temor nestas explosões de ira, mas de um pesar pré-rebentações destes atos, por sugerir, de antemão, a resolução dos eventos que cada uma das suas ações levaram a confluir para aquele desfecho, da mão quebrada do ascecla dos mafiosos, ao frio assassinato de outro capanga na cena do elevador. O seu dedo em riste para a ameaça nos coloca na posição daqueles que cruzam seu caminho, sugerindo que a verdadeira arma é o próprio indivíduo, independente do que lhe vier à mão para fazê-lo, sejam os dedos nus, um martelo, revólver ou volante do seu carro.
E, este saber até onde seu tormento o levará aparece pelas palavras do próprio personagem: “Now, you just got a little boy’s father killed. And you almost got us killed. And now you’re lying to me. So how about this? From now on, every word out of your mouth is the truth. Or I’m going to hurt you.” (Driver), e assim temos a secura e noção do quão extremo pode ser aquele homem de fala branda, mas imperativa antes de ter uma mão lacerada ou crânio esmagado. Muitas vezes, em cenas posteriores, o seu olhar calmo e a interação limitada com os outros indivíduos da cidade se reestabelecem, no retorno eterno a sua condição dúplice em meio aquele mundo que tansita e habita.
Um herói humano, real demais
Um dos maiores dilemas da posição heroica, seja em qual mídia for, é a relação entre os atos e decisões realizadas e, inevitavelmente, as consequências e desencadeamentos que as mesmas podem vir a causar\resultar. Em Drive, esta relação extrema, inerente e paradoxal, também é explorada, seguindo justamente os seus pontos de maior alcance simbólico, na figura do personagem de Gosling, como já exposto anteriormente. O dilema da ação em um sistema fechado, ao qual sua presença ainda não estava prevista, pode resultar em uma cadeira de eventos desenfreada rumo ao desiquilíbrio cada vez mais profundo e descontrolado. Essa é a situação vivida pelos personagens da obra de Refn.
Este exercício de desenvolvimento do roteiro com a presença de um decaimento escatológico, rumo ao um cenário caótico inevitável pode ser observado em outras obras recentes como Crash (2004), Collateral (2004), Oldboy (2003), Paradise Now (2005), 21 Grams (2003), No country for a old man (2007), Carnage (2011), Prisoners (2013), Nightcrawler (2014), e clássicos como Taxi Driver (1976) e El Ángel Exterminador (1962). Coloca-se no epicentro de diferenciação, no caso de Drive, o fato de existir um apenas personagem centralizador de todos os eventos do filme, no caso o motorista interpretado por Ryan Gosling.
Ao fazermos uma rememoração do seu percurso ao longo da película, é possível observar a maneira cautelosa e reticente em sua fala, decisões, olhares, sempre analisando, calmamente, todo o seu meio circundante. Inevitavelmente, a partir do momento em que inicia sua interação com estes elementos, que vão do trabalho às relações familiares de Irene, a espiral de eventos converge ao deterioramento de todo aquele cenário e, mais uma vez, ao seu isolamento em outro lugar desconhecido, no qual sua sina continuará, muito provavelmente em ruas doutras cidades.
“Be a human being, and a real hero
Back against the wall and odds
With the strength of a will and a cause
Your pursuits are called outstanding
You’re emotionally complex
Against the grain of dystopic claims
Not the thoughts your actions entertain
And you, have proved, to be”
(A Real Hero, Electric Youth)
FICHA TÉCNICA
DRIVE
Diretor: Nicolas Winding Refn
Elenco: Ryan Gosling, Carey Mulligan, Bryan Cranston
Pais: EUA
Ano: 2012
Classificação: 16