Metaverso: vilão, mocinho ou bode expiatório?

Em meados de 2021 a empresa de tecnologia até então chamada Facebook passava por um dos maiores processos judiciário por ela enfrentados[1], porém coincidentemente – ou não – no dia de um importante testemunho da Ex-funcionária Sophie Zhang, o CEO da Facebook, Mark Zuckerberg, anuncia os planos para o futuro da empresa e da internet. Esse anúncio teve relação com o termo ‘metaverso’, que para muitos antes era desconhecido e para outros não passava de ficção científica, mas apresentado por um dos perfis mais conhecidos atualmente quando o assunto é tecnologia e internet, tornou-se plausível e tangível.

Desde então muito tem se falado e, sobretudo, se especulado a respeito do assunto. Os otimistas – uma pequena ilha no mar de pessimistas – acreditam que será uma forma magnífica de interação virtual. Assim, espera-se que a aplicação do conceito do metaverso derrubará as ruínas ainda existentes das muralhas geográficas que persistiram após o avanço das formas de comunicação e trará mais possibilidades para tudo que já é virtual ter uma experiência de uso ainda mais próxima da vida off-line.

Alguns mais pessimistas temem que o metaverso seja o primeiro passo para iniciar-se a Matrix dos Wachowskis[1] e que a vida fora da rede está ameaçada de extinção, atribuindo o surgimento desse mundo virtual a uma série de possíveis problemas que afetarão a sociedade e seu comportamento. Já outros – uma pequena praia na ilha dos otimistas banhada pelas águas do mar dos pessimistas – apontam as atuais limitações da aplicação do conceito, os prós, os contras e o quanto o anúncio da empresa, agora chamada Meta, trouxe mais perguntas que respostas.

Não se atendo a nenhum dos três grupos citados acima, esse artigo navega para águas mais distantes, porém antes é necessário um panorama do que é o metaverso. O termo ‘Metaverso’ foi criado por Neal Stevenson e teve sua primeira aparição na sua obra de ficção científica, Snow Crash publicada em 1992 e a ideia de um mundo criado por computação gráfica onde o ser humano poderia ter uma imersão próxima à realidade foi tratado em muitas outras obras de ficção [2], como o famoso filme Matrix.

O Metaverso fora da ficção científica seria – ou será – uma nova forma da internet como se tem hoje, onde tecnologias como da Realidade Virtual – quando o indivíduo usa de dispositivos como óculos e fones de ouvidos capazes de apresentar um cenário menos ou mais interativo em 3D, bloqueando a visão do que está além dos dispositivos – e a Realidade Aumentada – quando o indivíduo usa dispositivos que inserem elementos virtuais no mundo real, acrescentando de forma menos ou mais interativa informações à cena real que o indivíduo está sem bloquear sua visão – para navegar pela rede, onde cada usuário é representado por um avatar em 3D.

A proposta para o desenvolvimento do Metaverso traz um manifesto com algumas regras que essa implementação deve seguir. A primeira regra é que deve existir apenas um metaverso, ou seja, nada de cada companhia criar seu próprio metaverso desconectado de outros ‘universos digitais particulares’. Esse manifesto inclui ainda outros princípios como de que o metaverso deve ser aberto a todos e coletivamente controlado[2]. Em uma visão mais ilustrativa, o metaverso poderia ser como uma versão aprimorada do jogo Second Life[3] onde empresas, universidades, lojas e tudo mais teriam suas versões virtuais acessíveis a todos os usuários acessarem dos mais variados tipos de dispositivos usando da Realidade Virtual ou Aumentada.

Com todas as especulações e dúvidas que vêm surgindo desde que o Metaverso virou um assunto em alta na mídia, muitos chamam a atenção para o quanto uma imersão numa realidade tão próxima do mundo real poderia causar para a humanidade a médio e longo prazo. Preocupações fundamentadas, uma vez que as tecnologias de Realidade Virtual e de Realidade Aumentada já apresentam certa nocividade para os usuários a curto prazo e as possibilidades de riscos à saúde física, mental e emocional só aumentam com o tempo de exposição [4].

Fonte: encurtador.com.br/fqtCE

Pautas como a perda de capacidade de se relacionar com pessoas no mundo real, falta de empatia após longa exposição a conteúdos de violência e a probabilidade de passem a preferir a vida virtual em vez da vida off-line vêm sendo frequentemente associadas ao Metaverso desde então e o futuro da humanidade é questionado à luz do  avanço da tecnologia para os próximos anos.

Mas atribuir todos esses riscos e questionamentos à uma tecnologia futura não seria uma negligência à atual situação que a sociedade já se encontra? O número de usuários ativos em redes sociais em 2022 chegou perto da marca de 5 bilhões [5], mais da metade do planeta tem e acessa regularmente ao menos uma rede social e uma nova forma de interagir e se comunicar não é mais um futuro, porém já está presente em nossos bolsos há algum tempo.

Antes do surgimento e popularização dos smartphones, as pessoas utilizavam em grande maioria computadores domésticos chamados de desktops para acessar a internet e entrar no “metaverso 2D”. As horas que se passavam conectados às redes sociais como o Orkut e chats como o MSN Messenger eram limitadas por alguns fatores, como a necessidade de se estar em casa, à espera da sua vez de utilizar o computador que muitas vezes era compartilhado pela família. Mas com o avanço tecnológico e o advento dos smartphones esses fatores foram derrubados.

Não será necessário esperar que o Metaverso vire uma realidade para que se tenha pessoas que sustentem uma segunda vida no mundo virtual, as redes sociais já são byte após byte alimentadas de uma realidade alternativa por seus usuários. Pessoas que publicam uma imagem, um comportamento ou até mesmo um estilo de vida que só existem no virtual estão presentes em famosas redes sociais como o Instagram.

O filósofo e sociólogo polonês Zygmunt Bauman já trazia alertas sobre o uso das redes sociais e da efemeridade das relações ali construídas[6]. Um indivíduo acostumado com o imediatismo e com o excesso de conteúdo de entretenimento proporcionado pelas redes e mídias digitais enfraquecem o impulso do empenhar esforço na construção de relações no mundo online [5].  Uma vez se pode escolher quem se “é” no mundo virtual, o internauta pode construir uma imagem com filtros para mostrar aos seus espectadores, fazendo assim sua vida um palco para todos e para ninguém de uma encenação que pode ser mais atrativa para si mesmo que a vida nos bastidores offline. Nas palavras de Bauman [8]: “A internet e o Facebook nos tranquilizam e nos dão a sensação de proteção e abrigo, afastando o medo inconsciente de sermos abandonados. Na verdade, muitas vezes você está cercado de pessoas tão solitárias quanto você”. Sobre essa perspectiva fica o questionamento do porquê a preocupação com o impacto no comportamento humano causado pela tecnologia está, nos últimos anos, sendo atribuído – em grande parte – a um cenário futuro e a uma tecnologia ainda não implementada quando esses questionamentos eram feitos antes voltados às atuais formas de acesso que temos ao mundo virtual. Deveria ser considerado o fato da empresa que criou todo esse alvoroço ao redor do termo Metaverso ser a mesma empresa que estava sendo acusada de negligenciar a saúde emocional de usuários adolescentes e de ter conhecimento de algoritmos tendenciosos maléficos aos usuários das redes sociais por ela controladas, Facebook e Instagram?

Fonte: encurtador.com.br/hnwB4

São indagações aqui levantadas – e não respondidas – não com a intenção de guiar o leitor para um caminho conspiratório, mas trazer uma nova face para esse prisma ainda opaco. Discutir o futuro da sociedade é inerente a discutir o avanço tecnológico, uma vez que são indissociáveis, enquanto o avanço tecnológico é indissociável ao grande valor monetário que o setor movimenta.

Nesse emaranhado de interesses, os prós e contras do Metaverso parecem se diluir e fundem-se aos prós e contra da sociedade atual, onde se vive em universos criados para serem palcos da vaidade e da carência de algo que supra o desejo imediatista[5]. Até que ponto a tecnologia pode ser culpada pelo comportamento humano? Até que ponto a tecnologia nos corrompe ou somos nós que a corrompemos? Talvez a resposta esteja na pergunta feita por Marguerite Duras[7], “Por que algumas pessoas têm necessidade de viver duas vezes? Uma vez quando vivem, e outra quando escrevem? E por que esta segunda vez é mais importante que a primeira?”.

Sendo a tecnologia ou a natureza humana o responsável, a sociedade está cada dia mais líquida e tem se liquidado cada vez mais nas redes sociais. Como parar o avanço da tecnologia não é plausível e tão pouco cogitado por esse artigo, a forma de prevenir que a vida online seja nociva aos usuários é através da educação. Um cuidado em preparar a mente dos internautas para filtrar o bombardeio de informações deve ser tomado, sobretudo quando se pensa nas próximas gerações.

O uso da internet já passou de algo esporádico e recreativo, o humano demasiadamente tecnológico tem de crescer sendo educado para os dois mundos, o real e o virtual – seja ele um possível metaverso ou um smartphone com acesso à internet e esse processo de preparação está ao menos 20 anos atrasado.

Observação: As imagens presentes neste artigo foram retiradas de séries de animação Futurama e Os Simpsons.

Referências

[1] HAO, Karen. O denunciante do Facebook diz que seus algoritmos são perigosos. Eis o motivo. In: HAO, Karen. O denunciante do Facebook diz que seus algoritmos são perigosos. Eis o motivo. Https://www.technologyreview.com/2021/10/05/1036519/facebook-whistleblower-frances-haugen-algorithms/: Karen Hao, 5 out. 2021.

[2] MYSTAKIDIS, S. Metaverse. Encyclopedia, v. 2, n. 1, p. 486–497, 10 fev. 2022. Disponível em: https://doi.org/10.3390/encyclopedia2010031. Acesso em: 04 dez. 2022.

[3] GARCIA, M. CENAS DA VIDA VIRTUAL: Amor, Corpo E Subjetividade Numa Sociedade Do Consumo E Do Entretenimento. ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA E MARKETING – ESPM/SP: [s.n.].  Disponível em: https://tede2.espm.br/bitstream/tede/213/2/Margarete%20S%20Mendes%20Garcia.pdf . Acesso em: 04 dez. 2022.

[4] SLATER, M. et al. The Ethics of Realism in Virtual and Augmented Reality. Frontiers in Virtual Reality, v. 1, 3 mar. 2020.

Disponível em: https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/frvir.2020.00001 . Acesso em: 04 dez. 2022.

[5] Mundo se aproxima da marca de 5 bilhões de usuários de internet. Disponível em: <https://www.insper.edu.br/noticias/mundo-se-aproxima-da-marca-de-5-bilhoes-de-usuarios-de-internet-63-da-populacao/>.

[6] RABELO, E. M. S. Por uma crítica da fluidez moderna, segundo Bauman e Kierkegaard, através das redes sociais. Revista Húmus, [S. l.], v. 3, n. 7, 2013. Disponível em: http://periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/revistahumus/article/view/1481. Acesso em: 4 dez. 2022.

[7] Entrevista concedida a Revista Veja em 17 de julho de 1985

[8] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2001.

Observação: artigo desenvolvido na disciplina “Tecnologias Criativas” do Programa Extensionista Interdisciplinar “Tecnologias para a Vida” dos cursos de Ciência da Computação, Sistemas de Informação e Engenharia de Software da Ulbra Palmas.

[1] Wachowskis é o nome coletivo para se referir às irmãs Lilly Wachowski e Lana Wachowski, diretoras e produtoras do sucesso de bilheteria Matrix, lançado em 1999.