The Sunset Limited: ecceidade e niilidade da existência

“Parece que todo o esforço da Filosofia tem sido descascar esta cebola que é o mundo, no afã de lhe encontrar o suporte, a substância, o núcleo. Outra metáfora que vai no mesmo sentido é de que o visível deite raízes no invisível, o passageiro, no eterno, o movimento no repouso, o relativo no absoluto, de tal sorte que a interpretação do real é um ato permanente de ultrapassagem”
Sebastião Trogo

O longa metragem The Sunset Limited (No Limite do Suicídio em tradução nacional) é um filme estadunidense, de 2011, dirigido por Tommy Lee Jones, baseado em peça homônima de Cormac Mccarthy, de 2006.  Com duração de 91 minutos, a obra possui um formato teatral na interação de apenas dois personagens, Samuel L. Jackson interpretando Black, e o próprio Jones como White.

A trama do filme se passa em uma situação específica, ocorrida entre esses dois personagens. White, um professor, cético e suicida, passou por uma experiência frustrada de tentativa de abreviar sua existência numa estação de metrô chamada Sunset Limited, quando foi impedido por Black, um ex-presidiário, religioso, e que o convida a uma ida em seu apartamento, para que possam dialogar sobre os porquês da decisão de White de tentar tirar a própria vida.

A dinâmica do diálogo ocorre como uma apologia da causa suicida por White, em meio às contraposições do sentido da mesma, em argumentos teológicos, efetuadas por Black. O direito e propósito do viver, e a renúncia ao propósito da vida são contrapostos aos grandes platôs religiosos de elevação da existência como dádiva transcendental, e cuja (des)continuidade estaria além de nosso arbítrio.

Temáticas metafísicas são discutidas amplamente no filme, perpassando por pautas como morte, vida, destino, religião, verdade, religião, ateísmo, etc. A riqueza das informações, discursos, personalidades, visões de mundo e embates teóricos faz com que The Sunset Limited nos ofereça uma experiência cinematográfica singular, envolta em profundas reflexões e debates nas vozes e pensamentos dos personagens do filme.

A análise aqui proposta está voltada aos aspectos filosóficos, principalmente relacionadas ao ser-para-morte e a relação entre a ecceidade e niilidade da existência, muito presente nos diálogos de Black e White. Vertentes psicológicas, psiquiátricas (clínicas), históricas, sociológicas e antropológicas, serão utilizadas, eventualmente, como suporte ou apoio secundário ao foco inicial proposto pela reflexão em tela.

O propósito entre o nada e o ser

A fenomenologia, e sua guinada como método filosófico no século XX, é marcada pela obra de dois grandes pensadores, Jean-Paul Satre e Martin Heidegger, que discutiram amplamente os grandes temas da metafísica em roupagens contemporâneas, em revisões e aprofundamentos de pensadores pretéritos como filosófos pré-socráticos (especialmente Heidegger), os postulados escolásticos da dogmática cristã e sua teologia, o primado filosófico de Platão e Aristóteles, Immanuel Kant, Friedrich Hegel, Soren Kierkegaard, Friedrich Niezscthe e, em alguma medida, Arthur Schopenhauer, mesmo que esse último com pouca presença literal na obra dos dois primeiros.

Tempo, existência, sentido e vazio se entrelaçam nas filosofias de Heidegger e Sartre, e a partir de suas contribuições é que podemos propor uma análise, por estas vias, a respeito dos temas tratados em The Sunset Limited. Ao colocarmos a morte e o suicídio no panorama filosófico de seu debate, iremos, inevitavelmente, nos deparar com a questão do tempo e suas temporalidades e, essencialmente, como há a relação entre finitude e infinitude por parte do ser humano.

Muito do que é apresentado ao longo do filme respeito à essência do existir, a presença de um porquê fundamental para nossas vidas e, principalmente, o propósito da caminhada existencial de cada um de nós. White nos traz a angústia, em seu estado mais profundo, quando o niilismo entrega sua face mais negativa, que é a desistência do próprio projeto existencial, como trabalhado por Sartre:

A angústia que faz manifestar nossa liberdade à nossa consciência, quando essa possibilidade é desvelada serve de testemunha. desta perpétua modificabilidade (modificabilité) de nosso projeto inicial. Na angústia, não captamos simplesmente o fato de que os possíveis que projetamos acham-se perpetuamente corroídos pela nossa liberdade-por-vir, mas também apreendemos nossa escolha, ou seja, nos mesmos, enquanto injustificável, isto é, captamos nossa escolha como algo não derivado de qualquer realidade anterior e, ao contrário, como algo que deve servir de fundamento ao conjunto das significações que constituem a realidade. A injustificabilidade não é somente o reconhecimento subjetivo da contingência absoluta de nosso ser, mas ainda o da interiorização desta contingência e sua reassunção por nossa conta. Isso porque a escolha procedente da contingência do Em-si que ela nadifica transporta essa contingência ao plano da determinação gratuita do Para-si por si mesmo. Assim, estamos perpetuamente comprometidos em nossa escolha, e perpetuamente conscientes de que nós mesmos podemos abruptamente inverter essa escolha e “mudar o rumo”, pois projetamos o porvir por nosso próprio ser e o corroemos perpetuamente por nossa liberdade existencial: anunciamos a nós mesmos o que somos por meio do porvir e sem domínio sobre este porvir que permanece sempre possível, sem passar jamais à categoria de real. (SARTRE, 2008, p. 571-572).

O Para-si, que é uma das grandes categorias sartreanas, representando a projeção de significação do ser, a partir do ser humano, à mundaneidade que o rodeia (o Em-Si), é composto pelos projetos engendrados pela existência. Esse conceito conecta-se, intimamente, com o dasein de Heidegger, traduzido amplamente no Brasil por ser-aí (ou presença em algumas traduções), que é a transcendência humana projetada no mundo da qual faz parte, habita e significa. Portanto, o Para-si sintetiza-se como uma busca constante por um projeto que nos justifique em nossas existências cotidianas:

Todavia, como esse surgimento do novo projeto tem por condição expressa a nadificação do anterior, o Para-si não pode conferir uma nova existência a si mesmo: assim que arremessa no passado o projeto prescrito, tem-de-ser esse projeto na forma do “era” – o que significa que tal projeto prescrito pertence daqui por diante à situação do Para-si. Nenhuma lei de ser pode estipular o número a priori dos diferentes projetos que sou: a existência do Para-si, com efeito, condiciona sua essência. Mas é necessário consultar a história de cada um para ter-se uma idéia singular acerca de cada Para-si singular. Nossos projetos particulares, concernentes à realização no mundo de um fim em particular, integramse no projeto global que somos. Mas, precisamente porque somos integralmente escolha e ato, esses projetos parciais não são determinados pelo projeto global: devem ser, eles próprios, escolhas, e a cada um deles permite-se certa margem de contingência, imprevisibilidade e absurdo, embora cada projeto, na medida em que se projeta, sendo especificação do projeto global por ocasião de elementos particulares da situação, seja sempre compreendido em relação à totalidade de meu ser-no-mundo (p. 592). 

A sedução ao nada rodeia os projetos que construímos, desejamos, iniciamos e investimos tempo, esforço, emoções, experiências, vivências, partilhas e paixões. A idealização do futuro se torna fragilizada diante dos percalços da mundaneidade em sua inteireza (o Em-si sartreano), e o Para-si, que é a constante projeção, construção e sustentação de todos os projetos iniciados por nós em busca do sentido que nos defina em nossa liberdade primordial, enfraquece-se diante desse instante futuro que não chega, no qual a completude do projeto se tornaria realidade e não mais especulação:

Assim, estamos perpetuamente submetidos à ameaça da nadificação de nossa atual escolha, perpetuamente submetidos à ameaça de nos escolhermos – e, em conseqüência, nos tornarmos – outros que não este que somos. Somente pelo fato de que nossa escolha é absoluta, ela é frágil; ou seja, estabelecendo nossa liberdade por meio dela, estabelecemos ao mesmo tempo a possibilidade perpétua de que nossa escolha converta-se em um aquém preterificado por um além que serei. Todavia, devemos entender com clareza que nossa atual escolha é de tal ordem que não nos oferece qualquer motivo para que a preterifiquemos por uma escolha ulterior. Com efeito, é ela que cria originariamente todos os motivos e móbeis que podem conduzir-nos a ações parciais, é ela que dispõe o mundo com suas significações, seus complexos-utensílios e seu coeficiente de adversidade. Essa mudança absoluta que nos ameaça do nosso nascimento à nossa morte permanece perpetuamente imprevisível e incompreensível. Mesmo se encararmos outras atitudes fundamentais como possíveis, jamais as consideramos a não ser pelo lado de fora, como os comportamentos do Outro. E, se tentamos relacionar nossas condutas a tais atitudes fundamentais, estas não perdem por isso seu caráter de exterioridade e de transcendências-transcendidas. Com efeito, “compreendê-las” já seria tê-las escolhido. Voltaremos ao assunto. Além disso, não devemos representar a escolha original como “produzindo-se a si mesmo a cada instante”; seria voltar à concepção instantaneísta da consciência, da qual Husserl não pode sair. Uma vez que, ao contrário, é a consciência que se temporaliza, é necessário que a escolha original estende o tempo e identifica-se com a unidade dos três ek-stases. Escolher-nos é nadificar-nos, ou seja, fazer com que um futuro venha a nos anunciar o que somos, conferindo um sentido ao nosso passado. Assim, não há uma sucessão de instantes separados por nadas, como em Descartes, e de tal ordem que minha escolha no instante t não possa agir sobre minha escolha do instante t1• Escolher é fazer com que surja, com meu comprometimento certa extensão finita de duração concreta e contínua, que é precisamente a que me separa da realização de meus possíveis originais. Assim, liberdade escolha, nadificação e temporalização constituem uma única e mesma coisa. (SARTRE, 2008, p. 571-573).

A liberdade da escolha e os projetos da existência nos definem, por essa razão Sartre retoma amplamente o seu ponto inicial da liberdade como o paradoxo do aprisionamento da essência humana, nossa condição a sermos e estarmos livres, sempre. A consciência temporalizante é o que nos faz ter a o acúmulo, ao longo da vida, das resultantes dos diferentes caminhos percorridos, escolhas realizadas, das trilhas idas e desviadas, os pormenores de ações, situações, contingências e consequências que compõem, mesmo que não queiramos ou percebamos, um cenário interior de constante questionamento sobre o mundo, nós mesmos e os outros.

 Como nos traz, em seus argumentos, sobre nossa niilidade (chamada por Sartre de natitè), Carlos Astrada (1942) assim define esse eterno jogo metafísico entre o sentido e vazio, escolha e indecisão, o circunscrito e o indefinido, que nos perpassa diária e inevitavelmente: “A metafísica é a dinâmica existencial do pensamento (o jogo metafísico), jogando-se por e entorno do ser, cja compreensão ativa compreende o drama de nosso própro ser, de nossa irrevogável niilidade” (ASTRADA, 1942, p. 10).

O preenchimento do vazio da existência em The Sunset Limited é efetuado de duas grandes maneiras, por meio de dois colossos de associação da essência do mundo e de todas as coisas – o descascar da cebola citado por Trogo na epígrafe desse escrito –, trata-se da religião/dogmas e da ciência/filosofia, por meio das falas dos personagens White e Black, e também nos seus trejeitos e formas de expressão diante ou da niilidade ou ecceidade do mundo e de suas vidas.

Tanto por um como por outro lado desses caminhos, a niilidade é rebatida com busca e oferta de respostas a estes questionamentos: “Por estar abandonada a sua própria niilidade, em meio às coisas, a existência busca um apoio, um amparo. Então se mantém na transcendência. O modo essencial de manter-se na transcendência, ou seja, no jogo dinâmico e sutil em que o ente humano está posto, é precisamente a concepção de mundo.” (ASTRADA, 1942, p. 45 – tradução própria).

Assim como Astrada (1942), o filósofo brasileiro Gerd Bornheim (1972) também coloca a questão da finitude como principal temática da metafísica e das querelas filosóficas que perfazem a existência. Ambos autores possuem grande leitura e compreensão das filosofias fenomenológicas fundamentais do século XX, de Sartre e Heidegger. E o argumento utilizado a partir do questionamento de uma metafísica da finitude parte do princípio da impossibilidade humana de lidar com sua abertura a uma temporalidade (infinita) que ultrapasse sua finitude: “[…] o homem é o único ente que diz o ser; que ele o diz, é incontestável. O que pode ser contestado e discutido, é o significado de tal dizer, porque na elucidação desse dizer o ser começa a ontologia.” (BORNHEIM, 1972, p. 10).

Tudo se torna mais complexo, denso e de difícil compreensão, porque além de conseguirmos inquirir sobre a natureza do próprio tempo, e nossa situação perante nossa finitude existencial e a infinitude da cronologia primordial e universal, tornamo-nos a própria abertura de significação do ser para com os outros entes, como porta-vozes do sentido: “Mas essa elucidação só se verifica porque há efetivamente uma compreensão prévia do ser; isso pertence de modo essencial à dimensão do humano, e é o que o distingue de todos os outros entes: o homem pode apreender o ente na sua condição mesma de ente. Não há nada no comportamento humano, sequer o mínimo gesto ou a mais particular das experiências, que se possa furtar a esse enraizamento num sentido fundamental; todo comportamento humano é ontológico. (BORNHEIM, 1972, p. 10).

Como argumenta Heidegger, nós somos a morada do ser, já enunciamos, prevemos e somos o canal pelo qual há a fruição do ser dos demais entes da mundaneidade, configurando o ser-aí em ser-no-mundo, ou seja, direcionando na no plano ôntico a projeção ontológica de seu sentido. Esse é o plano de fundo explorado por Bornheim (1972), em sua proposição da metafísica da finitude como argumento renovado para uma atualização e renovação da fenomenologia para nossos tempos: “[…] o homem é que está no sentido. Só há ser e sentido pelo homem, e sem ser e sentido não há homem. Isso quer dizer, em primeiro lugar, que o que está em jogo na questão do ser é o destino do homem; e, em segundo lugar, que se o ser transcende a realidade deste homem particular, então o ser é histórico, isto é,, há um sentido que se renova através do tempo.” A história do Ser, prescreve a história do ser humano, de nossa consciência, ações e situações, fazemo-la em cada um de nossos pequenos atos cotidianos: “O homem participa dessa renovação, embora o ser não seja redutível ao homem: a história do ser esconde o desígnio último do destino do humano.” (BORNHEIM, 1972, p. 10-11).

Muito do diálogo que assistimos em The Sunset Limited nos coloca em voltas à essa proposição de uma metafísica da finitude, presente tanto em Astrada (1942) como Bornheim (1972), porque é no plano ôntico que ditamos o certame da diferenciação entre a niilidade e ecceidade do mundo, do outro e, principalmente, de nós mesmos. Esta retomada metafísica também ganha força nas últimas décadas, em um grande movimento de releitura e aprofundamento dos postulados heideggerianos e sartreanos, os levando na direção das temáticas centrais das pequenas coisas, objetos, sensações, relações, trocas de experiências e sentidos que nos propiciam, em escala aumentada, o conjunto de significações do projeto maior que é nossa existência, conforme reiterado pelo filosófico Coutinho (1976), quando diz que:

A escala de meu vulto metrifica as possibilidades de interpretação de cada um dos protagonistas de forma que a reciprocidade de ser, de mim aos outros, dos outros a mim, se estabelece de conformidade com o módulo de minha receptiva, mesmo porque nada se propõe a corporificar-se em meu repertório sem deixar-se medir de acordo com os vãos deste receptáculo. As nominações, os temas que pairam em mim, e aos quais demandam os atores que se candidatam ou atendem à minha solicitação, têm, por sua vez, uma capacidade de aglutinação que se mensura ao compasso de meus padrões emotivos. (COUTINHO, 1976, p. 36).

Para que seja possível o paralelismo nominal dos conceitos, o vulto equivale-se ao Para-si sartreano e ao ser-aí (dasein) de Heidegger – Coutinho (1976) possui uma das mais ricas e sólidas construções metafísicas da filosofia brasileira, ainda que pouco utilizada ou lembrada. As nominações, argumentadas pelo autor, referem-se ao poder de abertura do sentido de todos os entes ao seu estofo ontológico pelo ser humano. Há, sobremaneira, uma carga de responsabilidade em nós, por sermos essa via expressa pela qual a mensagem da significação é passada para o mundo, nós mesmos e os outros.

É nesse sentido que a niilidade da existência eclode, principalmente, quando há momentos-chave perpetrados por condições de desespero, perda, fuga, rompimentos e os aspectos socioculturais da perda ou ausência da força e fundamento para lidar com tais contingências do esvaziamento do sentido. O cotidiano e suas nuances, que engendram o substrato da tessitura do ser, em cada ente significado por nós, no devir existencial, a finitude abarca a abertura de nosso questionamento e interação, constante e inevitável, para com o algo mais do sentido de cada pequena sensação, objeto, experiência ou acontecimento cotidiano. Muito do que observamos em The Sunset Limited, pelas falas de White, diz respeito a insuficiência, por parte do personagem, de suprir seu vazio existencial na finitude da existência, ao passo que Black argumenta justamente que é preciso uma abertura ao absoluto da ecceidade da infinitude de Deus, para que o finito do mundo que vivemos alcance essa suficiência de sentido.

O embate filosófico presente na metafísica contemporânea choca-se diretamente com a questão do limiar entre a finitude e a infinitude, justamente pelo fato de ao contemplarmos, vislumbrarmos ou querermos compreender a segunda nos depararmos tão somente com a primeira, na confirmação da finitude pela nossa própria condição de mortalidade e acúmulo de projetos e camadas de significação ao longo da vida (a visão de White) e sobre o propósito maior, a partir do qual mesmos com a carga fática do mundo e nós mesmos em sua finitude, teríamos sempre o respaldo e regalo da infinitude do Criador para encontrarmos o sentido maior, a essência das essências e o centro de todos os questionamentos, os quais ao serem direcionados à niilidade em sentido estrito, são ultrapassados pelo poder do absoluto em sua plenitude dogmática (posição amplamente exposta e defendida por Black).

O fim como ecceidade irrefutável

Muito do que possuímos como referência para a finalidade do existir se dá pelo prenchimento cotidiano, espiritual, familiar, fraternal, artístico, produtivo, etc. Mais do que discutir sobre a questão do suicidío e a niilidade como opção à qual a liberdade pode escolher sobre o momento de seu encerramento, The Sunset Limited nos proporciona uma discussão a respeito da morte, seu significado, e configuração como libertação ou tabu, drama ou aceitação por aqueles que nela, por ela e sobre a mesma pensam, reflexionam e inquirem.

Especialmente no que se refere a ritos de passagem relacionados à morte, em muitas situações tradicionais, de populações nativas não são encontrados impedimentos ou complicações psciológicas ou emocionais diante da morte como fato irrefutável, inerente e condicional da existência (DURKHEIM, 1982). E é nesse sentido que podemos refletir, a partir do pensamenteo metafísico contemporâneo, como vimos na primeira parte da análise, conhecida como ontologia fenomenológica crítica, com algumas exceções a respeito do método heideggeneriano, com o que podemos colocar como uma ontologia existencial idealista revisada, com grande contribuição de autores como Etienne Gilson e seus comentadores.

E, ao voltarmos a temática da interrupção do ciclo vital, trabalhado no filme, encontraremos dois pontos de vista para com a existência, o idealista supramudano, do fim e meio de todas a coisas pelo caráter tripartite da deidade já observada por Epicuro: onisciência, onipotência e onipresença; e do outro lado o extremo da liberdade, do arbítrio diante da escolha pelo suicídio.

Partamos, de princípio, a uma clássica posição idealista/clériga a respeito da temporalidade e seu confronto cronológica entre a finitude e infinitude, tratado por Agostinho (2008) sobre o Tempo longo e o tempo breve;

CAPÍTULO XV Tempo longo, tempo breve. No entanto, dizemos que o tempo é longo ou breve, o que só podemos dizer do passado e do futuro. Chamamos longo, digamos, os cem anos passados, e longo também os cem anos posteriores ao presente; um passado curto para nós, seriam os dez dias anteriores a hoje, e breve futuro, os dez dias seguintes. Mas como pode ser longo ou curto o que não existe? O passado não existe mais e o futuro não existe ainda. Por isso não deveríamos dizer “o passado é longo” – mas o passado “foi longo” – e o futuro “será longo”. (AGOSTINHO, 2008, p. 112).

A temporalidade breve, aqui questionada diz respeito a finitude, ao passo que o tempo longo significa o absoluto cronológico. Agostinho remete aos escritos sagrados e ao endosso da fé cristã o respaldo dogmático que busca para justificar essa diferenciação, no centro da qual encontra-se o ser humano. Como trabalhado por Lebrun em seu opus magnun Kant e o fim da Metafísica, não é uma tarefa fácil confrontar científica ou filosoficamente, pontos tão sensíveis ao psicológico, emocional e (i)rracional humano com sua própria razão de ser, em um contraponto tão belo quanto assombroso, do esclarecimento de nosso fagulhar diante da Idade do Céu atingida apenas pelo pulsar metafísico de nossa alma como cantado por Jorge Draxler ou Tudo aquilo que poderíamos ter sido lembrado pelo Clube da Esquina, nas vozes de Lô Borges e Milton Nascimento.

O que Agostinho apela em suas confissões é por uma resposta ao seus Deus, pelo fato de não encontrar na finitude do existir o sentido suficiente para indivíduo. O tempo longo, o infinito e o futuro permeado pelo por-vir de possibilidades relegada apenas à deidade maior, é o caminho encontrado, assimcomo reforçado por Gilson (2016) quando diz que:

Assim, a teologia natural demonstrará a razão suficiente da existência de Deus e do universo; em Cosmologia, explicar-se-á como a existência dos contingentes se encontra determinada no mundo material; em Psicologia, será dito como os possíveis incluídos no pensamento humano são conduzidos ao ato. De todo modo, para propor o problema da existência, será preciso sair da ontologia, visto que o ser de que a ontologia trata se confunde com sua pura possiblidade passiva de receber a existência: a potência ativa de outros seres, que são as causas da existência, é a única que pode conferir a existência do ser. (GILSON, 2016, p. 214).

Deus e o ser humano, o individual absoluto e coletivo relativizado, o sem-número de possíveis frente ao impossível de uma ecceidade superior, esse é o argumento central da desconstrução da metafísica contemporânea empreitado por Gilson (2016), no confronto da alocação da pergunta pelo Ser em substituição a não aceitação ou uso do argumento dogmático e o absoluto da presença de Deus como referência primordial e essencial de todas as coisas.

Mesmo que os argumentos trazidos pelos existencialistas críticos e/ou niilistas dos séculos XIX e XX sejam contundentes, cabe sempre colocar em pauta a individualidade desse questionamento frente ao ser. É nesse aspecto que The Sunset Limited expões a visão de um único indivíduo, White, em sua decisão pelo suicídio, incorporando ora mais a visão científica ora mais a filosófica frente ao posicionamento dogmático, absoluto e religioso de Black.

A análise individual se torna inevitável, necessária e, talvez, o único recorte viável para uma análise desse porte, em nível de colocações metafísicas dos pontos tocados no levante do suicídio como via para se chegar a tais enfrentamentos onto-ontológicos, negativa ou positivamente: “Chama-se suicídio todo o caso de morte que resulte direta ou indiretamente de um ato positivo ou negativo, praticado pela própria vítima, sabedora de que devia produzir esse resultado” (DURKHEIM, 1982, p. 16).

A filosofia de Martin Heidegger nos ajuda a compreender as principais temáticas trabalhadas no filme, em especial o ser-para-a-morte, amplamente exposto, debatido e desenvolvido ao longo dos seus escritos, pelo fato da morte ser a anulação absoluta do Dasein: “A morte é a possibilidade da impossibilidade pura e simples do Dasein” (HEIDEGGER, 2008, p. 333).

Se não cabe ao ser humano, em sua finitude, dispor, contrapor ou sequer compreender a infinitude do Ser, fica então a anulação do dasein/Para-si como alternativa última, frente ao absurdo do existir, o finito se torna o colosso transponível frente a impossível chegada, assimilação ou compreensão do absoluto do ser. Vemos, então, tanto a força máxima como a maior fenda de crítica do existencialismo fenomenológico, diante dessa dualidade, como ressaltado por Gilson (2016):

Eis por que, se for conservado o sentido francês clássico das palavras “existir” e “existência”, que não significam senão “o ser simples e nu das coisas” ou, em outros termos, aquilo pelo que todo real se distingue do nada, pode-se dizer sem paradoxo que os existencialismos contemporâneos em nenhum momento propõem o problema da existência, sendo o objeto próprio deles uma nova essência, qual seja, a do ser em devir no tempo. Como o “ente” é e dura, tal é sua preocupação principal, mas que ele “seja” não lhes põe nenhum problema, o nada que o ser do existencialismo não cessa de ultrapassar, até que enfim sucumba a ele, nunca sendo senão um nada interior para seu próprio ser que, por sua vez, não é objeto de nenhuma questão. Ora, aí está para nós a questão principal. Pouco importa que seja nomeado “ser” ou “existir” o ato em virtude do qual o “ente” é, ele mesmo, “um ser”, e não contestamos em nenhum instante – muito pelo contrário – que o existencialismo encontre na existência, tal como a entende, o objeto de uma fenomenologia útil e mesmo necessária; o único erro do existencialismo é o de tomar-se como uma metafísica, o de esquecer a presença do ato em virtude do qual o “ente” existe e, em seu esforço legítimo para remeter da existência ao ser, tê-lo uma vez mais essencializado. (GILSON, 2016, p. 22-23).

É na esteira desse argumento que Gilson (2016) realiza um contundente revisionismo da teoria existencialista, que argumenta, principalmente a premência da existência à essência, pelo fato, de muitas vezes, o ser deposita seu clamor no retorno em um ser metafísico tão impalatável quanto o próprio nada. Definir a metafísica como ciência do ser enquanto ser e de suas propriedades é certamente dar-lhe como objeto não uma simples noção geral, mas, ao menos, uma essência comum, que fosse a primeira e a mais fundamental de todas: a própria essência daquilo que é, enquanto é. (GILSON, 2016, p. 98).

Diante da potência e irrevogabilidade do tempo longo suscitado por Agostinho e o absoluto da deidade, cristã principalmente no panorama ocidental, os fenomenólogos que embasam o existencialismo buscam a recomposição do respaldo da essência no tempo, no ser-aí que somos (Heidegger), peripécias das peças e passos do jogo metafísico (Astrada), na corporeidade da realidade objetiva (Merleau-Ponty), nas representações do belvedere da existência (Coutinho), nas nuanças cotidianas do sentido (Bornheim) ou no limite do Para-si em sua projeção em direção constante, de liberdade inevitável, e finitude inerente do existir sobre o Em-si (Sartre), dentre outras proposições, caminhos, métodos e visões de engajamento reflexivo para compreensão metafísica da ontologia do ser humano, sua existência e finitude.

A crítica posta por Gilson (2016) sobre o fosso de sentido proposto pelo existencialismo mais radical, que flerta com o niilismo em lateralidade do ser e o nada encontrada, portanto, um caminho na finitude, quando o cotidiano ocupa seu lugar de fomentador do sentido da existência, sem revogar o substrato máximo de um Deus como fim, meio e início de todas as coisas, como alerta Camus (2018):

Todo pensamento que renuncia à unidade exalta a diversidade. E a diversidade é o lugar da arte. O único pensamento que liberta o espírito é o que o deixa sozinho, certo dos seus limites e do seu fim próximo. Nenhuma doutrina o solicita. Espera o amadurecimento da obra e da vida. Separada dele, a primeira fará ouvir mais uma vez a voz quase ensurdecida de uma alma libertada para sempre da esperança. Ou não deixará ouvir nada, se o criador, cansado do seu jogo, pretende se retirar. O que é equivalente. (CAMUS, 2018, p. 116).

Pôr-se diante do esvaziamento do sentido por meio do ceticismo máximo, base e fundamento da fenomenologia contemporânea em estado puro, trará, em algum momento, o certame no qual a finitude não mais fornecerá a essência do existir nos tantos quantos objetos, fatos, situações, sensações, emoções, e múltiplos projetos efêmeros de uma longa trilha existencial, então o ser-para-o-fim torna-se sedutor à espreita do descenso.

Em The Sunset Limited observamos o poderio da ecceidade absoluta de Deus na presença trans-casualística, ultrapassando a condição inicial ou final, e de como o recurso do finito, na temporalidade, espacialidade ou qualquer que seja a entidade direcionada do olhar metafísico, esbarrar-se-á no colosso da deidade distanciada pelos fenomenólogos atuais, mas como nos diz Gilson (2016), não deixa de possuir ressonância e semelhança em força, força e composição ontológica superior com a ideia de Deus.

Heidegger em sua grande arquitetura ontológica fundada no argumento da temporalidade e o esquecimento e abandono do Ser, sabia do desafio trazido à tona na proposição de uma postura cristalina e sem velamento diante do existir e da existência. Por isso debate que a vida cotidiana encoberta a abertura para o ser, que faz parte, em si mesmo, da essência do ser humano, como ente privilegiado para a significação do mundo, como ser-no-mundo, projeto existencialmente pelo ser-aí, o dasein:

A presença cotidiana encobre, na maior parte das vezes, a possibilidade mais própria, irremissível e insuperável de seu ser. essa tendência fática de encobrimento confirma a seguinte tese: como fática, a presença está na não-verdade. Em consequência, a certeza inerente ao encobrimento do ser-para-a-morte só pode ser um ter-por-verdadeiro inadequado, e não uma espécie de incerteza, no sentido de dúvida. A certeza inadequada mantém encoberto aquilo de que está certa. Se a compreensão “impessoal” da morte é a de uma acontecimento que vem ao encontro dentro do mundo, então a certeza a ela relacionada não diz respeito ao ser-para-o-fim. (HEIDEGGER, 2008, p. 333).

A epifania dos objetos, ou dos utensílios, como diria Sartre, nos ecossistemas onto-ontológicos que nos transpassam, dão-nos o sentido do mundo ao redor, das pessoas que nos relacionam e engendram a narrativa de nosso trilhar vital. São os mesmos detalhes, nuances, instantes e objetificações ressaltados por Coutinho (1976): “As veredas, as estradas, as ruas, as avenidas se constituem em tablados para o desempenho da liturgia de ser em meu repertório, ao ensejo da repetição que os protagonistas se me oferecem.” (COUTINHO, 1976, p. 199). São múltiplas versões do real, do cotidiano e vida diária, camadas diacrônicas de experiências, lembranças, situações, sensações, permanências e esvaziamentos:

Todas as nossas versões do real — silogismos, descrições, fórmulas científicas, comentários de ordem prática, etc. — não recriam aquilo que pretendem exprimir. Limitam-se a representá-lo ou descrevê-lo. Se vemos uma cadeira, por exemplo, percebemos instantaneamente sua cor, sua forma, os materiais com que foi construída, etc. A apreensão de todas essas características dispersas não é obstáculo para que, no mesmo ato, nos seja dado o significado da cadeira: o de ser um móvel, um utensílio. Mas, se queremos descrever nossa percepção da cadeira, teremos de ir aos poucos e por partes: primeiro sua forma, depois sua cor, e assim sucessivamente até chegar ao significado. No curso do processo descritivo foi se perdendo pouco a pouco a totalidade do objeto. A princípio a cadeira foi apenas forma, mais tarde uma certa espécie de madeira, e finalmente puro significado abstrato: a cadeira é um objeto que serve para sentar. No poema a cadeira é uma presença instantânea e total, que fere de um golpe a nossa atenção. O poeta não descreve a cadeira: coloca-a diante de nós. (PAZ, 1982, p. 132).

Nas palavras de Paz (1982) percebe-se uma aproximação com os pilares postos por Heidegger (2013) na mundaneidade como projeção do ser-aí com ser-no-mundo, e o Para-si sartreano na relação inerente ao Para-si. Uma cadeira, uma flor, uma emoção efêmera, uma sensação nostálgica um acontecimento histórico, quaisquer que seja a entidade, haverá sempre uma retroprojeção do mundo no indivíduo, que resvala em seu existir, significando-o e, nas palavras mais que diretas de Heidegger (2008) um grade agregado de encobrimentos à indeterminação inevitável que é o ser-para-a-morte: “O encobrimento da indeterminação também atinge a certeza. Vela-se, assim, o caráter de possibilidade mais próprio da morte: certa, porém indeterminada, ou seja, possível a todo instante.” (HEIDEGGER, 2008, p. 335).

“Essas são as coisas que têm valor para mim.”

O ser-para-a-morte vem ao encontro da substituição da infinitude dogmática da deidade em questão, cristã no caso do filme Sunset Limited. Seja pela ação do tempo por si só, ou pela escolha do arbítrio da morte como propriedade e direito do cessamento do dasein. Camus flerta com Sartre (2008) e Heidegger (2008; 2013) na concordância da face libertadora do absurdo, desespero e niilidade humana:

O que resta é um destino cuja única saída é fatal. À margem dessa fatalidade única da morte, tudo, alegria ou fatalidade, é liberdade. Surge um mundo cujo único dono é o homem. O que o atava era a ilusão de outro mundo. A sorte do seu pensamento já não é renunciar a si, mas renovar-se em imagens. Ele se representa – em mitos, sem dúvida –, mas mitos sem outra profundidade senão a dor humana e, como esta, inesgotável. Não mais a fábula divina que diverte e cega, mas o rosto, o gesto e o drama terrenos em que se resumem uma difícil sabedoria e uma paixão sem amanhã. (CAMUS, 2018, p. 117).

As tentativas de Black de convencimento de White para com as respostas metafísicas pela fé, durante todo o filme, esbarram sempre em uma compreensão, epifania filosófica-metafísica, de White, do absurdo do viver, estar vivo, e da vida como prospecção essencial do sentido de passarmos, temporariamente, nesse plano. Se, como argumenta Gilson (2016) em contraponto ao existencialismo idealista e/ou mais extremado ao niilismo, não houver o fosso metafísico do infinito no qual todos esses questionamentos possam se resvalar e voltar sem seu poderio de desconstrução do indivíduo, pouco ou nada sobrará, além do absurdo por ele próprio, porque o finito, em sua infinitude, jamais será suficiente como justificação da existência:

Eis aí também as árvores e conheço suas rugas, eis a água e experimento-lhe o sabor. Esses perfumes de relva e estrelas, a noite, certas tardes em que o coração se descontrai, como eu negaria o mundo de que experimento o poder e as forças? Contudo, toda a ciência dessa terra não me dará nada que me possa garantir que este mundo é para mim. Vocês o descrevem e me ensinam a classificá-lo. Vocês enumeram suas leis na minha sede de saber, concordo que elas sejam verdadeiras. Vocês desmontam seu mecanismo e minha esperança aumenta. Por último, vocês me ensinam que esse universo prestigioso e colorido se reduz ao átomo e que o próprio átomo se reduz ao elétron. Tudo isso é bom e espero que vocês continuem. Mas vocês me falam de um invisível sistema planetário em que os elétrons gravitam ao redor de um núcleo. Vocês me explicam esse mundo com uma imagem. Reconheço, então, que vocês enveredam pela poesia: nunca chegarei ao conhecimento. Tenho tempo para me indignar com isso? Vocês já mudaram de teoria. Assim, essa ciência que devia me ensinar tudo se limita à hipótese, essa lucidez se perde na metáfora, essa certeza se resolve como obra de arte. Para o que é que eu precisava de tantos esforços? As doces curvas dessas colinas e a mão da tarde sob este coração agitado me ensinam muito mais. Compreendo que se posso, com a ciência, me apoderar dos fenômenos e enumerá-los, não posso da mesma forma apreender o mundo. (CAMUS, 2018, p. 117).

Nessas palavras de Camus (2018) reencontramos os (eco)sistemas ônticos, propiciando a ecceidade do ser humano como portando em si a projeção do sentido de todas as coisas, como um arauto do Ser, em cada ser de cada coisa, retirando a mundaneidade do Em-si sua niilidade, mesmo que constantemente renovada, reprojetada e reificada a cada nova sensação, objetificação, percepção, acontecimento ou instante vital de nossa trilha existencial em sua miríade e claviculária facticidade. O ser do humano é ocasional, incerto, inapreensível em sua totalidade, complexo, incomparável, inquietante e flerta, sempre, na relação onto-ontológica da (in)finitude:

O tema da investigação hermenêutica é o ser-aí próprio em cada ocasião. O ser da vida fática mostra-se no que é no como do ser da possibilidade de ser de si mesmo. A possibilidade mais própria de si mesmo que o ser-aí (faticidade) é, e justamente sem que esta esteja “aí”, será denominada existência. Através do questionamento hermenêutico, tendo em vista que ele seja o verdadeiro ser da própria existência, a faticidade situa-se na posição prévia, a partir da qual e em vista da qual será interpretada. Os conceitos que tenham origem nesta explicação serão denominados existenciais. (HEIDEGGER, 2013, p. 22).

No absurdo de Camus encontramos ressonâncias do desespero de Kierkegaard, da ironia metafisica de Nietzsche e, muito fortemente, o apelo ontológico pela finitude feito por autores como Astrada (1942) e Bornheim (1972) frente aos grandes postulados fenomenológicos do século XX.

A razão, inteligência, pensamento e a liberdade para trilhar tanto o caminho como a visão do mundo fazem com que haja uma potencialização crescente da compreensão da finitude por ela mesma, já que à infinitude nem o Deus cristão ou o Ser metafísico se mostram palatáveis ou alcançáveis, o absurdo toma a frente, e encarrega-se, por seu esvaziamento, de defenestrar, pela razão ou emoção, o que mais estiver posto como empecilho à incompreensão primal da existência:

Quando tiver seguido com o dedo todo seu relevo, não saberei nada além disso. E vocês me levam a escolher entre uma descrição que é certa, mas que não me informa nada, e hipóteses que pretendem me ensinar, mas que não são certas. Estranho diante de mim mesmo e diante desse mundo, armado de todo o apoio de um pensamento que nega a si mesmo a cada vez que afirma, qual é essa condição em que só posso ter paz com a recusa de saber e de viver, em que o desejo da conquista se choca com os muros que desafiam seus assaltos? Querer é suscitar os paradoxos. Tudo é organizado para que comece a existir essa paz envenenada que nos dão a negligência, o sono do coração ou as renúncias mortais. Também a inteligência, portanto, me diz à sua maneira que este mundo é absurdo. Seu oposto, que é a razão cega, inutilmente afirmou que estava tudo claro: eu esperava provas e desejava que ela tivesse razão. Mas, apesar de tantos séculos pretensiosos, repletos de tantos homens eloquentes e persuasivos, sei que isso é falso. Pelo menos nesse aspecto, não existe felicidade se eu não posso saber. Essa razão universal – moral ou prática -, esse determinismo, essas categorias que explicam tudo têm com que fazer rir o homem honesto. Não têm nada a ver com o espírito. Negam sua verdade profunda, que é estar acorrentado. Nesse universo indecifrável e limitado o destino do homem, daí em diante, adquire seu sentido. Uma multidão de irracionais se levantou e o cerca até o último objetivo. Em sua perspicácia reavida e agora harmonizada, o sentimento do absurdo se aclara e se precisa. Eu dizia que o mundo é absurdo: estava andando muito depressa. Esse mundo em si mesmo não é razoável: é tudo o que se pode dizer a respeito. Mas o que é absurdo é o confronto entre esse irracional e esse desejo apaixonado de clareza cujo apelo ressoa no mais profundo do homem. O absurdo depende tanto do homem quanto do mundo. É, no momento, o único laço entre os dois. Colados um ao outro como só o ódio pode fundir os seres. É tudo o que posso discernir nesse universo sem limites em que prossegue a minha aventura. Paremos aqui. Se considero verdadeira essa absurdidade que regula minhas relações com a vida, se me compenetro desse sentimento que se apossa de mim ante os espetáculos do mundo, desse descortino que me impõe a busca de uma ciência, devo tudo sacrificar a estas certezas e encará-las de frente para poder mantê-las. E devo, sobretudo, pautar de acordo com elas o meu comportamento, levando-as adiante em todas as suas consequências. Estou falando de honestidade. Mas quero saber, doravante, se o pensamento pode viver em tais desertos. Já sei que o pensamento pelo menos entrou nesses desertos. Aí encontrou seu pão. Aí compreendeu que até então se alimentava de fantasmas. E serviu de pretexto a alguns dos temas mais insistentes da reflexão humana. (CAMUS, 2018, p. 20).

O Sísifo entoado por Camus diz respeito ao retorno eterno da questão fundamental do ser humano, a essência do propósito, o porquê do existir e o absurdo da vida em sua incalculável galáxia de escolhas e possibilidades, como meio pelo qual a prospecção do ser se torna possível enquanto questionamento incessante e inalcançável, a compreensão derradeira de tal condição seria, portanto, a aceitação e superação dessa condição, pela própria fatalidade inevitável: “Enquanto fim da presença, a morte é a possibilidade mais própria, irremissível, certa e, como tal, indeterminada e insuperável da presença. enquanto fim da presença, a morte é e está em seu ser-para o fim”. (HEIDEGGER, 2008, p. 335).

Se o absurdo como ressaltado por Camus (2018) é o inevitável àqueles que assim estiverem dispostos a se por frente aos grandes questionamentos metafísicos, então em algum momento o ser-para-a-morte entrará à baila, seja como confirmação ou como ronda inevitável na configuração de alternativa ou resposta para o ser-aí, como ser-no-mundo (dasein), independente de quantos ou quais forem a infinidade e riqueza de significações efêmeras ou projetos iniciados e/ou inacabados pela existência. Gilson (2016), um dos mais críticos a essa vertente do existencialismo fenomenológico contemporâneo, novamente, traz a teologia e dogmatismo como inevitabilidade a esse cenário metafísico tão dualístico quanto complexo:

Portanto, é a teologia que deverá resolver esse problema, e como ela inicialmente terá de estabelecer a existência da causa da existência do mundo, sua primeira tarefa será provar a existência de Deus. Com efeito, o que é Deus? Se nos referirmos à sua definição nominal, da qual, aqui, como em qualquer circunstância, se deve partir, “entende-se, pela palavra Deus, o ser por si, no qual se encontra contida a razão suficiente da existência deste mundo visível e de nossas almas.” (GILSON, 2016, p. 215).

A tarefa auto imposta pela metafísica revela-se, portanto, um empreendimento dos mais inquietantes, por ter de lidar com o que a ciência relegou à filosofia e também dialogar, ou assumir por completo, a presunção dogmática de suas grandes questões fundamentais pela teologia: A metafísica “existe” pelo menos de duas maneiras: como disposição inscrita em nossa natureza e como ciência eventual da qual se escruta a possibilidade. (LEBRUN, 1993, p. 34).

Lebrun, novamente buscando na crítica de Kant seu ponto de defesa sobre uma rota para a metafísica que nos é inerente reafirma, porém, que o pensamento metafísico nos é inerente, e que é preciso considerar que a disseminação das visões e propostas de análise metafísica fazem parte natural desse processo de questionamento sobre as questões fundamentais da existência e do pensamento, como nos faz lembrar Lebrun (1993) citando a prerrogativa de questionamento metafísico efetuado por Kant:

Porque a metafísica nunca foi usada como ciência? Por que a lentidão de espírito e o encanto da sofística muito cedo prevalecem sobre o exercício da razão: se Aristóteles, graças a uma melhor sistematização, eles sabiam discernir que os conceitos da ontologia são tão válidos em relação à relação, o curso da história da filosofia critérios foram mudados […] Estas tentativas não foram empreendidas “arbitrariamente”: já que “a metafísica está, em seus traços fundamentais, as experiências em nós pela própria natureza”. (LEBRUN, 1993, p. 60).

E para uma última reflexão, antes do fechamento dessa análise., Ressalta-se, propositalmente, ou redigido nos traz o representante da ciência com o nome voltado para a escuridão, e aqueles que defendem a posição racional, com referência à luz. No jogo metafísica, trabalhado por Astrada (1942), desafiado por Kant, em análise de Lebrun (1993) ou claro-escuro do velar e desenhador do ser, caminha como numa corda bamba, pendurando ora por um ora por outro lado do outro mesmo fio, não é possível encontrar o ser humano como mediador da busca incessante pela resposta fundamental do ser, para suprir o sentido do seu próprio existir.

Por fim, encerrado, provisoriamente, essa análise, tendo o filme The Sunset Limited e suas reflexões, como plano de fundo para debates a respeito de questões metafísicas fundamentais. Para que, existencial, fenomenológico, racional, científico, filosófico, dogmático ou religioso, se coloque no lugar dos protagonistas Branco e Preto, promova ou incorpore essas ideias, deve estar disposto a lidar com os limites das decisões, investigações, limites de valores, figurinos, visões do mundo, ideologias e entendimento da realidade, fazer outro e si próprio, uma tarefa que se torna tão desafiadora quanto aparentemente intransponível.

Pois mal sabemos se a humanidade mesma não passa de um estágio, um período no todo, no devir, se não é uma arbitrária manifestação de Deus. Não seria o homem apenas a evolução da pedra por intermédio da planta, animal? Já se teria alcançado nisso sua perfeição, e não haveria nisso também história? Jamais tem fim, esse eterno devir? Quais serão as molas desse grande mecanismo? Estão ocultas, mas são as mesmas desse grande relógio que chamamos história. O mostrador’ são os acontecimentos. A cada hora avança o ponteiro, para recomeçar sua ronda após as doze; começa um novo período do mundo. Tudo se move em círculos imensos, sempre mais amplos; o homem é um dos círculos mais interiores. Querendo medir as oscilações daqueles exteriores, ele terá de, a partir de si e dos círculos mais próximos, abstrair aqueles mais abrangentes. 
F. Nietzsche

FICHA TÉCNICA:

THE SUNSET LIMITED

Direção: Tommy Lee Jones
Elenco: Samuel L. Jackson; Tommy Lee Jones.
Ano: 2011
País: EUA
Gênero: Drama

REFERÊNCIAS:

AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradutores: Arnaldo do Espírito Santo; João Beato; Maria Cristina Castro-Maia de Sousa Pimentel. Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2008.

ASTRADA, Carlos. El juego metafísico: para una filosofía de la finitud. Buenos Aires: Libreria El Ateneo Editorial, 1942.

BORNHEIM, Gerd. Metafísica e Finitude. Porto Alegre: Editora Movimento, 1972.

CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Trad. Ari Roitman e Paulina Watch. Rio de Janeiro: Besbolso, 2018.

COUTINHO, Evaldo. O lugar de todos os lugares. São Paulo: Perspectiva, 1976.

DURKHEIM, Emile. O Suicídio – Um Estudo Sociológico. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982.

GILSON, Étienne. O ser e a essência. São Paulo: Paulus, 2016.

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. 3ª Ed. Trad. Marcia Sá Cavalvante Schuback. Petrópolis: Editora Vozes, 2008.

___________. Ontologia: Hermenêutica da facticidade. Trad. Renato Kichner. Petrópolis\RJ: Vozes, 2013.

LEBRUN, Gérard. Kant e o fim da metafísica. Trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura. Martins Fontes Editora, São Paulo, 1993.

PAZ, Octávio. O arco e a lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

SARTRE, Jean-Paul. O Ser e o Nada: Ensaio de Ontologia Fenomenológica. Trad. Paulo Perdigão. Petrópolis: Vozes, 2008.