Uma manhã de aprendizado no CAPS II

 

fonte: arquivo pessoal

No dia 13 de maio de 2022, vivenciei uma experiência incrível, ao lado de alguns colegas da turma de Estágio Básico em Psicopatologia, matéria ministrada pela professora Ariana Campana Rodrigues, no curso de graduação em Psicologia do CEULP/ULBRA. Conhecemos a equipe de profissionais residentes em Saúde Mental do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS II) e os profissionais responsáveis e atuantes no local. Foi uma manhã de bastante aprendizado: entendendo sobre o funcionamento da unidade e seus desafios diários.

De acordo com a PORTARIA Nº 336, DE 19 DE FEVEREIRO DE 2002 um CAPS II deve conter: 1 médico psiquiatra, 1 enfermeiro com formação em Saúde Mental, 4 profissionais de nível superior de outras categorias profissionais: psicólogo, assistente social, terapeuta ocupacional, pedagogo, professor de educação física ou outro profissional necessário ao projeto terapêutico, 6 profissionais de nível médio: técnico e/ou auxiliar de enfermagem, técnico administrativo, técnico educacional e artesão. 

Mas, de acordo com os relatos, essa realidade ideal de profissionais é um pouco reduzida no município de Palmas-TO, sendo possível contar nos dedos quantos funcionários de fato são atuantes. Junto a isso, muitos dos residentes também atuam em outras unidades além do CAPS. Tivemos a oportunidade de estar com residentes formados em farmácia, enfermagem, educação física, psicologia e terapia ocupacional. 

De acordo com o Ministério da Saúde (2015), os CAPS são pontos de atenção estratégicos da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS): serviços de saúde de caráter aberto e comunitário constituídos por equipes multiprofissionais, atuantes sob a ótica interdisciplinar, que realizam prioritariamente atendimento às pessoas com sofrimento ou transtorno mental, incluindo aquelas com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, seja em situações de crise ou nos processos de reabilitação psicossocial. Cada um em sua área territorial e diferentes modalidades (BRASIL, 2011). Esse modelo veio para combater a forma asilar antiga.

Falar de CAPS, também é ressaltar a importância da Reforma Psiquiátrica e a suas conquistas. Em 2001 foi sancionada a lei Paulo Delgado, a Lei Federal 10.216, que redireciona a assistência em Saúde Mental e privilegia o oferecimento de tratamento em serviços de base comunitária, ao mesmo tempo que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas com transtornos mentais. Mas infelizmente não institui mecanismos claros para a progressiva extinção dos manicômios. Logo a luta contra um modelo antimanicomial ainda é bastante atual. A data que marca as comemorações da luta é 18 de maio. Nessa luta está o combate à ideia de que se deve isolar a pessoa com sofrimento mental em nome de supostos tratamentos.

O CAPS II, propositalmente, é um local que tem a aparência de casa, para que a pessoa que frequenta o serviço se sinta confortável, criando vínculos mais fortes e melhor adesão ao tratamento. Fiquei maravilhada com a estrutura e a sensação de acolhimento presente ali. O espaço externo amplo e arborizado foi o maior responsável por essa sensação.

Os estagiários nos contaram também como é feita a adesão de uma pessoa ao serviço. Qualquer pessoa que tenha interesse pode ir por vontade própria,sendo encaminhada para um momento de acolhimento com os residentes ou outros membros da equipe. São então identificadas as demandas, feito o direcionamento das pessoas, que podem permanecer ou ser indicadas para  outros lugares. Os residentes destacaram que esse processo de escolha é feito de forma multidisciplinar, e que nada ali é pensado de forma individual. Se a pessoa tem o ‘’perfil’’ para o serviço, é então pensado para ela um Projeto Terapêutico Singular, em que práticas multidisciplinares são acionadas, pensados de acordo com a subjetividade de cada indivíduo e suas demandas.

 

De acordo com a Portaria/ SAS/MS n.º 341 de 22 de agosto de 2001, dentro de sua área assistencial, um CAPS II deve funcionar no período de 08 às 18 horas, em 02 (dois) turnos, durante os cinco dias úteis da semana. A assistência prestada ao paciente no CAPS inclui as seguintes atividades:

a — atendimento individual (medicamentoso, psicoterápico, de orientação, entre outros);

b — atendimento em grupos (psicoterapia, grupo operativo, atividades de suporte social, entre outras);

c — atendimento em oficinas terapêuticas executadas por profissional de nível superior ou nível médio;

d — visitas domiciliares;

e — atendimento à família;

f — atividades comunitárias enfocando a integração do paciente na comunidade e sua inserção familiar e social;

g — os pacientes assistidos em um turno (04 horas) receberão uma refeição diária, os assistidos em dois turnos (08 horas) receberão duas refeições diárias.

 

Quanto ao funcionamento dos grupos, os residentes manifestaram a imensa vontade de retorno pois, durante a pandemia, os grupos foram suspensos. Eles nos contaram com entusiasmo que existem projetos em andamento, mas que o período pandêmico trouxe dificuldades, resultando em algumas mudanças no funcionamento das atividades. Apontam que aos poucos estão se reestruturando. A necessidade de servir refeições é uma dessas dificuldades, pois no momento elas não estão sendo servidas Logo, até o presente momento deste relato, os grupos não estão funcionando. Os profissionais tentam suprir algumas demandas de forma individual,  ficando impossibilitados de exercer outras.

 

Os grupos, nas modalidades de “psicoterapia, grupo operativo, atividade de suporte social, entre outras” (Brasil, 2004, p. 32), são preconizados como atividades terapêuticas nos CAPS, constituindo mais um mecanismo de “cuidado que visa à autonomia e corresponsabilização do sujeito em seu tratamento, atribuindo-lhe poder de contratualidade em seu processo de reabilitação psicossocial” (Firmo & Jorge, 2015, p. 219). Por isso seria muito importante que a realização dos grupos fosse retomada. 

 

Outro ponto relatado nas nossas conversas foi sobre a saúde mental dos residentes e como eles conseguem conciliar a rotina intensa da residência com sua vida pessoal e os momentos de lazer e prazer. Muitos relataram a dificuldade dessa separação no começo, mas que hoje conseguem “desligar’’ dos assuntos e dos acontecimentos quando chegam em casa. Outros relataram sobre a importância dos momentos de lazer com a família e a psicoterapia. Juntos também fazem reuniões, que antes eram mais frequentes, para que possam relaxar e ter momentos de lazer.

Sobre a saúde mental de residentes em áreas profissionais da saúde, as publicações de estudo são escassas. Carvalho, Melo-Filho, Carvalho e Amorim (2013) investigaram 178 estudantes e observaram a elevada prevalência de transtornos mentais comuns (TMC) na população estudada (51,1;.j%), com maior incidência entre médicos do que entre não médicos, indicando necessidade de estratégias para melhorar a qualidade de vida dos residentes.

Apesar de todos os desafios, as rotinas intensas de estudos, a carga horária de 60h semanais, aulas que acontecem a cada 15 dias, os residentes evidenciaram sua paixão por trabalhar com a Saúde Mental, nos incentivando bastante a investir nos estudos para a residência e a viver essa experiência, dita como única. Falaram um pouco como é o funcionamento do edital de seleção, que a residência tem a duração de 2 anos e sobre como o conhecimento adquirido é de extrema importância para o currículo profissional.

Conversamos um pouco sobre as mudanças que vêm ocorrendo por conta da situação da extinção e posterior retomada da FESP (Fundação Escola de Saúde Pública) no município de Palmas . A Fundação, criada por meio de lei municipal em 2013, tem por missão promover atividades de pesquisa, extensão e inovação para os trabalhadores do SUS e para a comunidade, atuando na formação e educação permanentes (Conselho Regional de Biologia, 2022). Infelizmente, com sua extinção temporária, houve um enorme retrocesso, pois ela se incorporou temporariamente com a Secretaria Municipal de Saúde,  o que trouxe a preocupação de que certas ações  deixassem de ser priorizadas ou até mesmo descontinuadas.

Como percebido ao longo desse relato, os aprendizados em apenas uma manhã foram muitos, trazendo o nosso olhar a outros campos de atuação, além do âmbito clínico tradicional, nos permitindo compreender a importância de tal serviço para a população. Minha percepção é que, mesmo sendo um serviço de imensurável valor, o CAPS ainda é desvalorizado e por vezes negligenciado, o que nos faz  refletir, como futuros profissionais, o quanto precisamos, sim, exercer nosso dever ético de propagar os ideais da Reforma Psiquiátrica. 




REFERÊNCIAS 

BRASIL. Ministério da Saúde. Lei n° 10.216. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm. Acessado em 21/05/2022. 

BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n° 336. Brasília, 2002. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2002/prt0336_19_02_2002.html. Acessado em 21/05/2022.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Especializada e Temática. Centros de Atenção Psicossocial e Unidades de Acolhimento como lugares da atenção psicossocial nos territórios: orientações para elaboração de projetos de construção, reforma e ampliação de CAPS e de UA / Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Especializada e Temática. Brasília: Ministério da Saúde, 2015.

Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Reforma Psiquiátrica e política de Saúde Mental no Brasil. Documento apresentado à Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental: 15 anos depois de Caracas. OPAS. Brasília, novembro de 2005. Disponível em:  https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/Relatorio15_anos_Caracas.pdf. Acessado em 21/05/2022.

CAHU, R. A. G. et al. Estresse e qualidade de vida em residência multiprofissional em saúde. Rev. bras. ter. cogn., Rio de Janeiro, v. 10, n. 2, p. 76-83, dez. 2014.   Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1808-56872014000200003&lng=pt&nrm=iso. Acessado em 21/05/2022.   

CRbio-04. Posicionamento do CRBio-04 sobre a extinção da FESP de Palmas. 7 de abril de 2022. Disponível em https://crbio04.gov.br/noticias/posicionamento-do-crbio-04-sobre-a-extincao-da-fesp-de-palmas/#. Acessado em 21/05/2022. 

DELGADO, Pedro Gabriel. “Reforma psiquiátrica: conquistas e desafios”. Rev. Epos, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, dez. 2013.   Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2178-700X2013000200009&lng=pt&nrm=iso. Acessado em 21/05/2022. 

NASCIMENTO, T. M.; GALINDO, W.C.M. Grupo Operativo em Centros de Atenção Psicossocial na opinião de psicólogas. Pesqui. prát. psicossociais, São João del-Rei, v. 12, n. 2, p. 422-438, ago. 2017.   Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-89082017000200013&lng=pt&nrm=iso. Acessado em 21/05/2022. 

Psicóloga pela UNESP/Assis, aprimoramento em saúde mental pela UNICAMP e mestrado em psicologia pela UNESP/Assis.