“O Cérebro de Hugo” é uma ponte que transpassa um rio torrencial, atulhado de espirais astutas, como a insipiência e o preconceito. Todavia, aquele que é capaz de chegar à outra borda, compreenderá que eles, do mesmo modo que nós, aspiram, unicamente, serem aceitos, respeitados e amados.
Sob a direção de Sophie Révill, “O Cérebro de Hugo”, originalmente “Le Cerveau D’Hugo” é um documentário ficcional produzido na França em 2012 que traz uma série de depoimentos de pessoas autistas (com Transtorno do Espectro Autista – TEA) acerca dos múltiplos obstáculos vividos, do processo de diagnóstico e seu convívio com familiares, bem como sobre as principais intervenções realizadas por psiquiatras pesquisadores da área, como Leo Kanner, Hans Asperger, Bruno Bettelheim, Margaret Bauman e Thomas Kemper. O longa também discorre e põe em destaque a história de um personagem fictício chamado Hugo.
Hugo era um menino que possuía a Síndrome de Asperger, também conhecida e apresentada como autismo de alto funcionamento (Nível 1). Segundo o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM-5 (APA, 2014), esse é um transtorno no qual os sinais tornam-se mais evidentes e acentuados na primeira infância, prolongando-se por toda a vida do sujeito (SILVA; GAIATO; REVELES, 2012). O TEA caracteriza-se por déficits perseverantes na comunicabilidade e interação social em numerosos cenários, como também pela existência de padrões limitados e recorrentes de comportamento, interesses ou atividades, cuja etiologia estaria ligada à fatores genéticos e biológicos, sendo assim, presente desde o nascimento e não desenvolvida ao longo da vida, conforme apresentado no filme.
Muitos dos indivíduos com o Transtorno do Espectro Autista também podem apresentar algum tipo de comprometimento intelectual e/ou da linguagem, déficits motores (marcha atípica, falta de coordenação), redução ou ausência de contato visual, estereotipias ou movimentos repetitivos, assim como o uso de objetos e fala de forma repetitiva.
Segundo o DSM-5 (APA, 2014), o TEA apresenta três níveis de gravidade, que são distinguidos a partir da obtenção de dados e observação clínicos, conforme a exigência de apoio que o indivíduo necessita. São eles:
- Nível 1 – Exigindo Apoio: dificuldade para iniciar interações sociais, bem como interesse reduzido por estas (comunicação social); dificuldade em trocar de atividades; planejamento e organização disfuncionais (comportamentos restritos e repetitivos);
- Nível 2 – Exigindo Apoio Substancial: limitação em dar início a interações sociais, déficits graves na comunicação verbal e não verbal, apresentando prejuízos sociais aparentes mesmo na presença de apoio (comunicação social); presença de comportamentos restritos e repetitivos, inflexibilidade, sofrimento em lidar com a mudança, como também, em mudar o foco ou as ações (comportamentos restritos e repetitivos);
- Nível 3 – Exigindo Apoio Muito Substancial: déficits e prejuízos graves nas capacidades de comunicação social verbal e não verbal, vasta limitação em dar início a interações sociais e retorno ínfimo a estas (comunicação social); inflexibilidade, extrema dificuldade em lidar com a mudança, ocorrência de grandes prejuízos no funcionamento do sujeito na sociedade em decorrência de comportamentos restritos e repetitivos, grande dificuldade para mudar o foco ou as ações (comportamentos restritos e repetitivos).
Logo ao nascer, a mãe de Hugo (Elisa) percebeu que o filho apresentava certas características que o distinguia das demais crianças. Além de não interagir com seus pais e mostrar-se indiferente em relação aos cuidados de sua mãe, Hugo chorava excessivamente e nada o consolava. Quando mais velho, exibia comportamentos “estranhos”, como alinhar incansavelmente determinados objetos; correr de um lado ao outro sem parar e balançar as mãos (comportamentos repetitivos e estereotipados); comportamentos autolesivos e ataques de fúria; ausência de contato visual; rejeição ao contato físico; interesse restrito a uma atividade e assunto; desordem frente a erros e exposição; sensibilidade auditiva e dificuldades em relacionar-se com outras crianças e em comunicar-se com outrem, pronunciando as primeiras palavras após os seis anos de idade.
Devido ao seu comportamento “imaturo”, diversos profissionais acreditavam que Hugo possuía retardo mental severo, o qual, atualmente, é compreendido como Deficiência Intelectual (DI), e abarca déficits em capacidades mentais genéricas (raciocínio, planejamento, pensamento abstrato, aprendizagem, solução de problemas, entre outros) e funcionais, tanto adaptativos quanto intelectuais, nas habilidades conceituais, sociais e práticas. Estes déficits originam perdas no funcionamento adaptativo do indivíduo e limitam o desempenho esperado em atividades cotidianas, como por exemplo, a comunicação, afetando também a participação social e independência em copiosas esferas, tais como escola, trabalho, casa e sociedade (APA, 2014).
Apesar de determinadas características do TEA serem semelhantes a certos aspectos da DI, como a dificuldade na área de comunicação, e a última poder ser uma comorbidade do transtorno (APA, 2014), ao longo do tempo, percebeu-se que o diagnóstico dado à Hugo poderia estar incorreto. Descobriu-se que ele tinha “um traço cognitivo raro caracterizado pela capacidade de identificar a altura de qualquer nota musical sem referência externa” (GERMANO et al., 2013, p. 1), designado ouvido absoluto, o qual lhe conferia uma grande aptidão para a música. A paixão de Hugo se tornou o piano e mesmo com inúmeras dificuldades, sua dedicação fez com que se destacasse, principalmente na idade adulta.
O documentário, muito além de retratar os critérios diagnósticos do Transtorno do Espectro Autista, a trajetória de Hugo e seu progresso na vida e na música e, as histórias de outras pessoas com TEA, evidencia o percurso dos tratamentos e intervenções psicológicas, destacando os principais psiquiatras que estudaram e desenvolveram metodologias a fim de minimizar o transtorno e, dia após dia, afastar o indivíduo de sua “prisão interior”.
Ainda, traz críticas a respeito dos métodos de ensino, os quais denegavam crianças atípicas em função de sua forma singular de aprender; e sobre a importância de uma avaliação minuciosa para um diagnóstico correto, uma vez que esse processo implica consequências na vida dos familiares e envolvem questões emocionais, reajustes no orçamento para melhor cuidar dessa criança e readaptação às novas condições.
O documentário traz à tona a realidade do cotidiano de Hugo e outros autistas, os impasses em viver como crianças/adultos típicos, em relacionar-se com familiares e estranhos, viverem em sociedade, em serem admitidos em um emprego e como são menosprezados e, tantas vezes, considerados deficientes intelectuais, quando de fato, podem ser grandes prodígios. Outrossim, também enfatiza o afinco de todos àqueles que os estimam para que sejam capazes de construírem laços afetivos e perscrutarem suas competências intelectuais e artísticas.
“O Cérebro de Hugo” é uma ponte que transpassa um rio torrencial, atulhado de espirais astutas, como a insipiência e o preconceito. Todavia, aquele que é capaz de chegar à outra borda, compreenderá que eles, do mesmo modo que nós, aspiram, unicamente, serem aceitos, respeitados e amados.
FICHA TÉCNICA:
O CÉREBRO DE HUGO
Título original: Le Cerveau D’Hugo
Direção: Sophie Révill
Elenco: Thomas Coumans, Guillaume Briat, Thierry Godard, Jennifer Decker;
Ano: 2012
País: França
Gênero: Documentário ficcional.
REFERÊNCIAS:
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION et al. DSM-5: Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. Artmed Editora, 2014.
GERMANO, N. D. G. et al. Categorização de ouvido absoluto em estudantes de música de nível universitário das cidades de São Paulo e Brasília. Anais do IX Simpósio de cognição e artes musicais, p. 21-32, 2013.
O CÉREBRO DE HUGO. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=PKhS4WlG234> Acesso em: 02 jul. 2020.
SILVA, A. B.; GAIATO, M. B.; REVELES L. T. Mundo singular: Entenda o Autismo. Rio de Janeiro: Editora Fontana, 2012.