Os deuses exigem de nós sacrifícios para que provemos nossa devoção. Mas, e se for exigido um sacrifício pessoal a eles? Um cirurgião bem sucedido e respeitado parece pairar como um Deus sobre a vida e a morte, até que encontra com um garoto que o faz se confrontar com algum tipo de justiça cósmica, que exigirá dele o sacrifício de um membro da sua família. “O Sacrifício do Cervo Sagrado” (“The Killing of a Sacred Deer”, 2017), do diretor grego Yorgos Lanthimos (“The Lobster” e “Dente Canino”), segue a tendência atual de filmes estranhos dirigido por gregos que misturam horror, violência, amor e culpa em thrillers com situações bizarras. Aqui, Lanthimos lança seu olhar para os mundos assépticos dos hospitais e condomínios suburbanos que vendem para as massas as ilusões de controle patrocinado pela Ciência e racionalidade tecnológica. E, como em todos os filmes de Lanthimos, consegue extrair desses universos o estranho e o incontrolável.
Condomínios suburbanos norte-americanos já rendaram diversas estórias em filmes que se tornaram clássicos: Poltergeist, ET, Goonies, Veludo Azul, Edward Mãos de Tesoura, Beleza Americana, Donie Darko entre outros. Filmes cujas narrativas sempre confrontam o estilo conformista e asséptico da classe média com algum evento perturbador que vai quebrar uma suposta ordem: espíritos, aliens, submundo do crime, infidelidade etc.
E quando um diretor grego como Yorgos Lanthimos volta seu olhar para um subúrbio norte-americano, certamente teremos um filme estranho. Assim como os seus anteriores The Lobster (2015) e Dente Canino (2009). Principalmente porque os atuais diretores gregos como, por exemplo, Nikias Cryssos (Der Bunker, 2016) têm se especializado em narrativas com situações bizarras, com personagens totalmente incongruentes entre si no qual violência, amor, culpa, erotismo, misticismo e horror se misturam – espaços claustrofóbicos, famílias que se transformam em prisões ou antigas fábulas e mitologias atualizadas em contos atuais.
O Sacrifício do Cervo Sagrado (2017) de Yorgos Lanthimo é mais um registro metafórico do diretor criando situações impossíveis para lançar luz sobre o bizarro e até sobrenatural que possa existir por baixo de ambientes controlados pela ordem familiar e científica.
Um cardiologista e cirurgião bem sucedido, casado com uma linda esposa (também médica, oftalmologista) morando em uma grande casa de subúrbio com um casal de filhos em um cotidiano ordenado, asséptico, no qual cada membro familiar tem funções cotidianas bem ordenadas – regar as plantas e a grama, fazer as refeições etc. Uma ordem familiar na qual a ordem e assepsia hospitalar se confundem com os ambientes suaves em tons pastéis da confortável casa de subúrbio.
Como em um cotidiano ordenado como esse, por tamanha racionalidade, pode deixar emergir o Estranho, o Cármico e o Mal? Como a Ciência pode gerar a própria presença do Mal, isto é, aquilo que irá desconstruir essa bolha de racionalidade que se materializa em casas de luxo de subúrbios? E como o Mal vive latente, no submundo dessa ordem, como uma espécie de inconsciente de culpa e vergonha.
O Filme
Collin Farrell mais uma vez se reúne com Lanthimos, dessa vez com uma interpretação mais densa e sombria. Ele interpreta o Dr. Steven Murphy, um cirurgião e cardiologista respeitado e bem sucedido. Ele parece ter conquistado tudo que uma vida bem sucedida poderia dar. Possui uma linda e cobiçada esposa, Anna (Nicole Kidman), uma médica oftalmologista.
Eles têm dois filhos: a jovem de 15 anos Kim (Raffey Cassidy) e o menino Bob (Sunny Suljic), às voltas com um intenso cronogramas de atividades da espaçosa casa sob as ordens dos pais Steve e Anna.
Steven faz amizade com um jovem de 16 anos chamado Martin (Barry Keoghan). Uma estranha amizade cuja história e motivações são vagas e os encontros são sempre furtivos nos quais Steven sempre dá pequenos presentes para o rapaz. Na medida em que o filme avança os espaços em branco daquela amizade serão preenchidos.
A certa altura Steve apresenta Martin para os seus colegas médicos do hospital como um amigo da sua filha interessado em conhecer a profissão da medicina.
Aos poucos o jovem vai sendo introduzido na vida da família de Steve: torna-se amigos dos filhos e passa a ter um interesse romântico por Kim após um jantar para o qual foi convidado.
Mas em toda essa aparente normalidade em tons pastéis há algo de sombrio que muito lentamente vai emergindo na narrativa: o bom médico gosta de fazer sexo com sua esposa enquanto ela finge estar sob anestesia geral. Na verdade parece que todos estão sob algum tipo de anestesia enquanto executam mecanicamente seus papéis.
Repentinamente as pernas do filho Bob param de funcionar e não consegue mais sair da cama e nem se alimentar. Em pouco tempo, a irmã apresenta os mesmos sintomas.
Martin revela a Steven o que está acontecendo: ele é o filho de um homem que morreu na mesa de operação há alguns anos, cujo culpado foi Steven. Por algum tipo de negligência médica que não está clara no início do filme. Talvez por culpa, o bom doutor quer manter-se perto do garoto. Porém, Martin será o agente de uma espécie de carma cósmico – se Steven levou seu pai, agora algum membro da sua família deve morrer. As escalas devem ser equilibradas.
O médico tem duas opções: sacrificar um membro da família para acabar o pesadelo ou assistir o definhamento de todos pela paralisia, recusa de comer e, eventualmente, sangramentos pelos olhos. É justiça!
Como um homem de ciência que vê a vida em preto e branco, ele recusa a acreditar nessa justiça cármica. Steve se apega à racionalidade da ciência médica para encontrar um diagnóstico para o que ocorre com seus filhos. Forma-se uma junta médica, baterias de exames neurológicos são realizadas mas nada é descoberto. Minimamente aceitar que tudo o que ocorre é de natureza psicossomática, seria uma derrota para os médicos neurologistas.
Claramente os acontecimentos rompem a sua visão de mundo perfeitamente controlada, assim como os condomínios suburbanos e os ascéticos hospitais. Como cardiologista bem sucedido e reconhecido, Steven é como um Deus: salva vidas e, eventualmente, comete erros que levam vidas. Mas agora, a situação pede algo raramente exigido aos deuses: um sacrifício pessoal.
O Agamenon moderno
Lanthimos está no campo da mitologia, principalmente quando descobrimos que um dos personagens do filme ganhou um A+ na escola por um trabalho sobre Ifigênia, mito grego centrado em um sacrifício exigido ao líder grego Agamenon. Artêmis, a deusa da caça, puniu Agamenon e a única maneira de remover a punição que paralisa seus exércitos no porto pela falta de vento é o sacrifício da sua filha Ifigênia.
O cardiologista Steven é o Agamenon moderno? Sim. Da mesma forma como os expoentes da Escola de Frankfurt Theodor Adorno e Max Horkheimer viam no mito de Ulisses a “dialética do esclarecimento” moderna: líderes da racionalidade militar das batalhas entre as cidades-Estado da antiga Grécia e os atuais líderes da racionalidade científica trilham a mesma “dialética” – a Ciência retornando ao Mito, incapaz de superar um senso de justiça cósmica trágica governada por deuses que parecem não nos amar.
Racionalidade e Ciência, vendida pelo varejo para as massas com ilusões de mundos controlados como condomínios suburbanos fechados e gadgets tecnológicos que parecem eliminar quaisquer surpresas ou “ruídos” no nossos cotidiano, nos fazem esquecer disso quando passamos a brincar de deuses. Emulando os próprios “deuses” (o Demiurgo) que também brincam de divindade conosco, nos prendendo nesse cosmos sob o arbítrio dos seus propósitos.
Por isso, o maior pecado do poderoso médico Steven é a recusa em admitir que é apenas humano. É um filme desafiador para os espectadores por alternar o estranho, o doloroso, histeria e o terror. Muitas vezes em uma única cena. Por isso, O Sacrifício do Cervo Sagrado de Lanthimos é um filme tão atemporal como o mito grego no qual se inspirou.
Ficha Técnica
O SACRIFÍCIO DO CERVO SAGRADO
Diretor: Yorgos Lanthimos
Elenco: Collin Farrell, Raffey Cassidy, Barry Keoghan, Nicole Kidman;
País: Reino Unido, Irlanda
Ano: 2017
Classificação: 16