Detainment: a história real de duas crianças acusadas de um crime brutal

Concorreu com  1 indicação ao OSCAR:

Melhor Curta-metragem

O curta-metragem indicado ao Oscar, “Detainment”, apresenta a história real de um dos mais perturbadores assassinatos do século XX. O curta de 30 minutos revive o assassinato de uma criança de 2 anos de idade, em 1993, tendo como base as transcrições das entrevistas que ocorreram entre a polícia e os meninos Robert Thompson e Jon Venables, ambos com 10 anos, logo após às suas prisões. Os meninos, ao final, foram condenados pela justiça inglesa pelo sequestro, tortura e assassinato de James Bulger. Os dois garotos atraíram a criança em um shopping center próximo a Liverpool, depois o torturaram, violaram e mataram.

O filme do diretor Vicent Lambe provocou a indignação de várias pessoas na Grã-Bretanha, inclusive foi feita uma petição, iniciada por Denise Fergus, a mãe do bebê assassinado, que contou com mais de cem mil assinaturas solicitando que o curta fosse retirado da lista do Oscar, o que não aconteceu. O diretor do filme disse à BBC , antes da indicação ao Oscar, que “o motivo pelo qual o filme foi feito foi uma tentativa de buscar uma compreensão sobre como esses dois garotos de 10 anos puderam cometer um crime tão horrível, pois acho que, se não entendermos a causa disso, é provável que algo similar aconteça novamente no futuro” [1].

Para o diretor, ao adaptar quase 15 horas de entrevistas em um drama de 30 minutos, tem-se um breve vislumbre do que aconteceu durante o procedimento da entrevista. Segundo ele, tudo no filme é inteiramente factual, sem nenhum embelezamento. E acrescentou que “há certos eventos na história que são deixados intocados por um longo tempo e este é um deles. É um assunto extremamente sensível – de medo, desespero e tão horrível que muitas pessoas evitam absorver mais fatos sobre isso” [2].

Fonte: https://goo.gl/WKrYiR

Segundo artigo publicado em [3], casos de crianças (12 anos de idade ou ainda mais novas) que mataram outras crianças são extremamente raros.

David Finkelhor e Richard Ormrod, professores da Universidade de New Hampshire, em um estudo realizado para o Departamento de Justiça Juvenil e Prevenção da Delinquência (OJJDP), descobriram que os assassinatos de crianças cometidas por menores de 11 anos representam menos de 2% de todos assassinatos de crianças nos EUA Os casos também tendem a diferir significativamente, por isso as conclusões podem ser difíceis de serem feitas. Mas há algumas semelhanças que surgiram, esclarecendo um pouco mais sobre o perfil de quem, ainda bem jovem, comete esse tipo de crime. [3]

Algumas conclusões apresentadas nesses estudos mostram que as crianças que cometem o crime de assassinato, geralmente, foram severamente maltratadas ou negligenciadas, além de terem tido uma vida doméstica tumultuada. Para o psicólogo Terry M. Levy [3],

as crianças que têm sérios problemas de apego (que geralmente resultam de cuidados ineficazes) e uma história de abuso podem desenvolver comportamentos muito agressivos, assim como também podem ter dificuldades em controlar as emoções, o que pode levar a explosões impulsivas e violentas dirigidas a si ou aos outros.[3]

Segundo pesquisa realizada pelo cineasta em relação às origens das famílias dos dois meninos, suas personalidades e como funcionava a dinâmica em suas casas, ele relatou em entrevista que [2]: Jon veio de uma família de classe média, respeitável, seus pais estavam separados, mas conduziam juntos a educação do filho. Jon passava parte da semana com a mãe e a outra parte com o pai. Nessas pesquisas, foi apresentado que Jon era hiperativo e fazia brincadeiras um tanto violentas na escola. Ele conheceu Robert quando foi transferido de escola. Ambos haviam repetido de ano e começaram a estudar juntos. Já Robert fazia parte de uma família terrivelmente disfuncional. Seu pai era um homem abusivo, que bateu em sua mãe durante o tempo que ficou em casa e deixou a família quando Robert tinha 5 anos. Sua mãe tentou se suicidar com overdose de comprimidos, mas acabou recorrendo à bebida como meio de fuga. Em síntese, a família Thompson era um caos completo, seis filhos, uma mãe alcoólatra e um pai ausente. Enquanto Robert era agredido e espancado por seus irmãos mais velhos, seu comportamento refletia também na forma que tratava seus irmãos mais novos e vulneráveis, ou seja, espancando-os como era espancado.

Fonte: https://goo.gl/DLfT41

Enquanto Robert tem um tipo de contexto familiar que se assemelha aos perfis traçados de assassinos muito jovens, Jon aparentemente não tinha um ambiente que suscitasse tal falta de controle e violência. Em parte do tempo do interrogatório, conforme toda a documentação disponibilizada para domínio público, e como foi apresentado no filme, Jon se mostrava extremamente emotivo, angustiado. Enquanto foi possível, negou com toda veemência que havia cometido o crime, e fazia isso entre lágrimas, abraçando a mãe e até o investigador. Mas na medida em que sua culpa se tornava mais evidente, ele tentava mostrar que a ação de Robert tinha sido maior na consecução do crime. Robert, por sua vez, agia de forma mais fria, dura, tentava não demonstrar emoções, argumentava com mais facilidade e, também, insistiu em sua inocência. Quando as provas tornaram-se mais contundentes para a resolução do assassinato, um menino tentou responsabilizar o outro em relação às partes mais violentas do crime.

Fonte: https://goo.gl/BzcU8Y

É aterrador tentar entender como duas crianças espancaram de forma tão brutal e sem piedade um bebê e o deixou jogado em um trilho de trem para morrer. O corpo de James foi encontrado dois dias depois. “Um legista disse mais tarde que seus ferimentos eram tão intensos, que não tinha como dizer qual ‘golpe’ o matou, pois havia cerca de 42 ferimentos em seu corpo, além de ter sido atropelado por um trem” [4].

Esse caso provocou atenção internacional e desencadeou intensos debates sobre quais motivos eram capazes de gerar tamanha violência. Para alguns, não haviam motivos, os meninos tinham simplesmente nascido maus, só precisaram de um gatilho para despertar tais instintos maléficos. No entanto, não vimos de forma frequente crianças com impulso de matar ou mutilar, isso é raro, conforme pesquisas apresentadas em [3]. Então, quando ocorre a exceção, de quem é a culpa? Somente da criança? Ou da família, do contexto? Essa é a pergunta mais perturbadora, pois isso retira os impulsos ocultos do foco e traz à tona comportamentos violentos, abusivos, ausentes ou inadequados capazes de modificar ou extinguir a noção de empatia.

Para Katie Woodland, psicóloga do desenvolvimento com ênfase em criminologia, “nós nunca olhamos para trás e perguntamos ‘por que isso aconteceu?’ Há uma percepção criada há 25 anos de que esses garotos eram apenas maus. Nós, como sociedade, temos dificuldade em examinar esse caso horrível porque temos medo” [5]. E ainda acrescentou que:

“Sim, existe uma interação genética, sim, há muitos fatores, mas durante a infância, a responsabilidade da sociedade é garantir que as crianças cresçam bem. É mais seguro pensar em mim como mãe: não há como meus filhos crescerem dessa maneira, eles não são maus. Mas quando você recua e trabalha todas as pequenas coisas que aconteceram para levar a algo, como ofensas violentas ou falta de cuidados, você começa a se questionar.”[5]

Fonte: https://goo.gl/HKfLAA

Em 2016, a APA (American Psychological Association) publicou um estudo abrangente sobre a violência juvenil (disponível em [5]). Atos de violência são frequentemente influenciados por múltiplos fatores, assim análises em relação ao comportamento violento possuem grande complexidade. Uma síntese desse estudo foi realizada em [4] e é apresentada a seguir:

Pesquisadores descobriram que a influência da família desempenha um papel descomunal em crianças que cometem atos potencialmente violentos. Os pais que são autoritários, rejeitam seus filhos, cometem atos de violência doméstica, negligenciam seus filhos ou não monitoram seu comportamento, muitas vezes têm filhos que mostram sinais anteriores de comportamento violento. Crianças sem vidas familiares estáveis ​​podem ser violentas e têm maior probabilidade de ter abuso de substâncias e problemas de saúde mental. Além disso, a violência na mídia popular, o abuso de drogas, a rejeição social e a doença mental diagnosticada também podem desempenhar um papel na determinação do motivo pelo qual um ato violento foi cometido.

Quando o crime ocorreu, segundo Vicent Lambe, a mídia em geral, buscando refletir a indignação das pessoas, rotulou os meninos como “monstros “, “cria de Satanás” e “aberrações da natureza”. Para ele, o curta metragem mostra Jon e Robert, pela primeira vez, “não como os monstros malignos da imaginação popular, mas simplesmente como eles eram – dois garotos de dez anos que cometeram um crime horrendo e não sabem explicar o porquê”. E acrescentou que “o filme não teve a intenção de ser simpático aos meninos ou de dar desculpas de qualquer forma, mas ao dramatizar autenticamente as transcrições das entrevistas, talvez nos força a reconhecer o pior do potencial humano e ainda ver a humanidade” [2]. Para a psicóloga Katie Woodland, ao mostrar Jon e Robert como seres humanos e, portanto, complexos, o filme “abre um diálogo necessário para entender esse tipo de ofensa violenta e abominável”, e acrescenta “e isso nunca teve como propósito diminuir o dano em relação ao que eles causaram e como tais atos terríveis afetaram a família do bebê James, mas sim sobre o fato de que se não entendermos o porquê, não podemos melhorar” [5].

Robert Thompson e Jon Venables – imagens reais

Robert Thompson e Jon Venables foram os mais jovens assassinos condenados na Inglaterra, mas devido à sua idade, eles foram libertados da prisão quando completaram dezoito anos, em 2001. A partir desse ano, ficaram em liberdade condicional vitalícia e adotaram novas identidades. Jon quebrou sua liberdade condicional duas vezes (em 2010 e em 2017), em ambos os momentos porque a polícia encontrou fotos de pornografia infantil em seu computador [6]. Os últimos acontecimentos parecem indicar que Jon Venables terá problemas em relação ao seu comportamento inadequado e criminoso pelo resto de sua vida, e continuará preso pelos próximos 3 anos. Já Robert Thompson, que no interrogatório se mostrou mais frio e maduro para sua idade, vive no anonimato e nunca violou a condicional.

Duas crianças tomam uma decisão aos 10 anos de idade e modificam por completo suas vidas, a vida de suas famílias e, em especial, da família da vítima, pois todos os sonhos que os pais haviam tido em relação ao seu bebê foram brutalmente interrompidos. Para [4], a questão não é “se devem ou não ser perdoados, mas o que levou esses dois garotos a se transformarem em monstros”.

Crimes como esse tendem a desencadear pensamentos binários sobre a natureza do ser humano. É mais fácil acreditar que alguns já nasceram maus, pois isso nos liberta da reflexão sobre os corriqueiros atos que nos torna mais e mais insensíveis a dor do outro. Se o mal vem de uma conjunção genética, então não há o que discutir, o que refletir, o que mudar, apenas há o isolamento e o castigo para quem nasce assim, sem remorsos ou culpa. Humanizar alguém não é torná-lo bom, é entender, sobretudo, que o ser humano não está situado entre dois polos (bom ou mau), mas está em trânsito entre uma série de complexos fatores.

FICHA TÉCNICA DO FILME

DETAINMMENT

Título Original: Detainment 
Direção:
Vicent Lambe
Elenco: Ely Solan, Leon Hughes
Ano: 2018
Reino Unido
Drama, História

Referências:

[1] https://www.mercatornet.com/features/view/detainment-should-a-film-about-two-boy-murderers-have-been-made/22139

[2] https://www.thefourohfive.com/film/article/meet-vincent-lambe-director-of-detainment-the-award-winning-short-film-based-on-the-interrogations-in-the-1993-murder-of-james-bulger-154

[3] https://www.psychologytoday.com/intl/blog/talking-about-trauma/201502/children-who-kill-are-often-victims-too

[4] https://www.fatherly.com/love-money/detainment-oscars-parents-controversy/

[5] Bushman, B. J., Newman, K., Calvert, S. L., Downey, G., Dredze, M., Gottfredson, M., . . . Webster, D. W. (2016). Youth violence: What we know and what we need to know. American Psychologist, 71(1), 17-39. http://dx.doi.org/10.1037/a0039687 Disponível em: https://www.apa.org/pubs/journals/releases/amp-a0039687.pdf

[6] https://www.themarysue.com/short-film-james-bulger-criticism/

Doutora em Psicologia (PUC/GO). Mestre em Ciência da Computação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Especialista em Ciência da Computação pela UFSC, especialista em Informática Para Aplicações Empresariais pela ULBRA. Graduada em Processamento de Dados pela Universidade do Tocantins. Bacharel em Psicologia pelo CEULP/ULBRA. Coordenadora e professora dos cursos de Sistemas de Informação e Ciência da Computação do CEULP/ULBRA.