Nesse verdadeiro tratado sobre a solidão no espaço, “tabu” e “reciclagem” são conceitos-chave para entender High Life.
Uma nave em algum lugar no espaço profundo, para além do sistema solar, ruma a 99% da velocidade da luz na direção de um buraco negro. Um homem dedica-se a cuidar da sua pequena bebê, em meio aos corredores escuros e um desordenado jardim de onde tira alimentação e oxigênio. Como pararam ali? De quem são os cadáveres mantidos em uma câmara criogênica? Quais os efeitos da viagem na velocidade da luz em uma tripulação perdida no vazio em uma missão potencialmente suicida? High Life (2018), da diretora francesa Claire Denis, não é propriamente um sci-fi convencional: em uma narrativa elíptica e em flash-backs tentamos reconstituir o passado e estimar o futuro daquela estranha missão. Uma viagem estranha e surreal pelos profundos vales da galáxia e da solidão humana. No espaço cósmico o homem nada descobrirá, a não ser a si mesmo. E isso pode não ser uma boa coisa.
No momento em que foi comprovada a existência de buracos negros pela primeira foto real de um dessas misteriosas entidades cósmicas, assistir ao filme High Life (2018) é uma experiência oportuna. Não pela curiosidade científica, mas pelo simbolismo cinematográfico ou mundano desse fenômeno astrofísico: aquilo que se esconde por trás do horizonte de eventos de um buraco negro poderia ser uma nova oportunidade de renovação. Mais precisamente, de “reciclagem”.
Ao lado da palavra “tabu”, são os dois conceitos centrais para entender o que representa o buraco negro no primeiro filme falado em inglês da diretora francesa Claire Denis – Deixe a Luz do Sol Entrar (2017), Bastardos (2013).
High Life emula os sci-fi cerebrais dos anos 1970, mas a comparação com 2001: Uma Odisseia no Espaço é inevitável. Não temos mais um HAL 9000 que dizima a tripulação de uma nave, mas uma cientista obsessiva com suas experiências em reprodução humana no espaço – a “xamã do esperma”, como diz cinicamente um dos astronautas de uma nave cujo nome é apenas um número: “sete”.
E nem o destino da missão é nobre: a tripulação não passa de cobaias em uma missão suicida: ex-condenados, alguns deles à morte, pela justiça na Terra e que aceitaram fazer essa jornada sem volta no espaço profundo. A missão: comprovar o chamado “Processo Penrose”, teoria do matemático Roger Penrose de que é possível extrair energia de um buraco negro em rotação.
Mas tudo isso é apenas o pano de fundo científico para discutir o “demasiado humano” – a solidão humana no espaço como o momento em que a espécie se confronta consigo mesma. Quanto mais longe da Terra, mais o homem encontrará a si mesmo. E isso pode não ser uma boa coisa.
O Filme
Em algum lugar do espaço profundo, muito além do sistema solar, uma nave viaja em direção a um buraco negro. No seu interior, uma tripulação que há muito morreu, mas todos estão conservados em sacos de plásticos criogênicos e tubagem industrial. Ainda há vida remanescente a bordo, um homem chamando Monte (Robert Pattinson) e sua bebê chamada Willow (Sacarlett Lindsey). Por entre corredores escuros e jardins desordenados em grandes estufas que fornecem oxigênio e alimentação, Monte ensina sua pequena filha a andar, alimenta-a e dedica toda sua atenção a sua única companheira viva.
No mesmo dia em que retira os cadáveres da sala criogênica e joga-os para fora no vácuo do espaço, Monte sintetiza sua sabedoria para sua pequena filha: “nunca beba o próprio mijo e a própria merda, mesmo que esses excrementos estejam reciclados e apresentando outra forma em que nada se assemelhem à forma original… isso se chama tabu”.
Nesse verdadeiro tratado sobre a solidão no espaço, “tabu” e “reciclagem” são conceitos-chave para entender High Life.
Como compreenderemos nos constantes flash-backs em uma narrativa não-linear (Claire Denis está menos interessada em explicações e muitos mais em dar pistas elípticas), toda a tripulação é composta por condenados – os mais diferentes tipos de desajustados e excluídos numa sociedade sobre a qual não temos muito detalhes. Uma coleção de seres humanos reciclados e transformados em cobaias numa missão suicida. O número que carregam nos uniformes (“sete”) parece indicar que eles não são os únicos: outras naves-prisões também foram enviadas.
Os sistemas de suporte vital da nave devem ser renovados a cada 24 horas e se eventualmente não restar ninguém vivo para fazer esse trabalho, a nave se autodestruirá.
Havia um piloto e supostamente o capitão da nave, mas quem parecia realmente comandar a tripulação era a Dra. Dibs (Juliette Binoche), médica encarregada de cuidar de todos a bordo. Porém, na verdade está obcecada com a colheita de óvulos e sêmen de todos para suas próprias experiências de reprodução e fertilidade humana.
Com seus cabelos longos e aparência obsessiva, Dibs mais parecia uma bruxa, a “xamã do esperma”, como
E mais: ela ainda conta com uma máquina chamada “fuckbox” – uma câmara no qual os tripulantes se masturbam e Dibs recolhe os preciosos fluidos humanos. Ela tenta sucessivas inseminações de óvulos fertilizados, porém os fetos tendem a morrer devido ao envenenamento pela irradiação espacial.
Monte é o único que se recusa a fornecer esperma à Dra. Dibs. Ele quer “guardar os fluidos para si mesmo” numa espécie de celibato proto monástico. Por isso, Monte é chamado de “monge” por todos. Apesar de serem criminosos tirados do corredor da morte das prisões, suspeitam que Dra. Dibs deva ter cometido crimes bem além da imaginação de todos.
Perversão, religião e ciência
O que é marcante em High Life é que não há relação sexual naquela nave composta por homens e mulheres. Não há cópulas, apenas perversões e muitos fluidos como leite materno, esperma e sangue menstrual.
Monte e Dra. Dibs criam a polaridade Ciência versus Religião para abordar os conceitos de reciclagem e tabu. A obcecada Dibs vê naquela tripulação de condenados à morte as cobaias perfeitas para suas pesquisas obscuras – a plasticidade da vida e as possibilidades infinitas de reciclagem e mutação são os paradigmas das suas pesquisas eticamente condenáveis.
Enquanto o “monge” Monte procura manter a integridade individual diante da máquina científica enlouquecida – condenados no espaço em uma missão suicida para buscar uma fonte infinita de energia nas bordas de um buraco negro. Sua abstinência e renúncia a desejos e emoções é quase uma atitude estética para fazer frente às frenéticas experimentações da Dra. Dibs.
Para Monte, são necessários tabus para criar algum tipo de limite ético entre as possibilidades infinitas da Ciência e o indivíduo mortal.
Para quem procura ficção-científica com efeitos especiais, design de áudio com assobios, blips, explosões e muito design futurista, High Life é a produção errada: sua força está muito mais no roteiro elíptico que lentamente vai cobrindo os espaços em branco dos porquês, do que nas convenções do gênero – o design da nave, da vestimenta dos astronautas e painéis da nave parecem desgastados, velhos, parecendo muito mais um escritório comercial abandonado.
High Life lembra em muitos aspectos 2001, só que numa odisseia muito mais obscura: o destino não é uma lua de Júpiter no qual a humanidade encontrará o seu futuro “Starchild”. Aqui, não: a nave-caixão ruma para o seu fim num buraco negro perdido no espaço profundo.
Claire Denis reserva ao espectador um final ambíguo, para além do horizonte de eventos daquele aspirador cósmico – Monte e sua filha Willow, agora crescida (Jessie Ross), verão no buraco negro a morte ou o renascimento. Ou será apenas uma reciclagem?
FICHA TÉCNICA DO FILME:
HIGH LIFE
Título original: High Life
Direção: Claire Denis
Elenco: Robert Pattinson, Juliette Binoche, André Benjamin
País: França, Alemanha, Reino Unido, Polônia
Ano: 2018
Gênero: Ficção científica