Proteínas e sua relação com a esquizofrenia, a deficiência intelectual e a síndrome do X frágil.
Em nossas aulas de química e biologia no ensino médio, ensinaram-nos que as proteínas executam a maior parte das funções das células. Logo, mesmo esquecendo grande parte de todas as teorias estudadas em relação a isso, guardamos um fato importante: a relevância desta substância química. Como explicado no excelente livro sobre a história do Gene de Siddhartha Mukherjee [1], as células só existem graças às reações químicas. Considerando essa premissa, quando durante a respiração o açúcar combina-se quimicamente ao oxigênio para produzir dióxido de carbono e energia, são as proteínas que induzem e controlam essas reações químicas fundamentais das células. E acrescenta:
A vida pode ser química, mas é uma circunstância especial de química. Organismos existem não graças a reações que são possíveis, mas a reações que estão nos limites do possível. Se a reatividade fosse excessiva, entraríamos em combustão espontânea. Se fosse moderada demais, resfriaríamos até a morte. Proteínas possibilitam essas reações nos limites do possível e nos permitem viver na fronteira da entropia química – patinando de modo perigoso, mas sem jamais cair. [1]
Um estudo publicado na revista Proceedings of National Academy of Sciences [2], de pesquisadores do Picower Institute for Learning e Memory do MIT, baseado em experimentos e observações de duas proteínas, lança luz sobre os mecanismos moleculares da memória e como isso pode melhorar a compreensão de deficiências cognitivas, além de distúrbios como a esquizofrenia e a síndrome do X frágil (mais informações em [3]). Isso reforça a premissa de outras pesquisas de que as proteínas têm efeitos extraordinários no processamento de informação. Para entender esse complexo estado de processamento de informação, voltamos ao livro de Mukherjee [1], em que ele aponta que “um gene ‘atua’ codificando informação para construir uma proteína, e a proteína concretiza a forma ou função do organismo”, conforme ilustrado a seguir:
Essa capacidade da proteína de transformar forma em função permite que estas executem diversas funções nas células Ou seja, podem assumir uma forma globular e capacitar reações químicas – isto é, enzimas, podem ligar substâncias coloridas e tornar-se pigmentos no olho ou em uma flor, podem, especialmente, especificar como uma célula nervosa se comunica com outra célula nervosa e, assim, se tornam árbitros de cognição e do desenvolvimento neural normal [1]. Esse último exemplo é onde está situada a descoberta apontada neste texto.
A pesquisa apresentada em [2] vai além das descobertas realizadas por neurocientistas há algum tempo, que resultaram no entendimento de que a criação de novas memórias implica necessariamente na criação de novas proteínas. Segundo o pesquisador Weifeng Xu, professor assistente do Departamento de Ciências Cerebrais e Cognitivas do MIT e autor sênior do estudo em questão [4], ainda há várias camadas de perguntas, por exemplo: “Quão rápido é a síntese de proteínas necessária para a codificação da memória? Quais alvos ou sínteses de proteínas se correlacionam com o processo de codificação? E esses alvos são necessários para a codificação? [4]
Em um esforço de responder aos questionamentos iniciais da pesquisa, a equipe de Xu, conforme apresentado em [2], conduziu experimentos em camundongos em uma região do cérebro denominada hipocampo, considerada a principal sede da memória. Para elucidar como foram feitos os experimentos, é importante entender que “a produção de proteínas associada à formação de novas memórias ocorre em locais chamados sinapses, onde os neurônios se conectam em circuitos com outros neurônios e isso pode ser impulsionado pela atividade neural desencadeada por eventos específicos, como encontrar um novo local” [4]. Basicamente, o experimento foi realizado a partir do seguinte raciocínio:
Quando ocorre a memória de uma nova experiência, um novo padrão de conexões se forma entre os neurônios. Novas conexões podem ser feitas, enquanto as existentes são fortalecidas e outras, enfraquecidas. Sabe-se que isso requer um amplo suprimento de novas proteínas. Assim, a atividade neural associada a uma nova experiência, como a entrada em um novo local, faz com que as células do cérebro aumentem a produção de proteínas [5].
Segundo [5], os pesquisadores descobriram que a formação da memória está associada a um aumento singular nos níveis de mRNA (RNA mensageiro) do gene Ngrn, que codifica uma proteína chamada neurogranina, que foi ligada pela primeira vez à formação da memória em 2017. Para um entendimento mais didático de como um gene codifica uma proteína, três fluxos de informações são apresentados a seguir. São três formas de entender uma mesma sequência e foram retiradas (e adaptadas) do livro O Gene [1]:
Nas palavras de Mukherjee [1], “o DNA fornece instruções para construir o RNA. O RNA fornece as instruções para construir proteínas. Por fim, as proteínas ensejam a estrutura e a função, dando vida aos genes”.
Os pesquisadores observaram que a formação de memórias relacionadas à experiência parece depender da rápida produção de altos níveis de neurogranina, mas em investigações posteriores foi revelada uma outra proteína, chamada de FMRP. Segundo [5], “o FMRP interage com o mRNA da neurogranina, permitindo que ele retransmita suas instruções de produção de proteína.” Assim, quando o gene para a FMRP foi inativado, os ratos tiveram dificuldade em formar novas memórias. As proteínas que foram evidenciadas nesse experimento, neurogranina (NRGN) e FMRP, rapidamente foram associadas a questões relacionadas a alguns distúrbios. Uma síntese das descobertas está apresentada a seguir [4]:
De fato, anormalidades em ambas as proteínas têm sido associadas a distúrbios neuropsiquiátricos e de neurodesenvolvimento humanos – FMRP significa “Proteína do Retardo Mental do X Frágil” porque é central para a condição genética síndrome do X frágil, que especialmente quando apresentada em meninos possui alguns traços que remetem ao espectro do autismo; e estudos anteriores ligaram a neurogranina à esquizofrenia e à deficiência intelectual. [4]
Para os pesquisadores, “este estudo é parte de um esforço contínuo em experiências no laboratório para elucidar a maquinaria molecular necessária para sintonizar a transmissão sináptica crítica para a cognição” [2]. Logo, mais do que fornecer insights sobre como o cérebro se lembra de novos lugares e como as proteínas são fundamentais na formação da memória, essa pesquisa mostrou novos caminhos sobre como os contextos envolvendo essas duas proteínas em outras partes do cérebro, como o córtex frontal, podem prejudicar a cognição no contexto desses distúrbios.
Para lidar com questões tão complexas, especialmente quando se trata dos códigos informacionais que fornecem a base de determinadas patologias ou elucidam questões relacionadas a como o cérebro guarda (ou esquece) nossas vivências, entender entre tantas possibilidades como uma variável se comporta, é uma grande vitória. Mas, voltando à pergunta que deu título a esse texto, “memórias são feitas de proteínas?”, em nosso cérebro, sim, mas existem porque ocorreu um acontecimento que a gerou. O contexto nos afeta, são estímulos para despertar todo o emaranhado de informações químicas em nossa mente. Se por um lado a ciência nos mostra factualmente que somos um complexo mecanismo de reações químicas, uma extraordinária máquina de processamento de informações, por outro a memória é evidenciada no cerne da natureza complexa da nossa humanidade, mostrando-nos que somos aquilo que vivenciamos, sentimos ou imaginamos, mas também, o que nossos mecanismos de defesa sabiamente nos permitem esquecer.
Referências:
[1] Siddhartha Mukherjee. O Gene: uma história íntima. Tradução: Laura Teixeira Motta. 1ª. Edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
[2] J. Jones, Sebastian Templet, Khaled Zemoura, Bozena Kuzniewska, Franciso X. Pena, Hongik Hwang, Ding J. Lei, Henny Haensgen, Shannon Nguyen, Christopher Saenz, Michael Lewis, Magdalena Dziembowska, Weifeng Xu. “Rapid, experience-dependent translation of neurogranin enables memory encoding Kendrick”. Proceedings of the National Academy of Sciences Jun 2018, 115 (25) E5805-E5814; DOI: 10.1073/pnas.1716750115
[3] https://drauziovarella.uol.com.br/doencas-e-sintomas/sindrome-do-x-fragil/
[4] https://picower.mit.edu/news/protein-pair-quickly-makes-memories-new-places#
[5] https://cosmosmagazine.com/biology/memories-are-made-of-this-two-proteins