Com uma indicação ao OSCAR:
Melhor Maquiagem e Cabelo
Esquadrão Suicida (Suicide Squad, 2016), um dos filmes mais hypados dos últimos meses, consiste na reunião dos vilões mais perigosos do universo DC em missões perigosas, onde suas vidas não têm muita importância em relação ao objetivo da tarefa que devem executar. Seus personagens, todos fora da lei, não querem salvar a humanidade ou o planeta, se o fazem é porque são obrigados.
Essa adesão do grande público por personagens dúbios com características destoantes com relação à ética e a moral vigente não é um fato isolado, mas uma tendência, vide os sucessos das séries Dexter (2006-2013) e Breaking Bad (2008-2013) e do filme Deadpool (2006). Se há uma aderência maior pelo público é por que existe uma identificação inconsciente com a história contada, os dramas, medos e desafios que os personagens carregam. Assim, é mais cool o público identificar-se com um anti-herói – que convive com seus defeitos e os usa na sua jornada – do que o herói – que sempre busca ir além do ser humano, para se tornar o super-humano.
Fonte: http://migre.me/w88EB
Arlequina
Entre tantos personagens, uma ganhou ares de protagonista à medida que o material publicitário do longa era liberado. Arlequina (Margot Robbie) se tornou a figura feminina mais popular do ano, desde a sua primeira aparição em 2015, no trailer do filme. Anarquista, ousada e forte, a garota de cabelos coloridos e jeito transloucado seduziu com seu corpo esbelto e roupas minúsculas a ala masculina, enquanto as adolescentes foram atraídas por sua – aparente – originalidade e coragem.
Mas ao analisar com detalhes a construção da personagem para os cinemas, temos na sua superfície um produto embalado propositadamente para reforçar fetiches condizentes com a nossa cultura patriarcal. Trocando em miúdos, Arlequina está mais para o reforço do machismo do que para qualquer sinal de empoderamento feminino. Como referência, uso para comparação Katniss, da franquia Jogos Vorazes (Hunger Games), figura cinematográfica feminina mais importante de 2015. Segue abaixo as imagens para melhor explicitar o contraste.
Fontes: http://zip.net/bhtFy3 e http://zip.net/bltDVM
O alívio do macho na guerra
Arlequina nasceu Harleen Frances Quinzel, criada especialmente para a série animada do Batman, é uma psiquiatra que cedeu sua racionalidade e sua vida ao Coringa, preso no Asilo Arkhan, até se tornar sua “companheira” fiel. Porém, essa transformação foi transposta para as telas superficialmente, o que basicamente assistimos é a regressão de uma mulher bonita, independente e de sucesso, em um objeto. Enquanto no filme a paixão pelo Coringa (um motivo por demais forte para enlouquecer mentes fracas) é o grande divisor de personalidade da Dr. Harleen Quinzel em Arlequina.
Na versão cinematográfica acrescentaram uma sessão de eletrochoque para ”formalizar” sua nova identidade. O encontro entre o sádico e o masoquista é explicito na cena que, subliminarmente, traz traços de BDSM (sadomasoquismo). Infelizmente, por causa deste detalhe, a Arlequina do desenho passa a ter mais nuances a serem destrinchadas do que sua versão em carne e osso, que se resume a alienação sentimental advinda, em partes, de um trauma físico.
Fonte: http://zip.net/bytFS9 e http://zip.net/bytFTb
Mas acredito que o maior ultraje a um personagem tão cativante quanto Arlequina, a ponto de ser inserida no rol fixo de vilões do Batman após uma curta participação, é sua delimitação como uma simples personagem Pin-up, inserida na trama com o único intuito de elevar a testosterona de um público majoritariamente masculino. O óbvio que reafirma modelos antigos com roupagem de moderno. Encontrar várias meninas se fantasiando tal qual a Arlequina dos cinemas, com o intuito de trazer transgressão para sua rede social ou alma é, no mínimo, incoerente quando historicamente isso já foi feito há décadas com a função de agradar homens e perpetuar sua fantasias.
Segundo matéria da revista Superinteressante o “Cabelo vintage, pele alva, batom vermelho e uma postura provocante, porém com algo de ingênuo, estão no manual da pin-up moderna”. E somar violência com sexo, esse último como válvula de escape, parece não ser nenhuma novidade se considerarmos o roteiro permeado de tiros e destruição do filme com o cenário a qual as pin-ups estavam exercendo sua função. “No começo, lugar de pin-up era na parede. Nos anos 40 e 50, era passatempo entre os soldados americanos pendurar (em inglês, pin-up) fotos de mulheres bonitas em seus alojamentos”. Como podemos ver, um retrocesso.
Fonte: http://zip.net/bbtFh6
A Arlequina propriedade
Adereços e a maquiagem pesada compõem a personagem. Tudo o que vemos no filme é como ela se coloca para o mundo, ou melhor, para o Coringa. No desenho, ela encarna o oposto feminino do seu amado, sua anima mal-resolvida, diria Jung. No longa, narra-se que ela passou uma temporada no circo quando fugiu com ele. Ao simplificar sua jornada, tiramos de cena uma característica de sua psicopatia para apresentarmos um projeto de, literalmente, uma palhaça. A graça da sua congênere advém da sua inteligência (ela é psiquiatra e atleta) somada a sua maneira distorcida de ver o mundo; no filme soa tudo muito vago, com suas ligações circenses.
Fonte: http://zip.net/bktFsc
Se a maquiagem e o (mini) uniforme já não seriam suficientes para a identificação imediata com sua fonte de amor, temos vários símbolos que vão dos descarados aos sutis para expor como um relacionamento pode ser alienante. Há a coleira onde está escrito o apelido do seu amado: Puddin (Pundizinho na versão tupiniquim) e uma jaqueta personalizada com os seguintes dizeres nas costas: “Property of joker”. Externamente, temos uma mulher anunciando na parte frontal e dorsal que é “propriedade” exclusiva de uma pessoa.
Outro detalhe peculiar: Arlequina não tem uma arma branca, arma de fogo (que precisa recarregar depois de usada – a libido personificada na bala) ou magia (característica que denotaria certo contato com seu inconsciente, algo explorado em outra personagem feminina). Ela tem um bastão como principal arma de defesa e ataque, que ninguém toca. O bastão, símbolo fálico nas mãos de uma mulher enlouquecidamente apaixonada, é a sua ilusão de proteção que a figura do Coringa proporciona em sua ausência, a força masculina, rígida, forte e viril em suas mãos.
E a virilidade é uma característica essencialmente masculina, para Arlequina. Mesmo em uma condição de vilã, ela não deixa de ser uma encarnação de uma princesa que almeja ser resgatada pelo seu príncipe encantado. Temos o encontro, o baile, a dança do casal, o passeio romântico, a separação dos mesmos por forças malignas (Batman), a redenção e o grande resgate. Para o filme, independente do nível de loucura que uma mulher se encontra, ela sempre vai almejar – pelo menos para o roteirista do filme – ser a donzela que precisa de ajuda ou que sonha ser dona de casa.
Fonte: http://zip.net/bstFGZ
“Coringa: Você morreria por mim?
Arlequina: Sim.
Coringa: Não, isso é fácil demais… Você viveria para mim?”
Arlequina e suas “vozes”
Como estamos falando de um personagem de animação, transposto para os quadrinhos e, agora, para os cinemas, temos transtornos de personalidade apresentados hiperbolicamente. Podemos observar traços, distúrbios, síndromes de forma didática e expositiva. Ressalto que sou mais simpático à análise em si da personagem, para encontrar o porquê do sintoma, sua razão de existir.
Em alguns momentos a identificação de alguma característica aparecerá de maneira superficial, por culpa da baixa qualidade do roteiro que não permite maiores reflexões, impossibilitando uma maior profundidade no diagnóstico. Devido a essa limitação, utilizaremos a condição indicada pela psiquiatra Katia Mecler, no seu livro Psicopatas do cotidiano (Leya, 2015) de que “basta que o indivíduo apresente um único traço, em grau tão levado que o torne prejudicial – em um ou mais setores da vida – para que o diagnóstico possa ser feito.” Maneira delicada para diagnosticar uma pessoa, mas que não fará tanta diferença aqui, já que se trata de um indivíduo ficcional.
Para uma observação mais psicanalítica, é preciso aguardar uma possível extensão do desenvolvimento da história da Arlequina em uma continuação para, sem inferências superficiais ou sobreposição do sintoma aquém do paciente, obter uma possível leitura mais profunda da sua psique.
Fonte: http://zip.net/bltDVN
O gatilho
É bem claro que o Coringa é o desencadeador de todo o investimento psíquico da Dra. Harley. E é a sua proximidade que determinará quais traços de psicopatias irão preponderar. A própria Margot Robbie, em entrevista ao site Omelete, buscou trazer isso na sua interpretação (tal sutileza foi aniquilada na edição final do filme). De acordo com ela, “essa é uma das coisas que mais gosto na personagem, sempre que ela está perto do Coringa ela é super submissa, muito frágil às vezes, mas quando está longe dele é uma pessoa independente, é impressionante que ela possa ser tão codependente de um homem. (…) É como um interruptor, se ele está perto, ela muda completamente, ele meio que consome os pensamentos dela. Eu a interpreto assim, como se fosse um interruptor, quando ele está lá ela é uma coisa, quando ele não está ela é uma coisa completamente diferente”.
Segundo Luana Dullius, um transtorno sempre traz outro a tiracolo. “Os pacientes que são diagnosticados com algum transtorno da personalidade de acordo com os critérios estabelecidos, não raramente, encaixam e satisfazem os critérios para outro tipo de transtorno da personalidade”, diz.
Assim, podemos identificar de maneira crescente, de acordo com DMS-V, uma Arlequina com Transtorno Obsessivo Dependente, Histriônico e Borderline.
Fonte: http://zip.net/bjtFkN
“Encontre algo que você ame,
e deixe que isso mate você:”
Arlequina
A Arlequina dependente
É inegável que a personagem em si tem personalidade e força, isso devido ao ambiente em que é obrigada a viver e as tarefas que tem que executar. Mas basta o Coringa aparecer que Arlequina comece a agir de maneira infantil e submissa. No filme percebemos os seguintes traços do Transtorno de Personalidade Dependente (TPD): a ida a extremos para obter carinho e amparo, raras manifestações de desacordo, para não perder apoio ou desaprovação, falta de iniciativa para começar novos projetos ou fazer coisas por conta própria, terceirização da responsabilidade sobre as principais áreas de sua vida a outras pessoas e busca urgente de outra relação como fonte de cuidado após o termino de um relacionamento íntimo. Como) exemplifica:
O dependente deixa claro seu sentimento de inferioridade em relação ao outro e considera um privilégio poder receber alguma atenção, ainda que se ache tão desprovido de qualidades. (MECLER, 2015, p. 205)
Coringa não a chama pelo nome, assobia. Atenta a todos os seus atributos físicos, ao mostrar o belo “objeto” que possui. Em uma das cenas ela recebe ordens como uma boneca e se comporta como tal, tudo para agradar seu “pudinzinho”.
Carente e inseguro, o indivíduo com essa faceta dedicará todo o seu tempo e sua energia a quem considerar importante em sua vida. Embora esse traço pareça fortemente associado às relações amorosas, o sujeito pode ser submisso em todos os aspectos da vida. (MECLER, 2015, p. 200)
E aí que nossa querida psicótica começa a se distanciar da sua faceta Dependente e agregar outros transtornos.
Fonte: http://migre.me/w88d1
“Não gostaram do meu show, foi? Bem, tentemos esse
então: ‘Quando os animais atacam pessoas que odeio!’
É uma comédia.”
Arlequina
A Arlequina estriônica
E aqui começamos a enxergar a Arlequina na transição entre a presença e a distância do Coringa. Observamos os seguintes traços do Transtorno de Personalidade Histriônico (TPH) nela: comportamento sexualmente sedutor e exagerado, uso excessivo da aparência física para atrair olhares, dramatização das emoções, mudanças emocionais rápidas e personalidade sugestionável. Pessoas com traços histriônicos são, segundo Mecler (2015, p. 162)
“[…] hábeis em seduzir com sua atitude e aparência. Se preciso, usam a sensualidade como arma. Em geral, têm um humor peculiar, o que lhes pode garantir muitos aplausos, gargalhadas e curtidas, seja na vida real, seja nas redes sociais.”
Toda a ação da personagem é uma dramatização para ser e permanecer no centro das atenções. Seja em uma boate, na prisão ou em um tiroteio. No entanto, nem o histriônico percebe que está interpretando, para ele, a vida é performance.
Fonte: http://migre.me/w88eW
“Você acha que me mete medo?
Eu já conheci o medo, e você não tem o sorriso dele!”
Arlequina
A Arlequina limítrofe
Aqueles que usam somente o DMS-V como referência para identificação de psicopatias, basta encontrar apenas cinco traços para diagnosticar um indivíduo com algum transtorno de personalidade. Dito isso, poderíamos renomear Arlequina com o nome Borderline ou Transtorno de Personalidade Limítrofe (TPL). As características que identificam o TPL são:
1) Esforços frenéticos de evitar um abandono real ou imaginário, sem a inclusão de um comportamento suicida ou auto mutilante;
2) Padrão de relacionamentos instáveis e intensos, oscilando entre extremos de idealização e desprezo;
3) Distúrbio da identidade: instabilidade acentuada e resistente da auto-imagem ou do sentimento de self;
4) Impulsividade em pelo menos duas áreas prejudiciais a si mesmo, como na sexualidade, em gastos financeiros, na direção, no abuso de substancias etc. Prejudicam a si próprios quando um objetivo está quase sendo alcançado;
5) Ameaças, comportamentos ou gestos suicidas ou auto mutilante;
6) Instabilidade afetiva devido a reatividade do humor;
7) Sentimento crônico de vazio;
8) Raiva intensa e inadequada ou dificuldade em controlá-la;
9) Situações de estresse devido a um abandono real ou imaginado: ideação paranóide, sintomas dissociativos e psicóticos transitório.
São todos os traços elevados a enésima potência na personagem. Entretanto, alguns transtornos parecem acentuar ou amenizar outros. Por exemplo, a promiscuidade observada é relativa em Arlequina, influencia do TPD. O jeito doce e infantil, influenciado por um estado regressivo, maquia a raiva intensa presente na personagem, uma bomba relógio ambulante com o cronometro quebrado. Os gestos suicidas podem ter raízes mais profundas, vide que no desenho ela era ginasta e, após se formar, decidiu trabalhar no Asilo Arkhan, o centro psiquiátrico com os indivíduos mais perigosos de Gothan. Mas, se atermos aos fatos mostrados no filme, o medo é algo que não existe no seu dicionário. Não é à toa que a colocaram em um grupo chamado Esquadrão Suicida!
Fonte: http://migre.me/w88gg
Nos quadrinhos, a redenção
Reafirmo que a personagem Arlequina, na sua gênese, é uma das mais interessantes que compõem o rol dos vilões da cidade de Gothan – e uma das raras que conseguem ter um arco que leva a uma possível redenção. Nos gibis, a redescoberta e libertação de todas as “vozes” da Dra. Harleey Queen é uma caminhada tortuosa, a exemplo das histórias reais de mulheres que sofrem diverso abusos, sejam físicos ou/e psicológicos. Espera-se que, com o sucesso do personagem, os próximos roteiros procurem explorar esse lado mais dramático, e que haja possibilidades além do que um belo corpo e uma maquiagem podem proporcionar. Agora, só aguardar que essa complexidade ganhe as telas do cinema.
REFERÊNCIAS:
MECLER, Katia. Psicopatas do Cotidiano – como reconhecer, como conviver, como se proteger. Ed. Leya. São Paulo, 2016.
RISO, Walter. Amores de alto risco. Ed. L&PM. Porto Alegre, 2013.
BRIDI, Natalia. Por que todos amam Arlequina? Site: Omelete. [Consult. 22 Ago. 2016]. Disponível na internet < https://omelete.uol.com.br/filmes/artigo/esquadrao-suicida-por-que-todos-amam-arlequina/ >.
DULLIUS, Luana. Transtorno de personalidade borderline. Site: Universidade Federal do Rio Grande do Sul. [Consult. 20 Ago. 2016]. Disponível na internet < https://www.ufrgs.br/psicopatologia/wiki/index.php?title=Transtorno_da_Personalidade_Borderline >.
FICHA TÉCNICA DO FILME:
ESQUADRÃO SUICIDA
Diretor: David Ayer
Elenco: Margot Robbie, Will Smith, Jared Leto, Cara Delevingne
País: EUA
Ano: 2016
Classificação: 12