Na noite de quarta feira (15), Marielle Franco (38) foi assassinada a tiros no bairro Estácio, enquanto retornava de um evento no Bairro da Lapa. O evento se deu na Casa das Pretas, um espaço coletivo de mulheres negras no centro do Rio de Janeiro, com o tema “Jovens Negras movendo as estruturas”. Esse evento, por sua vez, está vinculado as atividades desenvolvidas pelo PSOL “21 dias de ativismo contra o Racismo”. Foi assim, promovendo os ideais revolucionários da promoção dos direitos humanos que a vereadora vivenciou seus últimos momentos.
Nascida e criada no Complexo da Maré (ela mesmo se denominava “cria da Maré”), um conjunto de favelas no Norte do Rio, fez cursinho pré-vestibular comunitário e conseguiu uma bolsa total do Programa Universidade Para Todos (PROUNI) na PUC (Pontifícia Universidade Católica) do Rio de Janeiro para cursar Ciências Sociais.
Impactada pela morte precoce de uma amiga, vítima de bala perdida em um tiroteio entre polícia e traficantes, e a partir de suas próprias vivências como mulher negra, favelada, bissexual e marginalizada, Marielle se engajou na luta pelos direitos humanos. Após o término do curso, concluiu o mestrado em Administração Pública pela Universidade Federal Fluminense (UFF), onde defendeu a sua tese “UPP – A redução da favela a três letras: uma análise da política de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro”
Seu envolvimento com a política começou em 2006, ao integrar a equipe de campanha que elegeu Marcelo Freixo como presidente da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ) sendo nomeada assessora parlamentar. Também assumiu a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Em 2016, Marielle decidiu se candidatar a vereadora. Em sua primeira disputa eleitoral, conquistou o posto de quinta vereadora mais votada, justamente por ir ao encontro dos anseios das causas que defendia. Marielle foi eleita por 46.502 pessoas que se sentiram representadas pela sua luta.
Na Câmera, continuou a defender a participação mais ativa da mulher n
a política, integrou a Comissão de Defesa da Mulher e no dia 28 de fevereiro de 2018, passou a integrar, como relatora, uma comissão que acompanharia a intervenção federal no Rio de Janeiro. No dia 10 e 11 de Março, Marielle denunciou via Twitter, os abusos cometidos pelo 41º Batalhão da Polícia Militar. E então, no dia 14 de Março, ao sair do evento em que militou novamente pela independência das mulheres negras, foi perseguida por um veículo e atingida por quatro tiros na cabeça. O motorista que conduzia seu veículo também foi atingido e morto. A sua assessora sofreu alguns ferimentos, mas sobreviveu.
As notícias sobre a morte de Marielle repercutiram internacionalmente. Todos os detalhes de sua morte e sua trajetória em vida estão disponíveis a um clique em qualquer rede social, ou espaço da internet. Por esse motivo, neste texto, procuro falar sobre a grande pergunta que paira (tecnicamente sem resposta) sobre o mistério que não quer calar: Quem matou Marielle Franco?
A perícia ainda em andamento descobriu que as balas que a atingiram são do mesmo lote de munição usado na carnificina de 2015 em Osasco, onde dezessete pessoas morreram assassinadas e pela qual três policiais militares e um guarda civil foram condenados. O lote tinha sido adquirido pela polícia federal. Não é um absurdo supor que Marielle foi assassinada pelos algozes que denunciava, embora ainda não seja possível afirmar isso.
Marielle é o símbolo de resistência da mulher negra, periférica, mãe solo e bissexual. “Venceu na vida” como diriam alguns. Conseguiu se formar, terminou um mestrado e alcançou o ideal apregoado pelos profetas da meritocracia. E não sobreviveu. No nosso país, onde a violência contra a mulher atinge números altíssimos, Marielle, em 14 de Março, foi uma das doze mulheres assassinadas por dia no Brasil (dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2017).
Defendia os Direitos Humanos com veemência e ainda sendo velada, recebeu a enxurrada de comentários comemorando sua morte. Os autores desses comentários, não é de se estranhar, são em sua maioria, homens. Como cria da favela, foi imediatamente condenada sem provas no tribunal da ignorância, vítima de falsos boatos que a acusam de envolvimento com o tráfico, ridicularizada por tentar elevar sua voz e se fazer ouvida. Todass essas acusações são facilmente desmentidas ao se consultar a história de sua vida.
É necessário descobrir quem puxou o gatilho que matou Marielle Franco. Mas não é difícil descobrir que ela foi assassinada pela onda conservadora extremista que se apossa do país. Foi assassinada pelo sexismo desenfreado, o desejo pela supremacia militar, a obsessão por crimes e punições, a corrupção desenfreada, eleições fraudulentas, o desdém pelos direitos humanos e também pelos intelectuais e pelas artes. Todas essas são características indicadoras da ameaça fascista, reunidas por Lawrence W. Britt, após analisar sete governos ditatoriais, e infelizmente, características cada vez mais presentes na sociedade brasileira.
O seu assassinato fede a execução, é um grande aviso de silêncio. É alarmante a forma como não houve nenhuma tentativa de sutileza. É a bota do fascismo esmagando, sem piedade, a alteridade. Entretanto, o ideal pregado por Marielle encontra ressonância em cada um de seus eleitores, e para além disso, em cada brasileiro que reconhece a necessidade de lutar pelo que ela lutava, sob o grande risco de também ser esmagado.
Devemos reconhecer nossa responsabilidade como algozes de Marielle, a cada vez que nos calamos para um discurso intolerante, a cada vez que deixamos passar uma piada racista, bifóbica, machista; a cada vez que deixamos para amanhã o engajamento na luta pelos direitos humanos, ou simplesmente nos sentamos, compartilhando notícias, mas sem, realmente, nos implicarmos no fazer política.
Enquanto mulheres, ocupando lugares de resistência forem silenciadas sem escrúpulos; enquanto mulheres negras forem ridicularizadas após sua morte; enquanto mulheres negras bissexuais forem vítimas de boatos infundados; enquanto mulheres negras, bissexuais, políticas, feministas, forem objeto de escárnio por ousarem se pronunciar, é inviável que nós nos calemos ou descansemos.
Quem matou Marielle vai continuar matando quem se opor à dominação branca, elitista e apolítica. Por todos esses motivos, a sua morte não deve ser lamentada com luto, mas sim, exaustivamente questionada com luta. Enterraram Marielle, mas ela é semente. E brotam hoje, indignação, luta e resistência. Marielle presente, hoje e sempre.