Pandemia e isolamento: um relato da alma

Início de 2020, ano de promessas e mudanças, muitas coisas esperavam-me. Época em que fazia uma transição do CEULP (Centro Universitário Luterano de Palmas) para a UFT (Universidade Federal do Tocantins), cheio de esperanças para uma renovação feliz e produtiva. Via no ano que se iniciava, novas portas que haveriam de abrir-se para mim. Saído de um crítico e longo período da minha vida, em que era mantido pelo desejo dentro de ciclos de repetições eternas, agora, encontrava-me diante de novas possibilidades onde a palavra de ordem era liberdade.

O início do ano para mim sempre é uma época áurea. Fazendo aniversário em março, os dias que correm até ele são um processo de troca de pele, renovação. Meus estudos pessoais em psicologia analítica andavam a mil, cheios de produtividade e ação. Para além do que haveria de acontecer, aquela era definitivamente uma época de forte transição, tudo apontava para isso. Lembro de conversar com um querido amigo que sentia que as mudanças advindas da nova idade, alcançando os 23 anos, seriam mais radicais que as de costume. Pior que eu estava certo, só não sabia quão intensas seriam.

14 de março foi meu aniversário, e 14 de março o dia em que foi decretado lockdown em Palmas. Para meu espanto, o sentimento de grandes mudanças não se limitava a mim. Sim, é claro que caí naquela positividade do início da pandemia. “Agora todos nós podemos nos recolher e prestar mais atenção a nossas subjetividades”, “é o mundo pedindo por mais introversão por parte de nós”. A gente bem que tenta dar justificativas mais positivas para o caos interno que haveria de acontecer, e talvez conseguiram servir de barragem contra o manancial de afetos que estava para inundar o meu humor, assim como o de tantos.

No primeiro mês de pandemia, rondaram tantos “serás” por todos nós, que acredito que ainda houve um tempo hábil de esperança e, portanto, calmaria nos ansiosos corações extrovertidos. Eu, como um desses, apesar de ainda quieto e resignado, já começava a sentir falta dos estímulos externos das noites e bares. Mas isso não impediu o que se intentava, pude experimentar o processo de recolhimento.

Meu processo autoanalítico entrou em todo vapor, cheguei a ter 28 sonhos em um período de um mês. Anotava-os todos e os observava. Os anos de estudo e dedicação davam seus resultados. Lutei contra estátuas gigantes de bronze, matei um padre a sangue frio, escalei um vulcão, voltei para o ensino fundamental, fui abordado pela polícia, participei de um ritual xamânico bizarro com José de Abreu barbudo, achei uma pedra rosa brilhante que tinha que ficar dentro da água, troquei olhares místicos com um gato preto, briguei com meu irmão, entre outras aventuras.

Fonte: encurtador.com.br/hvGSU

Jung diz que quanto maior a tensão psíquica, mais intensos e profundos são os seus processos. À medida que os meses passavam, era nesse lugar que ia me encontrando cada vez mais. Um misto de pura angústia e convicção de que esse período seria chave em minha vida me inundava, deixando-me ao menos resignado.

Vários processos que jaziam hibernados pela força do recalque foram sendo liberados, mostrando também a face tenebrosa do processo de autoconhecimento. Os sonhos que advinham desse processo, bem, prefiro não os citar, apenas dizer que “Freud explica”. Porém, tais vivências eram alternadas ciclicamente por recompensas, e acho que aí reside a esperança de todo terapeuta em formação passando pela sua análise, esses processos são recompensados por momentos de profunda paz interior.

Comi e reli livros, e talvez posso dizer que foi aí que de fato aprendi a ler assertivamente. Retracei rotas, retornei para o CEULP a fim de não atrasar ainda mais minha formatura, o tempo urgia. Não fui dos melhores estudantes ao longo das aulas online, mas compensava essa falta através dos meus estudos pessoais, e posso dizer que assim minha consciência se manteve tranquila, pois minha formação estava em pleno vapor.
Em novembro não pude mais ater-me à resistência a terapia online, minha saúde mental pedia por tratamento. Para minha grande surpresa, me adaptei de forma súbita a esse molde terapêutico, e ressignifiquei completamente os tabus até então construídos, e hoje já planejo minha prática clínica também para essa forma de atendimento, acho revolucionário.

O processo não necessariamente ficou mais brando, porém ficou mais claro por onde percorria analiticamente, e aos poucos pude ir tendo maior clareza dos nós cegos que mantinham a constelação da minha consciência. Em várias áreas minha vida, pude começar a enxergar a transição de ciclo aparecer no horizonte. Aos poucos fui retornando à velha amiga extroversão, e tudo que suas delícias objetais pode oferecer. Agora, porém, parecia que eu tinha mais propriedade para exercitá-la, mais confiança.

Entre trancos e barrancos aos poucos estou voltando a vida normal, se é que existe isso. Claras marcas residem em minha alma, e o processo está longe de ter se apaziguado ou acabado. Os perigos ainda rodeiam, e as vezes tenho a impressão de que quanto mais estamos preparados para a vida, mais ela nos coloca a prova, não há muito tempo para descanso.

Em meio a passagem pela noite escura, pude aprender a enxergar melhor.

Fonte: encurtador.com.br/qrP69