Jeremias da Turma da Mônica: reflexões sobre a negritude representada nas histórias em quadrinhos brasileira

Ao longo dos anos, com a intensificação das discussões sobre o racismo, diversos âmbitos da sociedade passaram a sofrer lentas modificações para contemplar as narrativas vinculadas à negritude. Nesse processo, o conceito de representatividade ganhou força, denotando a necessidade de que pessoas negras fossem incluídas em espaços de trabalho, cultura, lazer, mídia etc.

Essa demanda impulsionou, no âmbito do entretenimento, a criação de filmes, seriados e personagens voltados às raízes étnicas, culturais e religiosas da população negra. Isso, inevitavelmente, refletiu no processo criativo da série de histórias em quadrinhos Turma da Mônica, de Mauricio de Sousa, que, em 2017, introduziu uma personagem negra chamada Milena, que viria a assumir em algumas histórias o papel de protagonista.

Entretanto, apesar de ser recorrentemente referida como a primeira personagem negra da turma, há um outro, criado e desenvolvido por Maurício de Sousa antes mesmo dos protagonistas da turminha (Mônica, Cebolinha, Cascão e Magali). Trata-se de Jeremias, personagem inicialmente introduzido no ano de 1960, antes da própria criação da Turma da Mônica como hoje é conhecida.

Fonte: encurtador.com.br/sFI56

De acordo com Agostinho (2017), as primeiras aparições do personagem datam dos anos 1960.  Seu papel nas histórias era quase sempre de coadjuvante, e, ao longo dos anos, passou a ocupar o espaço de figurante. A caracterização inicial de Jeremias era feita com tinta nanquim, quando as histórias ainda eram impressas em preto e branco. Posteriormente, após a década de 1970, com a criação da Turma da Mônica e o advento da impressão colorida, o personagem seguia sendo retratado com a coloração em nanquim, o que, nas palavras do autor, configura o fenômeno do blackface, que expressa a exageração dos traços negros com o intuito de estereotipar ou até mesmo, de modo velado ou não, ridicularizá-los.

Ao longo de sua trajetória como personagem, Jeremias nunca havia apresentado uma identidade sólida. Suas aparições pareciam atender à necessidade de incluir um personagem negro na história, e comumente, em diferentes histórias, o personagem era retratado de diferentes formas, variando suas características e comportamentos, o que denotava a ausência de uma personalidade construída.

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Em uma história publicada em 1987, chamada Jeremim em O Príncipe que Veio da África, o personagem teve seu primeiro momento de protagonismo. A narrativa gira em torno do contexto histórico da escravidão, e posiciona o personagem como um príncipe africano levado para trabalhar como escravo. É um dos primeiros momentos da Turma da Mônica se apresentando como um veículo impactado pelos movimentos antirracistas, e nesse ponto, Jeremias era representado alternadamente com a cor nanquim ou em marrom, num movimento de ajuste do processo criativo das histórias, rumando às alterações suscitadas pela discussão racial.

Ao final da década de 1980, o tom de pele de Jeremias passou a ser retratado apenas na cor marrom, sem alternâncias com o nanquim, e assim permaneceu até hoje. Apesar de nítidas evoluções na caracterização e utilização do personagem nas histórias, Jeremias seguiu sendo ignorado em muitos contextos, e utilizado em outros em que precisava-se de um personagem negro. Em 2009, uma historinha chegou a retratá-lo como presidente do clubinho da turma, aludindo ao contexto histórico vigente na época, com a eleição de Barack Obama para presidente dos Estados Unidos.

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Participando em diferentes produções de Mauricio de Sousa, o personagem poucas vezes chegou a ser desenvolvido claramente. É possível problematizar essa situação, partindo do pressuposto de que as criações culturais brasileiras muito foram e ainda são impactadas pelas intercorrências explícitas e veladas do racismo, o que reflete diretamente na construção e representação de personagens negros.

Entretanto, apesar do processo de invisibilização do personagem, reforçado pela introdução de Milena com a premissa de ser a primeira personagem negra da turma, há uma produção da Maurício de Sousa Produções (MSP), em formato de Graphic Novel, que merece atenção por abordar o personagem Jeremias de um modo até então jamais feito. Trata-se de Jeremias – Pele, lançada em abril de 2018, que o retrata como protagonista de uma história de luta contra o racismo. A graphic novel, pela qualidade e seriedade com que abordou a temática, chegou a ganhar o Prêmio Jabuti de Histórias em Quadrinhos.

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Levando em consideração a importância do conceito de representatividade, e pensando no público alvo dos gibis da Turma da Mônica, é imprescindível que personagens como Jeremias e Milena ganhem cada vez mais espaço e desenvolvimento. Para isso, é importante também que tais personagens não tenham suas narrativas circunscritas à questão racial, como se suas personalidades fossem definidas exclusivamente por isso, mas que cada vez mais sejam reconhecidos por suas paixões, aspirações, conquistas e particularidades, colaborando não só com a disseminação da representatividade, mas também com o rompimento de estereótipos vinculados à negritude que muitas vezes são refletidos nós âmbitos culturais.

Referência:

AGOSTINHO, Elbert de Oliveira. Que “negro” é esse nas histórias em quadrinhos?: uma análise sobre o Jeremias de Maurício de Sousa. Rio de Janeiro, fevereiro de 2017.