Este texto constitui um ensaio reflexivo (UFSC, 2009) elaborado a partir das minhas experiências ao longo da graduação em Psicologia. Parto de algumas premissas do Pensamento Sistêmico Novo-Paradigmático (Esteves de Vasconcellos, 2018) e da Logoterapia (Frankl, 1946), especialmente no que diz respeito ao princípio do não-reducionismo (Esteves de Vasconcellos, 2018; Nery, 2023) e ao tripé paradigmático do pensamento sistêmico de segunda ordem (Esteves de Vasconcellos,2018) que articula se articula em três níveis, sendo paradigma, teoria e prática. A partir dessas referências, proponho-me a relatar e refletir sobre possíveis convergências entre essas duas abordagens, examinando como, no percurso da minha formação, tornou-se possível pensar uma integração ou, ao menos, uma abertura para a integração entre modos ditos como distintos de compreender o ser humano, a atuação clínica e o(s) sentido(s).
Distinguindo novas realidades a partir do Pensamento Sistêmico Novo-Paradigmático
Durante a graduação, tive contato com muitas abordagens, pois as disciplinas nos colocam diante de diferentes perspectivas teóricas. Tive aulas de Psicanálise, Psicologia Analítica Junguiana, Psicologia Analítico-Comportamental e Terapia Cognitivo-Comportamental. Mas houve uma abordagem específica que me cativou desde o princípio: a Psicologia Sistêmica. Meu primeiro contato foi na disciplina de Psicologia das Relações Familiares, onde estudamos alguns princípios da Terapia Familiar Estrutural, alguns pressupostos de Bowen e McGoldrick, e de outros autores que contribuíram com esse campo.
A Psicologia Sistêmica ampliou minha visão de mundo. Ela me ajudou a entender como tudo está relacionado e como, no fundo, sempre estamos falando das relações.
Mais tarde, a partir da Psicologia Sistêmica de Segunda Ordem e das contribuições de Maria José Esteves de Vasconcellos (2018), compreendi melhor como trabalhamos sempre a partir de um paradigma, de uma teoria e de uma prática.
Na disciplina de Psicologia Sistêmica, aprofundei ainda mais esse campo à medida em que estudamos o panorama das terapias familiares, como a de Bowen, a terapia estratégica, a terapia estrutural, a terapia narrativa, os axiomas da comunicação e o pensamento sistêmico novo-paradigmático, conforme o estipulado e organizado por Esteves de Vasconcellos (2010).
Em especial, a terapia narrativa me ensinou que as pessoas não são o problema, o problema é o problema. Aprendi que somos histórias que contamos sobre nós mesmos, e muitas vezes, vivemos histórias que outros escreveram para nós. White e Epson falaram sobre externalizar o problema e por meio das técnicas narrativas, convidar o paciente à autoria, reescrevendo histórias, nomeando o que foi silenciado, abrir espaço para vozes múltiplas, onde o sentido se reconstrói na conversa e na linguagem (Nichols; Schwartz, 2007).
O que mais me marcou na disciplina de Psicologia Sistêmica foi a forma como o conceito de comunicação foi trabalhado. Foi muito significativo para mim entender que comunicar-se é, na verdade, relacionar-se (Esteves de Vasconcellos, 2025), e que não existe ‘não comunicação’, o silêncio também comunica algo (Watzlawick, 2007). Aprendi sobre os níveis de conteúdo e relação, e isso ampliou muito minha percepção sobre como as interações acontecem. O paradigma da colaboração também foi extremamente enriquecedor, Humberto Maturana (2004) explica que o ser humano é amoroso, e essa ideia, presente no paradigma da colaboração, deve orientar tanto a vida pessoal quanto a profissional das pessoas que pensam sistemicamente.
Outra premissa é a de que a realidade é co-construída coletivamente por meio da linguagem, dessa forma, contextos conversacionais possibilitam espaços para co-criar novas formas de pensar, novas possibilidades, subindo o nível lógico diante das situações (Esteves de Vasconcellos, 2018). Portanto, o meio de desenvolvimento desses contextos conversacionais são perguntas.
As perguntas compõem o Atendimento Sistêmico Novo-Paradigmático. Conheci as perguntas descritivas circulares, as descritivas lineares e as perguntas interventivas circulares, que fundamentam a lógica das perguntas reflexivas utilizadas em atendimentos sistêmicos, e também aprendi sobre o perigo das perguntas interventivas lineares, que elas carregam julgamentos, inferências e estão distantes de outra premissa desta abordagem: a posição de não-saber (Esteves de Vasconcellos 2010; 2025; Tomm, 1988).
Também distingui a noção de um sistema determinado por um problema (Esteves de Vasconcellos, 2025), algo que ajudou a organizar meu pensamento clínico. A Sistêmica me ensinou a não ser reducionista e a considerar múltiplos contextos, sistemas e situações. Aprendi sobre responsabilidade, colaboração e sobre comunicação. Tudo isso mudou profundamente minha visão de mundo e me ensinou a pensar de forma mais ampla, mais complexa, mais contextualizada.
Encontro de Sentido(s) por meio da Logoterapia
Na instituição em que curso a graduação, não temos uma disciplina voltada especificamente ao eixo fenomenológico, pelo menos não nos anos de 2021 a 2025. Mas, na disciplina de Psicologia da Saúde, em uma aula sobre saúde, espiritualidade e suas inter-relações, tivemos um panorama geral sobre como diferentes teóricos da Psicologia compreendem o tema da espiritualidade. Vimos o que Jung postulou e, de forma mais aprofundada, o que Viktor Frankl desenvolveu. Foi nessa disciplina que tive aula com uma professora que havia feito doutorado com uma pesquisa em prevenção do suicídio (Cecchin, 2022) e possuía especialização em logoterapia. Ela transmitia os conteúdos com tanta propriedade e paixão que criou um espaço para escuta, interesse e compreensão dos alunos.
Essa primeira aproximação com Frankl e com a logoterapia aconteceu ali, em sala, e abriu um novo campo de reflexões que passou a dialogar com tudo aquilo que eu já aprendia na Sistêmica. Viktor Frankl postula o princípio do não-reducionismo (Nery, 2023), e isso também me atravessou profundamente, porque dialogava diretamente com o que eu já estudava em Psicologia Sistêmica. Frankl (1946) baseia sua teoria no fenômeno do sentido. A partir daquela aula, e dos ensinamentos sobre auto-transcendência e sobre como o ser humano se relaciona com algo além de si, percebi que esse campo teórico merecia ser estudado com mais atenção da minha parte.
Por isso, comprei um livro chamado ‘Sobre o Sentido da Vida’, que reúne palestras de Frankl. Nesse livro, ele discute que, mesmo em situações de sofrimento, ainda existe a possibilidade de encontrar sentido. Conforme fui estudando, tive acesso a outros materiais e comecei a assistir vídeos no YouTube do psicólogo Alberto Nery, o que levou a comprar o livro dele, no qual ele apresenta um panorama geral da teoria e da trajetória de Viktor Frankl (Nery, 2023). Foi assim que conheci, de forma mais completa, a história de Frankl: um psicólogo e médico judeu que foi enviado a um campo de concentração.
Ele já havia começado a desenvolver sua teoria, mas foi justamente no campo que pôde confirmar e refinar suas ideias. Ali, mesmo nas condições mais extremas, notou que havia pessoas que conseguiam descobrir um sentido, não inventado, não criado artificialmente, mas descoberto nos acontecimentos da própria vida (Frankl 2011; 2019). A partir disso, compreendi que existem “sentidos da vida”, que são mais gerais, e “sentidos na vida”, que são os que sustentam o cotidiano: o trabalho, as relações, a arte, os projetos, os vínculos. Entendi também a vontade de sentido e a liberdade de sentido. E essa noção de liberdade me atravessou ainda mais porque, ao mesmo tempo, eu cursava a disciplina de Intervenção Psicossocial, e nesse contexto pude ver a liberdade de sentido se materializando.
A liberdade de sentido dialogava diretamente com o que aprendíamos ali: mesmo em situações difíceis, ainda existe a possibilidade de encontrar um caminho possível, e de, no coletivo, fortalecer vínculos e construir alternativas, reconhecendo o que pode ser mudado e o que não pode. Essa concepção me motivou a escrever um resumo expandido na época, discorrendo ensaísticamente a respeito dessa relação entre a Liberdade de Sentido e a Intervenção Psicossocial (Mascarenhas-Pereira; Brum, 2024). Esse diálogo entre logoterapia e intervenção psicossocial acabou se conectando com o que eu já estudava na Sistêmica, porque a Sistêmica é sobre relações, e a logoterapia é sobre Sentido, mas também sobre autotranscendência, que também se manifesta nas relações. De certa forma, percebi que autotranscender é, igualmente, relacionar-se: sair de si, direcionar-se ao mundo, à arte, à cultura e aos outros.
Convergências e Divergências
Apesar de suas bases diferentes, há princípios comuns às duas abordagens. Ambas rejeitam explicações reducionistas e dogmáticas, priorizando a construção conjunta de significado. A autonomia é valorizada tanto na logoterapia, que defende a liberdade e responsabilidade pessoais, quanto na sistêmica, que busca fortalecer a posição de cada membro dentro das relações. Além disso, ambas utilizam perguntas como ferramenta central. No diálogo socrático, as perguntas revelam valores, sentido e possibilidades existenciais; na sistêmica, revelam posições, interações e perspectivas. Embora operem sobre objetos diferentes o “eu” ou o “entre”, o método de semear atratores por meio de perguntas aproxima as duas práticas (Esteves de Vasconcellos, 2018; Frankl, 2019).
A logoterapia atua predominantemente na temporalidade do presente e futuro, auxiliando o consultante a construir sentidos e projetos que respondam ao que considera valioso. Sua orientação é prospectiva: como viver de maneira mais coerente com seus valores daqui para frente?
A sistêmica, trabalha com grande atenção à dimensão transgeracional. Padrões familiares, repetições e lealdades invisíveis são elementos importantes para distinguir o funcionamento atual do sistema. No entanto, as perguntas interventivas sistêmicas também abrem espaço para futuros possíveis, ao indagar sobre como determinadas mudanças poderiam alterar relações, funções e expectativas dentro da família.
A logoterapia trabalha a partir do indivíduo e sua busca de sentido, privilegiando a temporalidade presente-futuro e mobilizando a autotranscendência como chave de mudança. A sistêmica privilegia os padrões relacionais e as dinâmicas intergeracionais, utilizando perguntas circulares para transformar modos de interação. Apesar das diferenças, ambas compartilham a recusa ao reducionismo, à valorização da autonomia e o uso de perguntas como ferramenta central de ampliação do olhar.
Na Sistêmica, nada é isolado; na logoterapia, o sentido é encontrado justamente nesse movimento para além de si. As duas abordagens também tratam de corresponsabilidade. Na logoterapia, o terapeuta está implicado na relação. Na Sistêmica, trabalhamos com a ideia de co-construção. Isso sempre fez muito sentido para mim. No início deste texto mencionei que aprendi, na Sistêmica, que existe um tripé formado por paradigma, teoria e prática. E hoje eu me vejo com um paradigma sistêmico, capaz de abarcar tanto a teoria logoterapêutica quanto a teoria sistêmica novo-paradigmática. E também vejo a possibilidade de aplicar técnicas das duas abordagens.
Na Psicologia Sistêmica, temos as perguntas reflexivas; se voltarmos para a primeira ordem, temos os genogramas, as perguntas de processo, o mapeamento estrutural. Na logoterapia, temos o questionamento socrático, muito semelhante às perguntas reflexivas; temos também técnicas que ajudam a ampliar o olhar, semelhantes ao ato de “subir o nível lógico” e distinguir novas realidades, como propõe o pensamento sistêmico novo-paradigmático.
Conclusão
Este texto é uma forma de refletir, a partir da minha experiência, sobre como a Logoterapia e a Psicologia Sistêmica apresentam convergências. Isso pode, inclusive, estar relacionado ao contexto histórico, ao Zeitgeist, já que a teoria geral dos sistemas e a logoterapia emergem em períodos próximos, dialogando com preocupações semelhantes da época. Mas, independentemente disso, poder integrar essas formas de pensamento é, em si, uma expressão do não-reducionismo, é reconhecer as múltiplas nuances da experiência humana e estar aberto ao diálogo entre elas, sempre com o foco na melhoria do paciente.
Se, a partir do meu paradigma, consigo integrar teorias e técnicas que não são contraditórias entre si, eu permaneço coerente com o princípio do não-reducionismo, e ao mesmo tempo me muno de mais possibilidades para apoiar quem me procura. Concluir este texto é reconhecer que o diálogo entre a logoterapia e o pensamento sistêmico novo-paradigmático não se limita a uma comparação teórica. Ao articular a noção de sentido com a lógica relacional, percebi que minhas intervenções ganham densidade quando considero simultaneamente a singularidade da pessoa e os padrões que atravessam suas relações. A busca por sentido não se opõe à complexidade sistêmica, ao contrário, ela pode se relacionar com ela. Refletir sobre essa convergência me ajudou a construir uma base paradigmática mais coerente com o não-reducionismo.
Encerrar este texto significa, também, abrir um convite, pois ao aproximar a logoterapia do pensamento sistêmico novo-paradigmático, percebi que essa articulação pode ampliar o modo como outros colegas, estudantes ou profissionais pensam o cuidado em Psicologia. Considerar simultaneamente o sentido e as relações, o individual e o sistêmico, a liberdade e a complexidade, é reconhecer que nenhuma experiência humana se esgota em uma única lente. Oferecer essa perspectiva é, portanto, sugerir uma possibilidade de prática mais ampla, menos reducionista e mais afinada com a colaboração, com uma prática que acolhe singularidades sem perder de vista os contextos, que sustenta perguntas que ampliam mundos e que aposta na co-construção de caminhos possíveis. Se este texto tiver algum efeito, desejo que seja o de provocar essa abertura a de pensar com mais camadas, com mais responsabilidade e, sobretudo, com mais sentido.
Referências
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